Coeficiente de construção

Um dos mais importantes índices urbanísticos, o Coeficiente de construção tem causado efeitos negativos no desenvolvimento das cidades.

Avanços tecnológicos, crescimento populacional, alterações na maneira de viver, de trabalhar e de se deslocar das pessoas e uma maior preocupação ambiental. Apesar dessa realidade, intensificada nas últimas décadas, a forma de pensar os municípios continua atrelada a uma visão utópica das localidades do início do século 20. As convicções defendidas por planejadores ingleses e norte-americanos de que as cidades deveriam ser descentralizadas e desconcentradas levaram à criação de ferramentas de zoneamento utilizadas ainda hoje e que impedem a densificação de determinadas áreas, em especial as centrais. Essas limitações resultam em expansão urbana, engarrafamentos, pegadas de carbono mais altas e habitações mais caras.

Partindo da pesquisa histórica sobre o surgimento e o desenvolvimento das leis do zoneamento moderno, o economista e professor da Universidade Rutgers em Newark, Jason M. Barr, mostra como um dos principais mecanismos de organização dos municípios – o FAR (Floor Area Ratio), conhecido como coeficiente ou índice de aproveitamento no Brasil – foi introduzido nos códigos de Nova York em 1961. E, também, como ele segue como um dos mais importantes instrumentos para inúmeras localidades no mundo medirem as densidades permitidas em cada uma de suas regiões. Em artigo publicado no ano passado em seu site, Barr explica que o Floor Area Ratio informa a quantidade máxima de metros quadrados que pode ser construída em um terreno.

Segundo ele, a FARtopia (FAR mais utopia) existente atualmente é um “lugar mágico onde a moradia é inacessível para a maioria da população, e qualquer sugestão de derrubar um prédio antigo para substituí-lo por um mais alto é recebida com vergonha rápida e feroz; onde o status quo é rei e qualquer mudança que possa melhorar a vida do povo é instantaneamente vetada”. O conceito técnico do Floor Area Ratio, que é a razão obtida pela divisão da área total edificada pela área total do lote, é essencial para que se possa compreender tanto a qualidade de vida urbana como o custo das residências, destaca o economista.

“Os limites do FAR são grande parte do motivo pelo qual novas construções são tão controversas”, defende. Barr acrescenta que a luta entre os movimentos de Nimby (Não no Meu Jardim) e Yimby (Sim no Meu Jardim) é desencadeada toda vez que os desenvolvedores imobiliários solicitam permissão aos governos municipais para erguer edifícios maiores que os permitidos e, com isso, atender à demanda por imóveis. Essas barreiras construtivas, exemplifica o professor, são responsáveis pelo fato de ser ilegal em mais de 50% do solo da cidade de Nova York que um proprietário de terras edifique qualquer coisa que não seja uma casa para uma ou duas famílias.

“Mesmo a hiperdensa Manhattan tem um FAR residencial de apenas quatro (possibilidade de construir quatro vezes mais no lote), com exceção da sua parte central onde o máximo aprovado é um Floor Area Ratio de 10”, enfatiza. A média do FAR para moradia em toda a Big Apple é de 1,2 e a da maioria dos bairros dos Estados Unidos fica em 1 ou menos que isso – o padrão para uma habitação unifamiliar com dois andares, complementa Barr. Autor do livro Building the Skyline: The Birth and Growth of Manhatann’s Skyscrapers (Construindo o horizonte: o Nascimento e Crescimento dos Arranha-céus de Manhattan), o economista detalha que esse cenário leva os nova-iorquinos a poderem vender “ar”.

Isso significa que se o dono de um terreno tiver uma área útil não usada, ele pode negociá-la com um vizinho, para que esse possa construir mais alto. “No mercado de Manhattan, o “ar” é vendido por milhões de dólares e ajuda a explicar a ascensão das torres superfinas ao sul do Central Park”, argumenta. Conforme o professor, com as limitações dos FARs, a cidade “torna os direitos de desenvolvimento um recurso escasso, levando os construtores a realizarem ações estratégicas para combater a carência produzida pela localidade”.

