Vista aérea da Esplanada dos Ministérios em Brasília, localizada no Eixo Monumental, via que corta o Plano Piloto no sentido leste-oeste. Foto: Marcello Casal Jr |Agência Brasil

Utópicos, padronizados e com uma rígida separação entre moradia, comércio, trabalho e lazer, os espaços idealizados pelo arquiteto e urbanista Le Corbusier em sua Ville Radieuse (Cidade Radiante) influenciaram tanto o desenho como as legislações urbanas de diversas localidades pelo mundo. Apesar do plano nunca ter saído do papel, muitos dos conceitos do também pintor e escultor de origem suíça e naturalizado francês foram abraçados pelo planejamento modernista e trouxeram dificuldades para o desenvolvimento dos municípios que persistem ainda hoje, segregando atividades e tornando a diversidade e a vitalidade desses lugares uma tarefa árdua.

Atualmente, um dos principais esforços dos urbanistas em relação às cidades é “desfazer os erros cometidos no passado”, como aponta o arquiteto e urbanista Anthony Ling, em artigo do site Caos Planejado. Segundo ele, muitos profissionais da área defendem soluções que se contrapõem às disseminadas por Le Corbusier e pelos modernistas, como o uso misto ao invés do zoneamento por funções e das fachadas ativas e contínuas em oposição aos pilotis livres e recuos que deixam as construções isoladas nos terrenos. Outro elemento que distancia os projetos é a mudança do antigo foco de elaboração dos sistemas de transporte a partir dos automóveis para a variedade e conexão dos modais e o protagonismo dos pedestres.

A Ville Radieuse foi apresentada pela primeira vez em 1924 e todos os seus detalhes e proposta de layout geométrico e simétrico foram descritos no livro lançado em 1933 e que tinha o mesmo nome do empreendimento concebido por Le Corbusier para ser aplicado em regiões europeias devastadas pela primeira guerra mundial, como explica matéria do ArchDaily. A visão do arquiteto para essas novas cidades era a de locais com “arranha-céus de alta densidade e idênticos, distribuídos por vastas áreas verdes e organizados em uma grade cartesiana, que funcionassem como máquinas vivas”, como relata o texto. A rigidez e a procura excessiva pela ordem revelam o desejo de Le Corbusier pela forma perfeita – alcançada por meio da repetição do desenho determinado por ele, criando um padrão. A Ville Radieuse era linear e seu plano, “que glorificava a burocratização total da vida da comunidade”, como afirma artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil foi reproduzido por ele em muitas de suas obras.

No centro da localidade planejada por Le Corbusier, ficavam os edifícios pré-fabricados destinados aos negócios, que tinham 200 metros de altura e capacidade para acomodar de 5 mil a 8 mil pessoas. Essas construções em concreto armado eram iguais, em formato de cruz, e equidistantes. Já os bairros residenciais, que estavam separados dessa região, possuíam prédios de 50 metros de altura, cerca de 18 andares, e cada um deles poderia receber em torno de 2,7 mil moradores. A ideia era que as edificações funcionassem como vilas verticais, com parques instalados entre os blocos – oferecendo o máximo de luz e o mínimo de ruído da cidade, conforme o ArchDaily. A comunicação entre essas partes seria realizada por meio de uma plataforma de transporte subterrânea, com trens que levariam os cidadãos de um ponto a outro.

Falta de identidade e de avaliação das diferentes necessidades habitacionais são críticas à Ville Radieuse

A extrema ordenação da Cidade Radiante de Le Corbusier não ficou restrita ao lado externo das construções, com suas fachadas lisas, envidraçadas e herméticas – sem sacadas ou galerias. Ele detalhou ainda como seriam internamente os apartamentos voltados à moradia, padronizando mais uma vez as estruturas, salienta o artigo do Le Monde Diplomatique Brasil, escrito pelo arquiteto Olivier Barancy, autor do livro Miséria do espaço moderno – A produção de Le Corbusier e suas consequências. De acordo com o texto, as unidades teriam uma sala idêntica, fossem elas para duas ou quatro pessoas viverem. Da mesma maneira, a cozinha de um estúdio contava com o mesmo tamanho que teria um ambiente desses voltado para uma família de quatro ou mais componentes.

