Cidades-esponja

A adoção nas cidades das soluções que a natureza nos oferece para lidar com enchentes e alagamentos (Cidades-esponja) tem se consolidado como alternativa sustentável à infraestrutura cinza

Lagos artificiais, jardins de chuva, praças alagáveis, telhados verdes e calçamentos drenantes são algumas das soluções que vem sendo disseminadas como forma de evitar as enchentes nos centros urbanos. São iniciativas que, somadas, contribuem para a absorção e/ou direcionamento das águas, prevenindo os estragos, desastres e prejuízos financeiros que grandes volumes de chuva podem causar. Especialmente em locais onde o asfalto e outros pavimentos impermeáveis, largamente utilizados durante o processo de urbanização das cidades, impedem a absorção das águas pelo solo.

Esse conjunto de medidas tem sido adotado na criação de “cidades-esponja”, termo empregado para designar as localidades que estão priorizando essas soluções no planejamento e desenvolvimento urbano. O conceito foi concebido pelo arquiteto paisagista chinês Kongjian Yu que tem transformado cidades na China, na Rússia, nos Estados Unidos e na Indonésia a partir de uma ideia relativamente simples: permitir o fluxo natural das águas. “É usar um sistema pantanoso, um sistema esponjoso, para reter a água, que mantenha a água, ao invés de drená-la”, explica o arquiteto, fundador de Turenscape, uma das principais empresas de arquitetura, arquitetura paisagística e urbanismo da China.

O conceito prevê o resgate do ciclo hidrológico, utilizando os recursos naturais para controle e gerenciamento das águas. “O que fizemos está totalmente errado. Usamos concreto para canalizar um rio, para evitar que a cidade seja inundada, e drenamos toda a água. Estamos preenchendo todos os lagos para construir uma cidade para nós, e isso vai causar inundações e secas. Nós temos que entender que essas infraestruturas cinzas são atualmente assassinas do sistema natural”, argumenta o arquiteto, que se inspirou na experiência agrícola de sua infância, na província de Zhejiang, na China, e na sabedoria ancestral da gestão de água e resíduos para projetar e testar uma série de soluções baseadas na natureza.

Yu dedicou duas décadas ao estudo de uma solução para resolver esse que é um dos maiores problemas das cidades, incluindo Mestrado em Arquitetura Paisagística (Beijing Forestry University) e doutorado em Design na Escola de Graduação em Design da Universidade de Harvard. Sua pesquisa pioneira sobre Padrão de Segurança Ecológica (1995) e Infraestrutura Ecológica, Planejamento Negativo e Cidades-Esponja (2003) foi adotada pelo governo chinês como uma estrutura para campanhas de proteção e restauração ecológica em todo o país. Por sua trajetória, Kongjian Yu  recebeu o Doutor Honoris Causa em Paisagem e Meio Ambiente da Universidade Sapienza de Roma (2017), e Doutor Honorário da Universidade Norueguesa de Ciências da Vida (2019). Em 2020, recebeu a maior honraria da Federação Internacional de Arquitetos Paisagistas (IFLA), o Prêmio Sir Geoffrey Jellicoe.

Qualidade de vida e segurança

Com base nos ensinamentos de Kongjian Yu, o governo da China lançou, em 2015, o projeto piloto Sponge City, abrangendo 30 cidades. A principal motivação foi a grande tempestade ocorrida em Pequim em julho de 2012. As inundações provocaram 79 mortes e prejuízos estimados em 1,7 bilhão de dólares. A partir dessa tragédia, as autoridades chinesas mobilizaram-se na busca por uma solução e definiram essa como uma política pública e prometeram 5,8 bilhões de dólares para incentivar essas 30 cidades-piloto a investirem nas soluções das cidades-esponja. Assim, a partir do Sponge City, a infraestrutura vem sendo reformulada e qualificada para que, até 2030, 80% das áreas urbanas absorvam e reutilizem 70% da água da chuva, pelo menos, conforme a meta do programa. Atualmente, segundo Yu, 250 cidades chinesas estão desenvolvendo projetos com essa finalidade.