Cidades-jardim inspiraram o planejamento de Nova York e suas regras de zoneamento

A primeira aparição do FAR nas legislações de um município é, em geral, atribuída às normas de zoneamento de 1961 de Nova York. Contudo, a utilização dessa ferramenta em larga escala começou em Chicago, em 1957, descreve Jason Barr em seu artigo de três partes (From Utopia to FARtopia, The FARsighted Great Depression e FAR and Wide), lembrando que a ideia já estava em debate muito tempo antes – há pelo menos 50 anos. A sua popularização e expansão se deve, principalmente, aos desenvolvedores ingleses, com destaque para Ebenezer Howard e suas cidades-jardim.

Concebidas para equilibrarem as vantagens da vida saudável no campo com as facilidades e empregos das áreas urbanas, as localidades de Howard eram uma resposta aos problemas enfrentados na Inglaterra do início dos anos 1900. Com o lançamento do livro “Cidades-Jardim do Amanhã”, em 1902, ele espalhou sua visão não somente em seu país, mas também nos Estados Unidos. Os distritos projetados por ele eram organizados em uma série de círculos, com um parque no centro, um segmento comercial, um setor residencial, um círculo para fábricas e por fim um cinturão verde. Ruas e ferrovias conectavam as diferentes cidades-jardim. Para saber mais sobre o assunto, confira matéria publicada no nosso site.

Muitos foram os nomes responsáveis por difundir o conceito de Howard nos municípios norte-americanos, entre eles Charles Whitaker que fundou, em conjunto com pensadores com opiniões semelhantes para o crescimento das localidades, a Associação de Planejamento Regional da América, que exerceu forte influência no desenvolvimento urbano. Por meio de seus integrantes, a entidade difundiu a ideia de que a única forma de eliminar as favelas presentes nas cidades no começo da década de 1920 era “desconcentrar e descentralizar a população”.

A primeira tentativa da Associação de estabelecer um lugar em sintonia com o desenho de Howard foi Sunnyside Gardens, erguida em um terreno de 70 acres (283,2 mil metros quadrados) no Queens, em Nova York, entre 1924 e 1928. “O projeto não conseguiu alcançar as economias de escala esperadas nem poderia oferecer uma solução para o problema da acessibilidade da habitação. Os moradores tinham que ser da classe média para pagar as acomodações confortáveis”, ressalta Barr. Outras iniciativas foram realizadas para implementar as cidades-jardim nos Estados Unidos, incluindo a criação de apartamentos-jardim: prédios de quatro ou cinco andares em meio à vegetação e com, pelo menos, 50% do lote com ambiente aberto. A proposta era uma alternativa para oferecer residências mais baratas e com bastante espaço livre. O MetLife, também no Queens, foi um desses empreendimentos erguidos no centro de Nova York com pequenas dimensões e voltados para as classes trabalhadoras.

Com a ampliação dessas ações, as discussões sobre a ocupação do solo ganharam impulso na cidade e em outras regiões dos Estados Unidos. No início dos anos 1920, foi colocado em marcha o Plano Regional de Nova York e seus arredores com o objetivo de estabelecer uma orientação para o crescimento racional da Big Apple e da sua área metropolitana e do seu transporte público. Diante das torres muito altas que surgiam em Manhattan e da incapacidade de resolver a questão das favelas, aparecem as primeiras sugestões para restringir o volume das novas estruturas em proporção ao próprio lote e garantir um mínimo de ambiente aberto e luz solar, relata Barr.

A necessidade de modificações nas normas de construção são consequência ainda das insatisfações com as leis definidas no zoneamento de 1916 de Nova York, o primeiro conjunto de regras mais abrangentes dos Estados Unidos a sistematizar o uso da terra e reduzir a densidade urbana, de acordo com o professor da Universidade Rutgers. A legislação foi replicada por municípios de todo o país. A visão que se espalhava entre planejadores e arquitetos durante a década de 1920 era a de que o “caminho para a vida boa era encorajar o máximo possível de moradias unifamiliares independentes e isolar as habitações dos negócios e das indústrias”, enfatiza o economista em seu artigo.

