Tombamento

O modelo atual de preservação do patrimônio histórico falhou. Além de não conseguir presevar os imóveis, impacta negativamente seus entornos e o desenvolvimento urbano.

Aproximar a moradia das pessoas de seus locais de trabalho, de lazer, saúde e educação, melhorando a mobilidade e reduzindo a necessidade de longos percursos para a realização de diferentes atividades. Esse é um dos principais pilares defendidos em planejamentos urbanos mais contemporâneos e sustentáveis. Mas, como fazer isso e permitir a expansão das cidades respeitando o patrimônio histórico e artístico? O tema foi debatido recentemente no webinar Tombamento versus Crescimento promovido pelo Fórum Urbanidade em seu canal no YouTube .

A partir da realidade de Brasília (DF), tombada pela Unesco como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade em 1987, o arquiteto e urbanista Marcelo Brito, diretor substituto do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan; o engenheiro civil Paulo Muniz, fundador do Conselho de Desenvolvimento Econômico, Sustentável e Estratégico do Distrito Federal (Codese-DF); e a arquiteta e urbanista Romina Caparelli, produtora do programa “Assim é Brasília”, em exibição na rádio CBN, discutiram as possibilidades de adensamento da capital brasileira sem descaracterizá-la.

O tombamento não pode engessar as cidades, sentencia Paulo Muniz. “É preciso crescer e adaptar as localidades ao modo de viver do cidadão”, frisou ele, que é diretor superintendente da construtora Conbral, uma das mais antigas do setor em atividade na capital federal. Ele acrescenta que Brasília foi pensada, em um primeiro momento, para uma população de 500 mil habitantes. Atualmente, a capital federal tem cerca de 3, 5 milhões de habitantes, conforme estimativa do IBGE, mas apenas 250 mil moradores na região administrativa Plano Piloto, onde ficam as superquadras idealizadas por Lucio Costa. “A densidade é muito pequena”, diz. Conforme dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal, a densidade demográfica no Plano Piloto é de 5,12 hab/ha.

Paulo Muniz avalia que é possível manter o conjunto urbanístico (que envolve também alguns prédios projetados por Oscar Niemeyer) e ocupar melhor a região, flexibilizando a setorização dos espaços planejada por Lucio Costa. “Por que não agregar moradias em áreas de comércio ou de bancos para que as pessoas possam viver com menos deslocamentos?”, questiona. Segundo ele, é preciso adensar melhor e ocupar melhor a cidade sem agredi-la, e cita, como exemplo, Barcelona, na Espanha, que continua evoluindo e preservando a sua história.

Integrante do movimento Urbanistas por Brasília e do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios Históricos no Distrito Federal, Romina concorda que há quadras vazias que poderiam ser melhor aproveitadas, e complementa que o número de imóveis ociosos em Brasília também é grande. “Tem regiões previstas no próprio planejamento da capital para serem residenciais e que estão subutilizadas, como a (avenida) W3, que permite o uso misto (comércio e casas), mas há muito tempo carece de investimentos para voltar a ter a vida que teve no início da cidade”, sinaliza. Conforme a arquiteta, não é necessário fazer modificações significativas no aparato legislativo ou no desenvolvimento urbano para levar mais pessoas para o Plano Piloto (área que abrange as Asas Norte e Sul da capital federal) e, sim, empregar os instrumentos existentes (como IPTU progressivo) para ofertar, no mercado, terrenos que estão parados, mas que já contam com infraestrutura de água, esgoto, eletricidade e transporte. “Com isso, você permite que novos imóveis estejam disponíveis para quem quiser morar no Plano Piloto. A gente sabe que o custo de vida é mais caro; porém, a qualidade de vida e a estrutura urbana oferecida é melhor do que em outros locais”, assinala.

Patrimônio como fator de desenvolvimento

Uma particularidade sobre Brasília, apontada por Marcelo, é que o seu tombamento é sui generis, pois a sua natureza é urbanística. Devido a isso, segundo ele, a renovação do município tem que considerar os parâmetros que levaram à sua preservação, que são, exatamente, os da organização espacial. “Quando se vê o desenho da cidade, que expressa a síntese do movimento moderno no mundo, com o eixo principal e as asas Norte e Sul, esses são os elementos que fizeram a capital ser tombada, que conferem singularidade a esse lugar e que fazem com que ele seja identificado”, comenta.

Seguindo à risca a concepção de Lucio Costa, o Plano Piloto tem sua paisagem horizontalizada, com grandes espaços livres e amplitude visual, com exceção da parte central, que conta com edifícios mais altos e próximos. Outra característica marcante são as quatro escalas estabelecidas: a monumental (onde fica a Esplanada dos Ministérios e outras construções simbólicas), a bucólica (parques, áreas arborizadas e canteiros ornamentais), a residencial e a gregária (comércio, agências bancárias, consultórios, escritórios, hotéis e centros de diversões).

No entanto, o arquiteto Marcelo Brito, – que é doutor em Gestão Urbana pela Universidade Politécnica da Catalunha (Barcelona) – observa que, quando se trata das pessoas que precisam se movimentar entre o Plano Piloto e as localidades do entorno, é preciso pensar em fomentar novas centralidades urbanas, levando para esses lugares serviços, atividades econômicas e mais autonomia. “Não se pode querer que todas as funções relacionadas ao desenvolvimento estejam centradas no Plano Piloto. A configuração da capital, enquanto cidade política e administrativa, deixa clara a vocação desse território que é protegido”, enfatiza.

