As lojas de rua têm enfrentado seguidos obstáculos para suas sobrevivências, mas o futuro guardará espaço para elas
Um endereço ideal pressupõe conveniência, atender as necessidades básicas de produtos e serviços com uma simples caminhada. O café da manhã na base do prédio, o “vou ali na farmácia”, o puxar o carrinho abarrotado de frutas, o descer do prédio no sábado para cortar o cabelo, o levar o pet na praça da esquina. A saúde de uma cidade passa pela frequência de pessoas caminhando em espaços públicos, com senso de comunidade, sensação de segurança, civilidade e capacidade de consumo para as necessidades básicas, e a loja no passeio é um estímulo vital a este chamado Ballet das Ruas. Cada ponto comercial é uma sala de aula formando microempreendedores, e cada compra local, um ato social de fortalecimento da economia interna. O fato é que este até então Melhor Estilo de Vida foi atingido por quatro ondas fortes e está
morrendo.
A primeira onda decorreu da dificuldade do estado de prover um ambiente público (que nada mais é do que a calçada no entorno da porta da loja de rua) de limpeza iluminação, mobiliário urbano, paisagismo, jardinagem e presença de segurança com poder de polícia. Esta ineficiência, recorrente e duradoura, preparou o ambiente para a segunda onda: os shopping centers.
Hoje responsáveis por 1/3 do consumo total brasileiro, esses espaços privados de acesso público oferecem justamente o que o espaço público deixou de oferecer: segurança, mobiliário urbano, acessibilidade, comunicação eficiente, ordem no aparato publicitário, regras urbanísticas e mais fomento de atividades culturais e de entretenimento para a sociedade. Este movimento no mercado de varejo reconfigurou a função dos polos de rua, que passaram a atender um consumidor de baixo poder aquisitivo. A morfologia das cidades brasileiras passou a ser esta: ar condicionado, mármore e cinema para o consumo na classe média e loja de rua em ambiente degradado para o cidadão-consumidor de menor renda. Veio então a terceira onda, gigantesca, uma hecatombe que atingiu ao mesmo tempo a loja de rua e os shoppings, na mesma intensidade. Estoques de produtos sem fim, por menor preço, a uma distância menor que uma caminhada: o e-commerce, que oferece melhor preço do que a loja de rua e maior comodidade do que o shopping center. Muitos negócios simplesmente desapareceram, suplantados pela eficiência tecnológica, com lojistas de rua e de shopping, simultaneamente, sendo substituídos diariamente pelas compras
online.
Veio então a quarta onda: a pandemia da covid-19: boquiabertos, os microempreendedores foram impactados pelo fechamento compulsório dos negócios por razões sanitárias. Rolando meu feed de notícias durante a quarentena, notei, perplexo, o enorme número de pessoas que ainda considera o lojista de rua que luta para manter as portas abertas um capitalista que só pensa no lucro, em detrimento da saúde das pessoas, quando, na verdade, sua atividade é a própria saúde dos ambientes urbanos. A formação de um polo de rua, a meu ver, é como um delicado tecido vivo da natureza. Leva anos para se formar e é extremamente sensível a mudanças climáticas. Fechar a loja de rua em plena terceira onda (e-commerce) ou na quarta (pandemia), sem nenhuma campanha de revigoramento do comércio local, sem nenhum regramento que facilite a organização e articulação dos lojistas em polos de rua, sem nenhum refresco no IPTU de 2021 ou dos encargos incidentes sobre a folha de pagamento, é uma incompreensão absoluta, sobretudo dos gestores que se dizem sensíveis às questões sociais, porque a saúde da loja de rua é vital para uma cidade saudável. Culturas mais desenvolvidas, como a inglesa e a americana, perceberam há
muito a delicadeza da situação, e, reconhecendo que a deterioração dos polos de rua é foco gerador de problema social, vêm implementando em escala os chamados TCM (Town Center Management) e BID (Business Improvement Districts), que nada mais são do que iniciativas no rumo da revitalização dos espaços de rua e da harmonia entre os lojistas e os poderes públicos, que passam a compartilhar a gestão. É passada a hora de enxergarmos o comércio local como uma espécie rara, em extinção, e dedicar a ele todos os cuidados que merecem as espécies ameaçadas.
Não importa o quanto erremos: a ressureição das lojas de rua será sempre possível, porque o homem continuará sendo um ser social analógico. Por isto, ainda há esperança na capacidade destes lojistas de se reinventarem com atividades omnichannel, integrados aos e-commerces e proporcionando uma conjunção de rua viva, eficiência logística e gestão compartilhada entre o público e o privado.
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