As soluções estão baseadas naquelas adotadas nos projetos desenvolvidos por Yu. “Nós removemos o muro de contenção, recuamos os diques e criamos terraços ecológicos para que a terra e a água se encontrem, dependendo dos diferentes níveis de inundação. Então, durante a temporada de lua cheia, é para as cheias; durante a estação seca, o lugar se torna um parque para uso de todos. Trazemos a vida de volta, a água limpa, a vegetação exuberante; os pássaros e os peixes voltaram”, explica o arquiteto. Na província de Hainan, por exemplo, Kongjian Yu projetou o Sanya Mangrove Park, em uma área de 10 hectares às margens do rio Sanya, na área central da cidade, de mesmo nome. O local estava isolado, cercado por altos muros de concreto, cheios de entulho urbano. Em apenas três anos, o lugar foi transformado, a partir da reabilitação dos manguezais, da criação de áreas alagáveis interligadas e de terraços integrados com biovalas para captar e filtrar as águas pluviais, aproveitando o desnível de nove metros da via urbana e criando espaços públicos, com passagens de pedestres, em diferentes elevações. Cinco pavilhões estrategicamente alocados permitem que os visitantes apreciem a beleza, além de fornecer abrigo, sombra e convidar à observação de pássaros. Por esse projeto, Kongjian Yu conquistou o ASLA Professional Awards 2020, conferido pela American Society of Landscape Architects (ASLA).

Em Wuhan, cidade localizada na interseção dos rios Yangtze e Han, com 11 milhões de habitantes, especialistas da empresa global Arcadis trabalharam em cooperação com vários parceiros, como a equipe de alunos de mestrado da Universidade de Tecnologia de Delft, na Holanda, em engenharia hidráulica, gestão de recursos hídricos, arquitetura e urbanismo, no desenvolvimento da Estratégia da Cidade-Esponja para Wuhan, para enfrentar os problemas de enchentes, secas e poluição. O plano prevê a criação de sistemas integrados de estruturas de gestão abrangentes, infraestruturas verdes, um sistema de drenagem urbana melhorado e instalações de armazenamento de água e purificação em toda a cidade. Pavimentos permeáveis e pequenas estruturas de armazenamento de água foram planejados para permitir a reutilização da água e diminuição da vulnerabilidade à seca. De acordo com a empresa, uma vez totalmente implementado, o redesign de Wuhan permitirá que a cidade gerencie 60% da água da chuva.

As cidades-esponja, assim, conseguem evitar inundações e, ainda, armazenam água para refrescar a região em épocas de seca. Somente a solução dos telhados verdes, que retém e filtram a água da chuva, regando as plantas, por exemplo, é capaz de reduzir a temperatura da superfície em até nove graus Celsius, de acordo com o professor Huapeng Qin, da Universidade de Pequim.

A Organização das Nações Unidas (ONU) ratifica esse entendimento.  Na última edição do Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, publicada em 2020, a ONU reforça que as medidas estruturais e não estruturais caminham juntas. “O planejamento urbano, por exemplo, pode ajudar a aumentar a resiliência aos riscos de inundação, ao apresentar sistemas de drenagem que ofereçam espaços para coletar e armazenar a água de inundação com segurança. Assim sendo, a cidade funciona como uma “esponja”, limitando o aumento repentino e liberando a água da chuva como um recurso”, destaca o documento.

Infraestrutura verde e azul

“Esse cuidado com o movimento das águas é vital. Vital porque estamos num período de mudanças climáticas, sejam por ações do ser humano ou – para os que negam – que é natural do planeta. O ponto é que as estruturas não são preparadas para isso, não são pensadas para isso, o que vai gerar um desconforto extremo para nós”, ressalta o engenheiro Olavo Kucker Arantes, presidente do Conselho Brasileiro de Construção Sustentável (CBCS) e um dos titulares da DUX Arquitetura e Engenharia Bioclimática. Para ele, é urgente a priorização desse tema no planejamento de novos empreendimentos, na expansão de novas áreas, e, também, na adaptação do que já está construído.

No caso de um ambiente urbano a ser desenvolvido, uma opção seria a criação de lagoas pluviais, considerando os índices de precipitação e as características geográficas do lugar. “As bacias hidrográficas do local devem ser estudadas. Além da bacia hidrográfica natural, temos microbacias quando desenvolvemos os projetos. Elas têm que ser desenvolvidas para que o alagamento seja planejado”, explica. Entre outros exemplos, ele cita a incorporação de jardins de chuva, de canteiros pluviais e de biovaletas, que ajudam a purificar a água da chuva, que vai infiltrando calmamente pelo solo para recuperação do aquífero. Essas são as chamadas “soluções inteligentes”. “São inteligentes quando usamos o cérebro na sua melhor direção”, reforça Olavo.

O movimento global em torno do tema não é recente. Diversas iniciativas mundo afora já verificam, na prática, os benefícios do investimento na chamada infraestrutura verde e na blue-green infrastructure, a infraestrutura verde e azul, que se apropria dos recursos e soluções da natureza no planejamento urbano, tanto para o controle das águas como para o enfrentamento da crise climática.