FAR: um conceito com muitos “pais” e sua disseminação pelos Estados Unidos e outros países

Muitos foram os textos produzidos ao longo das décadas de 1920 e 1930 que passaram a abordar a questão da limitação das construções baseadas na relação da área edificada com a total dos terrenos. Entre os nomes que se sobressaem nesse sentido e que são indicados como os “pais” do Floor Area Ratio (FAR), o economista Jason Barr aponta o do arquiteto Frederick Ackerman. Com o seu estudo “A população da cidade de Nova York conforme permitido pelas leis de zoneamento e múltiplas residências”, realizado em conjunto com William Ballard e lançado em 1934, Ackerman traz, de maneira inédita, cálculos sobre a área total edificável de quarteirões inteiros e da localidade como um todo, segundo era permitido pelo zoneamento de 1916.

Para o professor, Ackerman e Ballard ajudaram, por meio de seus artigos, a expandir a noção de que o “planejamento pode criar de forma mais eficiente arranjos do tipo cidade-jardim”. O arquiteto Robert Kohn é outro personagem importante na concepção do FAR pelo seu papel na presidência do Comitê de Habitação, em 1935, onde, em parceria com Ackerman, estabelece o conceito do FAR e os mapas de zoneamentos com os limites propostos para Nova York. “Podemos dizer que o Floor Area Ratio nasceu em 1 de março de 1936”, afirma o economista. Nessa data, foi apresentado um relatório aos órgãos públicos ligados à moradia da cidade com a indicação de incorporar no código de zoneamento o FAR.

Apesar de não ter se tornado lei, o material de Kohn detalha um novo método de rezoneamento para Nova York. “Em vez de ter três mapas separados como nos códigos de 1916 – um para recuos de altura, um para cobertura de lote e um para uso ou tipo de construção –, recomenda-se que a utilização e o volume sejam regulamentados simultaneamente dentro das zonas prescritas – uma ideia que acabou sendo incorporada em todo o município em 1961”, esclarece Barr. Com o início da Segunda Guerra Mundial, todas as iniciativas para alterar a legislação de zoneamento da localidade foram adiadas.

No final da década de 1940 e nos anos 1950, os debates sobre as mudanças nas regras para as construções voltaram a ganhar força nos Estados Unidos e a se espalhar para outras cidades norte-americanas e outras nações. Um terceiro nome é acrescentado por Barr à lista de pessoas relevantes para fomentar o FAR: o engenheiro civil Theodore McCrosky, que foi um dos principais divulgadores do Floor Area Ratio. Em relatório feito para o Comitê de Planejamento Urbano do Prefeito (de Nova York) ele definiu o “modelo para o zoneamento moderno, não apenas introduzindo o FAR para limites abrangentes de edificação, mas também incluindo os tipos de mapas de zoneamento que temos hoje”. No documento, o engenheiro e planejador urbano apresentava nove zonas residenciais, três distritos comerciais e uma zona industrial. Atualmente, Nova York conta com dez distritos residenciais principais, oito comerciais e três para manufatura.

No final da década de 1940, ressalta o economista, o Floor Area Ratio era conhecido nos Estados Unidos e nos anos 1950 ele começou a fazer parte de códigos de zoneamento em todo o território norte-americano. “As discussões iniciais aparecerem em Chicago em 1951, em São Francisco em 1952 e em Boston em 1953”, salienta. Conforme Barr, em 1957, Chicago implementou o FAR em suas leis de ocupação e uso do solo e, depois disso, ele foi abraçado por todo o estado de Illinois. Já Nova York, mesmo com os debates que vinham acontecendo desde o final da década de 1920, adotou o índice como sua principal ferramenta para limitar o volume da construção apenas em 1961.

A legislação criou grandes faixas de terra urbana com taxas de área máxima muito baixas, pondera o economista. “Os fundadores do FAR sentiram que os municípios deveriam se parecer mais com a cidade-jardim ideal”, frisa Barr. Ele argumenta ainda que nem a publicação do livro Morte e Vida das Grandes Cidades, de Jane Jacobs, e os fracassos da moradia pública, remoção das favelas e renovação urbana nos anos 1960 abalaram a confiança no FAR ou evitaram que ele fosse empregado além das fronteiras dos Estados Unidos, abrangendo diversos países, como o Brasil, e o transformando em um dos mecanismos de planejamento mais populares no mundo. “Para o bem ou para o mal, o Floor Area Ratio continua triunfante”, conclui. 

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