Marcelo afirma que o Iphan tem feito um esforço para definir portarias que regulamentam o tombamento das diferentes áreas, pois cada uma delas têm suas particularidades de setorização e de escalas que precisam ser respeitadas. “Não se aplica a mesma regra em todo o Plano Piloto”, frisa. Romina lembra, também, que, muitas vezes, o tombamento acaba “levando a culpa” pela não realização de um projeto. “Isso acontece, em vários casos, pela má interpretação que é feita do que pode ou não ser realizado em um local preservado. Isso leva muitas pessoas a não entenderem o que é agregado de valor no seu dia a dia por causa desse tombamento e as impede de amar Brasília”, considera. De acordo com ela, falta mais conhecimento à sociedade em geral sobre o que implica ter uma cidade conservada.

A opinião de Romina é compartilhada por Marcelo, que disse fazer mea-culpa em relação ao trabalho do Iphan em educação patrimonial, divulgando mais, explicando melhor e oferecendo experiências interativas para a população. O arquiteto argumenta que a capital federal não aproveitou ainda todo o potencial que tem por ser tombada. “O patrimônio, se bem articulado, como vem fazendo Portugal, por exemplo, que usa seus ícones de identidade no incentivo da economia criativa, gerando emprego e renda, pode ser um fator de desenvolvimento”, salienta. Nesse sentido, Romina recorda que Brasília integra a Rede de Cidades Criativas da Unesco e que a sua sinalização viária faz parte do acervo permanente do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). “E você não vê isso sendo explorado. São símbolos tão conhecidos como a Torre Eiffel, que poderiam gerar recursos a partir da economia criativa”, ressalta. Para ela, só se gosta daquilo que se conhece e, por isso, a primeira ação de educação patrimonial a ser feita é a de aproximação das pessoas com a cidade que é delas.

Brasília precisa aliar tombamento, visão de planejamento territorial e melhoria da mobilidade

A construção da ponte Juscelino Kubitschek é, segundo Marcelo, uma prova de que a capital não está “congelada” por causa de seu patrimônio preservado. Na proposta inicial de Brasília não havia previsão para uma terceira ponte, mas a necessidade surgiu a partir do seu crescimento. “Para aprová-la, levamos em consideração o que ela traria de valor ao bem tombado”, explica o arquiteto. O mesmo processo foi aplicado ao espelho d’água do Congresso Nacional, que tinha como ideia original a colocação de um fosso. “Como esse elemento não corresponde a uma realidade da arquitetura do século XX, e como nenhum dos prédios daquela escala monumental possuía um fosso, ele foi vetado e o espelho d´água aprovado no lugar foi desenhado pelo (Oscar) Niemeyer. Se uma iniciativa melhora a qualidade de vida das pessoas e respeita os valores ali protegidos, com certeza, será bem-vinda”, acrescenta. O selo “CAU/DF: Arquitetura de Brasília” é outro exemplo dado por Romina. A premiação é voltada para edificações que tiveram intervenções respeitosas com o projeto original. “Um dos mitos da cidade é o de que não se pode mudar nada. Mas, conservar não é manter (uma construção ou local) parado no tempo. É manter de forma que estejam sempre visíveis as qualidades daquele bem”, sentencia.

Quando questionados sobre o que modificariam na capital federal e sobre aquilo que não é possível de ser feito devido ao tombamento, os participantes apontaram alguns caminhos. Para Romina, Brasília precisa completar o Plano Piloto e de soluções de mobilidade. Para Paulo, muito do problema de deslocamento das pessoas é resultado da ocupação desordenada da cidade. “O setor imobiliário é sempre taxado de vilão nas discussões sobre tombamento, mas nós somos o segmento formal que quer seguir as regras – enquanto Brasília está cerca de 50% tomada pela informalidade, com construções que agridem o Distrito Federal. Mas, para isso, as normas precisam ser mais claras”, indica. Outro ponto destacado pelo engenheiro é a flexibilidade que poderia ser dada nas bordas da área tombada. “Estamos discutindo, agora, a possibilidade de fazer um parcelamento urbano na antiga região da Rodoferroviária. Poderíamos ter uma capital mais adensada naquela localidade”, adianta.

Paulo também defende que as cidades do entorno de Brasília sejam desenvolvidas, buscando a vocação econômica e oferecendo incentivos para a geração de emprego em cada uma delas. “Mas isso não exclui a necessidade de ter mais residências no Plano Piloto, pois as vagas de trabalho continuarão a existir ali e vão atrair mais pessoas. O maior adensamento do Centro, por exemplo, tornaria a moradia mais acessível”, avalia. Romina e Marcelo apontam que não é preciso “espalhar mais” a capital, e, sim, prever maneiras para contemplar mais residências utilizando melhor os espaços já existentes e levando mais funcionalidades para as antigas cidades-satélites. “E nesse sentido o setor privado pode, junto com o poder público, contribuir para essa transformação do Distrito Federal”, projeta Marcelo, que acredita que falta um planejamento territorial mais objetivo para toda a região. “Temos superquadras na Asa Norte que estão vazias e precisam ser construídas, assim como elementos do setor cultural que foram previstos, mas não realizados. Se a gente seguir a lógica de completar o projeto de Brasília já estaria de bom tamanho”, pontua o arquiteto.

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