Olavo Kucker referencia o exemplo de High Point, bairro planejado de Seattle, em Washington, nos Estados Unidos. O empreendimento multifamiliar – com cerca de 1.500 casas, parque, comércio e serviços – possui um dos maiores sistemas de drenagem de águas pluviais do país. Por estar localizado dentro de uma sub-bacia da bacia hidrográfica de Longfellow Creek – riacho de desova do salmão –, o bairro recebeu investimentos público e privado para que provocasse o menor impacto ambiental possível. As soluções adotadas incluem uma lagoa de águas pluviais, jardins de chuva, biovaletas e calçamento drenante e adoção de técnicas de paisagismo orgânico, que prevê a seleção de plantas nativas e tolerantes à seca, tanto no parque de uso coletivo, como nos quintais das casas. O sistema filtra a água da chuva antes que ela escoe para o riacho Longfellow Creek, protegendo o habitat do salmão. O projeto é reconhecido internacionalmente e conquistou, em 2007, o Prêmio Global de Excelência do Urban Land Institute (ULI).

Em Copenhagen, os prejuízos avaliados em 1 bilhão de dólares provocados pela tempestade que atingiu a cidade em julho de 2011 fizeram com que as soluções de mitigação das  mudanças climáticas passassem a ser um foco urgente. Naquele dia 2 de julho, foram registrados 150mm de chuva em apenas duas horas. No ano anterior, a cidade já havia sido atingida pelo que chamou de “tempestade de 100 anos”. Considere-se que, na cidade, muitos edifícios e serviços estão localizados abaixo do nível da rua e que a água da chuva e o esgoto estão em um sistema de tubulação combinado.  Assim, a água da enchente contaminada penetrou nos edifícios e na infraestrutura da cidade.

As autoridades entenderam que as soluções tradicionais de drenagem, como reservatórios subterrâneos, estão se tornando menos viáveis ​​à medida que as concessionárias ocupam mais espaço subterrâneo. E que eventos climáticos extremos não podem ser gerenciados por sistemas de tubos convencionais. Dessa forma, autoridades públicas dinamarquesas, desenvolvedores privados e proprietários de casas uniram-se em colaboração para o planejamento de soluções locais, envolvendo grupos multidisciplinares e os mais diferentes públicos, considerando as estratégias da infraestrutura verde e azul. Benefícios adicionais, como melhorias na qualidade do espaço urbano, ambiental e de saúde resultantes das melhorias foram comprovados. Batizado de Copenhagen Cloudburst Formula, o projeto – desenvolvido pela Ramboll and Ramboll Studio Dreiseitl para a prefeitura de Copenhagen – foi vencedor do ASLA Professional Awards, em 2016.

Há dez anos, a cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos, vem desenvolvendo o projeto Green City Clean Waters, com o objetivo de tornar os cursos d’água locais mais limpos e os bairros mais verdes. O sistema de esgoto combinado atende cerca de 60% da cidade e, durante o tempo chuvoso, a seção mais antiga do sistema frequentemente transborda. Como resultado, bilhões de galões de águas pluviais e esgoto diluído fluem para os cursos d’água locais a cada ano. A iniciativa atende regulamentações estaduais e federais, incluindo a chamada Lei da Água Limpa, que exigem que a Filadélfia reduza pelo menos 85% dessa poluição. O plano, então, estabelece a meta de, em 25 anos, reduzir o volume de águas pluviais que entram em esgotos combinados usando infraestrutura verde, além de expandir a capacidade de tratamento de águas pluviais com melhorias de infraestrutura tradicionais.

Mais recentemente, no final de 2020, o Conselho Regional de Meio Ambiente de Quebec, no Canadá, lançou o programa Québec, ville éponge, que visa integrar o conceito de cidade-esponja na paisagem urbana para ajudar a capital a enfrentar vários problemas de urbanização. Em colaboração com diversos parceiros, a ideia é promover o desenvolvimento de projetos de gestão ecológica da água na cidade. As estratégias já anunciadas estão centradas na multiplicação de infraestruturas verdes para gestão das águas pluviais, como valas com vegetação, bacias de biorretenção, estacionamentos permeáveis e jardins de chuva.

No Brasil, o Conselho Brasileiro de Construções Sustentáveis vem atuando para disseminar o conceito de infraestrutura verde entre os incorporadores, construtores e desenvolvedores urbanos. “No projeto Cidades Eficientes, que desenvolvemos, temos um capítulo só sobre infraestrutura verde”, afirma Olavo Kucker Arantes, presidente do CBCS.  Sistemas de captação e reaproveitamento das águas da chuva são itens de sustentabilidade já previstos na maioria dos novos empreendimentos – em muitas cidades até atendendo a legislação local – assim os telhados verdes e o uso de pavimentos drenantes. O desafio, como destacou Olavo, é rever o que já está construído e adaptar estruturas e sistemas para que sejam capazes de reter, absorver e/ou direcionar as águas pluviais de modo inteligente, respeitando o fluxo natural e eficiente do ciclo hidrológico.

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