Em um momento em que o mundo é impactado pela pandemia do coronavírus e pelas mudanças climáticas e o futuro das cidades volta a ser destaque nos debates entre poder público, empreendedores e sociedade, o conceito e as ferramentas de placemaking (em tradução livre, fazendo lugares) oferecem alternativas para repensar a concepção dos ambientes urbanos.
“Se a arquitetura é música congelada e o planejamento é composição, o placemaking é uma performance de rua improvisada. E é essa improvisação, esse processo interativo de criar locais dos quais as pessoas querem fazer parte, que pode realmente produzir um futuro do qual todos queremos participar”, definiu Fred Kent, considerado um dos precursores e principais ativistas do placemaking. Economista e mestre em Geografia Urbana pela Universidade de Columbia, Fred é um dos fundadores do Project for Public Spaces (Projetos para Espaços Públicos – PPS), organização sem fins lucrativos fundada em 1975.
O placemaking baseia-se na ideia de que bairros, ruas, parques ou praças de uma localidade devem ser projetados pensando nas pessoas que irão utilizá-los e as envolvendo no desenvolvimento de lugares acessíveis, dinâmicos e que de fato serão usados. Além da maior participação das comunidades na revitalização, qualificação e gestão dos espaços urbanos, considerando para isso as particularidades físicas, culturais e sociais que definem cada região, e da aproximação com os planejadores das cidades, o PPS acredita que essa alteração de foco dos projetos gera conexões mais fortes entre a população e os ambientes, já que eles funcionam de acordo com as necessidades daqueles que vivem, trabalham e se divertem nesses pontos. Outra consequência direta dessa visão é a identificação e o cuidado que os usuários passam a ter com os locais. “Todo mundo tem direito de morar em um ótimo lugar. Mais importante ainda, todos têm o direito de contribuir para tornar ótimo o lugar onde já moram”, declarou Fred em evento que deu início aos trabalhos do Conselho de Liderança Placemaking, em Detroit (EUA), em 2013.
Apesar de o termo ter sido disseminado pelo Project for Public Spaces a partir da metade dos anos 1990, tanto o placemaking como o próprio PPS têm suas origens na década de 1960, quando pensadores como William “Holly” Whyte e Jane Jacobs passaram a defender que as cidades deveriam ser locais convidativos e vivos, com as pessoas ocupando as ruas e sendo o centro dos projetos e não mais carros e shoppings centers. Fred contou em entrevista para o site TPBO – The Place Brand Observer que se considera basicamente um organizador comunitário com curiosidade especial pelos ecossistemas humanos e em como eles podem apoiar a vida social e econômica das comunidades. E esse interesse, enfatizou, veio depois que ele organizou o primeiro Dia da Terra de Nova York, em 1969.
Após esse evento, Fred decidiu voltar para a Universidade Columbia e estudar Geografia e Antropologia, onde teve como mentoras a antropóloga Margaret Mead e Barbara Ward, pioneira em desenvolvimento sustentável. “Eu caí em um grupo que chamo de Idade de Ouro na pesquisa da vida comunitária. Jane Jacobs, Alan Jacobs, Donald Appleyard, William “Holly” Whyte e Margaret Meade foram líderes nesse segmento durante o final dos anos 1960 até meados dos anos 1970”, recorda. Embora tenha aprofundado o seu olhar sobre os ambientes urbanos com todos eles, foi William H. Whyte quem teve a maior influência sobre Fred e o trabalho realizado em conjunto com Kathy há mais de quatro décadas no PPS, que foi lançado com o objetivo de investigar e aplicar os conceitos mais humanistas e focados nos usuários e as metodologias elaboradas por Whyte.
Três anos mais tarde, Fred e Khaty perceberam que havia muito mais a aprender e a aperfeiçoar na esfera pública e decidiram continuar com as ações do Project for Public Spaces. Nessa época, juntou-se a eles o terceiro cofundador do PPS, Steve Davies, que é formado em Estudos da Arte e Ambientes pelo Williams College (Massachusetts, EUA) e mestre em Arquitetura pela Universidade da Califórnia (Berkeley, EUA). A expansão da organização para a assistência técnica de iniciativas e outras atividades começou em 1980, com a colaboração com Whyte na recuperação do Bryant Park, localizado em Manhattan. Pouco usado pelos nova-iorquinos devido ao tráfico e uso de drogas no parque, as sugestões do PPS envolveram desde entradas mais abertas para as ruas, instalação de quiosques de alimentação até o acréscimo de cadeiras móveis. As modificações aliadas a uma gestão contínua ajudaram a transformar o espaço.
Uma boa cidade é acessível, sociável, bonita e bem aproveitada pelas pessoas
Desde sua fundação, o Project for Public Spaces idealizou diferentes planos de melhorias de locais pelo mundo, como o lançamento do Instituto de Parques Urbanos, a série de conferências Futuro dos Lugares e o programa de Mercados Públicos para ampliar os seus impactos e aprimorar sua sustentabilidade financeira. Mas, foi na década de 1990 que Fred passou a ver a comunidade como a especialista na concretização de ambientes públicos, chamando a atenção para a ideia de que as pessoas deveriam contribuir para a definição dos espaços que utilizam.
Essa ruptura com o modo tradicional de planejar (centrado no projeto e design) levou à definição do conceito de placemaking, que ganhou mais visibilidade a partir de 1995 e da publicação do livro How to Turn a Place Around (em tradução livre, Como mudar um lugar), em 1999, que estabeleceu os princípios do, hoje, movimento internacional, que conta com Conselhos de Lideranças em Placemaking em operação em diversos países, inclusive no Brasil.