Ao analisar os projetos de Le Corbusier – os desenhos podem ser vistos na Fondation Le Corbusier, Barancy observa que os estacionamentos previstos para as residências eram seis vezes menores que a demanda. Para ele, isso se deve ao desejo do criador da Ville Radieuse de que as áreas cimentadas não invadissem demais as regiões verdes. O arquiteto comenta também que os espaços arborizados, com “portões fechados para a segurança dos moradores”, são citados, mas não aparecem nas ilustrações. Outro fator ponderado por Barancy é que as sombras dos prédios dentados de Le Corbusier foram pensadas com “base no sol de um dia 21 de junho ao meio-dia. Esse truque fez muita gente não notar que embaixo das muralhas de 50 metros reinaria um microclima de caverna”.

Já a matéria do ArchDaily acrescenta que os blocos habitacionais que foram desenvolvidos inspirados na Cidade Radiante, e que se encontram hoje no entorno da maioria dos grandes municípios, transformaram-se em “incubadoras de pobreza e crime”. O destino de muitos desses lugares, informa o site, acabou sendo a remodelação total dos edifícios ou a demolição. Os esboços de Le Corbusier foram feitos para Paris, Antuérpia, Moscou e Argel. No entanto, foi em Chandigar, na Índia, que ele concretizou o seu ideal de zoneamento e ergueu o Complexo Capitol, formado pela Alta Corte, o Palácio da Assembleia e o Secretariado.

Influência no modernismo e reflexo no urbanismo brasileiro

Uma das cidades que melhor representa a materialização dos conceitos de Le Corbusier e seu impacto nos arquitetos e urbanistas modernistas é Brasília. A capital do País projetada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer segue à risca a proposta de um layout geométrico e perfeito, segregando dessa forma as zonas monumentais onde fica a parte administrativa dos bairros para moradia, que são idênticos. Por ainda não ter a maioria de seus municípios consolidados, o Brasil foi um território fértil para as concepções modernistas que chegavam e que nortearam o desenvolvimento de muitas localidades – sendo os conjuntos habitacionais e as vilas operárias, financiados pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), exemplos desse movimento, segundo texto do arquiteto e urbanista Paulo Sá Vale no ArchDaily.

Vale destaca que a abrangência se estendeu também à legislação urbana brasileira, com a definição dos Planos Diretores se ajustando ao “ideal de modernidade presente em cada período de evolução do pensamento urbanístico contido na academia e na esfera política”. Ele frisa que os primeiros profissionais da arquitetura do País foram influenciados pelo modernismo e pelas orientações da Carta de Atenas – escrita por Le Corbusier em 1933 e que resumia os princípios do zoneamento de atividades, dos grandes blocos edificados afastados e ensolarados e das largas vias conectando as distintas regiões. Para o autor, basta olhar a quantidade de cidades que ainda utilizam o zoneamento por função, proíbem a construção no pavimento térreo e buscam a criação de bairros e unidades residenciais independentes para confirmar essa inspiração.

Diferentemente do imaginado por Le Corbusier com a sua Ville Radieuse, uma das consequências do modernismo foi que os municípios que adotaram seu modelo dificilmente são considerados utópicos ou contribuem para a formatação de uma sociedade melhor, com mais qualidade de vida, como escreve a fotógrafa de arquitetura Gili Merin no ArchDaily. Brasília, cita ela, tem sido inclusive “duramente criticada por ignorar os hábitos e desejos dos moradores e por não fornecer ambientes públicos para encontros urbanos”. Desafios esses que precisam ser enfrentados em muitas capitais do Brasil e do mundo para reverter os efeitos urbanos nocivos da aplicação dessa concepção.

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