Segundo o PPS, os parâmetros do placemaking ajudam os moradores de uma região a integrar opiniões distintas, a traduzir essa visão em um plano e programa de uso e, por fim, a garantir a sua implementação de maneira sustentável. Ainda de acordo com a organização, essas diretrizes contribuem para se ter bons ambientes públicos, que seriam aqueles onde as trocas sociais e econômicas acontecem, assim como as comemorações e os encontros entre as pessoas e suas diferentes culturas.
A partir do conhecimento acumulado ao longo de quase 50 anos de trajetória, o PPS definiu quatro características que fazem os lugares serem bem-sucedidos: eles são acessíveis, confortáveis e bonitos, sociáveis e os usuários estão envolvidos em atividades nessa área. Para Fred, o desenvolvimento econômico e o placemaking estão entrelaçados. “Um bom espaço naturalmente gera inovações. Praças, mercados, ruas sociais ativas criam uma atmosfera para a improvisação local”, argumentou na entrevista ao site TPBO – The Place Brand Observer. Segundo ele, para manter as cidades atrativas no futuro é preciso fazer avaliações contínuas para conservar as regiões em desenvolvimento usando a improvisação como ferramenta para empreendedores locais. “São os ambientes públicos que criam oportunidades de crescimento”, reforçou.
Na mesma conversa, quando questionado sobre as principais barreiras para proporcionar lugares vivos, Fred ponderou que são os profissionais que desenvolveram sua disciplina (áreas de atuação) em torno de suas agendas. “Os engenheiros de trânsito, o pessoal de transporte, eles são ‘donos’ das ruas. Os designers são os ‘donos’ dos prédios. E é o edifício, da maneira como foi projetado – não da forma como os cidadãos o usaram – que se tornou a agenda para eles. E esses profissionais foram julgados por outras pessoas da mesma especialidade, e não pelos resultados nas comunidades onde eles construíram”, complementou Fred na matéria da Humanität – Cities as human habitats . Conforme ele, esse método de planejar costuma ser grande parte do fracasso dos empreendimentos, pois os moradores não recebem algo que atende as suas necessidades. “Quando você se concentra no local, muda tudo. E é essa alteração que realmente entrega os resultados que estamos procurando”, enfatizou. Fred pondera ainda que no momento em que isso acontece e a comunidade passa a ser a especialista, não se trata mais apenas de design e sim da criação de um espaço. “E para isso, são necessárias várias pessoas trabalhando juntas”, frisa.
Transformando lugares públicos em novos destinos para a população
Um exemplo de placemaking apontado por ele é o Campus Martius Park, em Detroit (EUA). A região central, assim como boa parte da cidade, foi afetada pelo fechamento das fábricas de automóveis e pela consequente crise econômica e social e se encontrava assolada. Um grupo de moradores reuniu-se para idealizar um parque na área, revitalizando o ambiente e atraindo as pessoas novamente para essa localidade, que passou a oferecer um espaço para piqueniques, concertos e filmes. Anos depois, a comunidade em conjunto com o PPS levou uma praia urbana para dentro do Campus Martius, com pontos para jogos, cafés, mercados e outras atrações. “E esse se tornou, de longe, o maior destino de Detroit e fez parte da incrível reviravolta de todo município. Portanto, projetos orientados pelo design, pelo lugar, pela comunidade e para programas são soluções e direcionamentos alternativos de como planejar cidades do futuro”, analisou Fred na conversa publicada pela Humanität – Cities as human habitats.
Outra iniciativa destacada por ele ocorreu em Toronto, no Canadá. A partir da mobilização de uma moradora, gestante, e de outros voluntários, foram promovidas uma série de melhorias no parque Dufferin Grove, que estava malcuidado e não oferecia segurança para os usuários. Segundo Fred Kent, eles começaram instalando um forno para pães no ambiente e uma cozinha ao ar livre, o que trouxe as pessoas de volta ao lugar, que passou a contar também com uma agenda de eventos, movimentando uma área que estava abandonada. “A estratégia para implementar algo assim é mais leve, rápida e barata, algo que defendemos na nossa organização.”
O redesenho e o desenvolvimento das praças Centenário e Parramatta foram o ponto de partida para um plano maior de placemaking em Parramatta, na Austrália, outra experiência apreentada. Trabalhando com o governo municipal, o Project for Public Space ajudou a cidade a garantir que a visão da comunidade conduzisse as mudanças nos espaços e gerasse uma experiência única com o design. As praças viraram pontos para atividades frequentes, mercados e festivais. Modificações essas que acabaram atraindo novos negócios para a região. A parceria resultou também na alteração de políticas da prefeitura local para permitir aos moradores programarem os espaços públicos com mais liberdade.
Os projetos são muitos e envolvem ainda ações na Times Square em Nova York (EUA), no mercado ByWard em Ottawa (Canadá), no Parque México, na Cidade do México, no Distrito de Inovação de Oklahoma (EUA) e, mais recentemente, na escola Middlesex em Concord (Massachusetts, EUA). Ao todo, o PPS já realizou planos de placemaking em mais de 3,5 mil comunidades em cerca de 50 países. Fred e Kathy estão à frente ainda do Placemaking Fund, também uma organização sem fins lucrativos que tem como meta promover mudanças sociais e ambientais em grande escala. Para isso, contam com dois programas: o Social Life Project e o PlacemakingX. O primeiro é voltado para a divulgação, por meios digitais, apresentações e projetos, de ações em espaços públicos de todo o mundo que deram certo. Já o PlacemakingX é uma rede global de líderes para a aceleração do movimento de placemaking como forma de criar comunidades inclusivas e saudáveis.
Fontes: Project for Public Spaces, Placemaking Fund, PlacemakingX e Social Life Project
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