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Defensor do retorno ao urbanismo  tradicional, em detrimento do modernismo, o Príncipe Charles tem sido um surpreendente ativista das cidades para as pessoas.

Crítico da arquitetura e dos desenvolvedores modernistas da Grã-Bretanha e do impacto de suas construções nas cidades, o príncipe Charles acredita que é preciso olhar para o passado para conseguir planejar o futuro. Acusado por profissionais e analistas da área de “querer voltar o relógio para uma Idade de Ouro”, como ele mesmo aponta em artigo para a revista Architectural Review, o herdeiro da coroa britânica sustenta que é necessário um retorno aos princípios tradicionais do design para que o crescimento urbano das regiões seja sustentável e atenda às demandas de seus moradores. Em sua visão, os empreendimentos devem ser projetados para criar comunidades diversas e caminháveis, com uso misto do solo, interação com a natureza e adoção de soluções ecológicas.

A preocupação com a escala humana, a estética e a qualidade das edificações é outro ponto-chave da concepção de localidades do príncipe de Gales, como ressalta o arquiteto Richard Voss em texto para o Urban Design Forum. A publicação recorda também que o filho mais velho da rainha Elizabeth II já afirmou que: “ao colocar o pedestre em primeiro lugar, você desenvolve esses locais habitáveis, eu acho, com mais atração, interesse e personalidade”. Segundo o herdeiro do trono, a ênfase apenas na função e a divisão das cidades em zonas residenciais e comerciais – com o mesmo estilo e acabamentos industrializados sendo utilizados em diferentes partes da Grã-Bretanha – são alguns dos maiores problemas dos ambientes modernos erguidos no século 20.

A opinião foi defendida por ele no artigo da Architectural Review, no qual argumentou ainda que essa formatação dos espaços foi idealizada para priorizar o uso dos automóveis em detrimento de outros meios de transporte. O texto termina com a apresentação de dez conceitos que respaldam a percepção arquitetônica e urbanística do príncipe Charles, entre eles o de que as construções devem ser adequadas à paisagem do terreno onde serão instaladas e que novos projetos precisam estar em sintonia com as estruturas existentes. Ambientes bem elaborados, que incentivem as pessoas a caminharem, e a recuperação das ruas dos carros complementam a lista de princípios.

O envolvimento e a influência do herdeiro no segmento são bem anteriores a sua participação na revista. Em 1989, ele lançou o livro A Vision of Britain: A Personal View of Architecture, que traz seu posicionamento sobre o modernismo e seus reflexos. A obra é um desdobramento de uma entrevista da BBC com o príncipe sobre o tema. Também nos anos 1980, o futuro rei abriu a Prince’s Foundation for Building Community, hoje denominada Prince’s Foudation, que promove cursos e treinamentos em artes tradicionais, design, bem-estar, engenharia e atua na revitalização de comunidades.

Ao longo das décadas, suas declarações sobre arquitetura e urbanismo foram alvo de polêmicas e discussões, como a feita no 150º aniversário do Royal Institute of British Architects, em Londres (Inglaterra). Na ocasião, ele atacou a proposta de extensão modernista da National Gallery, em Trafalgar Square, um dos símbolos da capital inglesa, como informa matéria do jornal The Sydney Morning Herald. Sua oposição contundente levou ao cancelamento da obra e outro plano foi elaborado para o museu. A interferência do herdeiro em iniciativas que fogem da sua concepção já rendeu críticas de arquitetos como Norman Foster e Zaha Hadid.

Poundbury: uma visão colocada em prática

Mas, de todas as atividades do príncipe Charles relacionadas ao desenvolvido urbano, a mais importante é a implementação de Poundbury, empreendimento no Sudoeste da Inglaterra. Construído próximo a Dorchester, no condado de Dorset, o local de 160 hectares começou a ser planejado em 1987 pelo Ducado da Cornualha, fundo estabelecido em 1337 para financiar o herdeiro da coroa britânica. O masterplan do lugar foi projetado pelo arquiteto Léon Krier, um entusiasta do Novo Urbanismo, como destaca o site de notícias Insider. As ideias do movimento aliadas aos conceitos do príncipe de Gales nortearam a criação de Poundbury.

As obras dos quatro bairros definidos por Krier iniciaram em 1993 após a apresentação dos planos em audiência pública, que resultou na inclusão de sugestões dos participantes na iniciativa – que foi efetuada em quatro fases distintas, explica o arquiteto Richard Voss no artigo do Urban Design Forum. Prevista para ser concluída em 2025, a localidade reúne atualmente cerca de 4 mil residentes. Conforme Voss, o sucesso da cidade baseia-se em cinco pontos: o foco na comunidade, domínio urbano de alta qualidade, função de uso misto, escala e controles apropriados e uma abordagem sustentável de longo prazo. Ele complementa que a alta densidade dos bairros urbanos de Poundbury proporciona espaços atrativos, onde a população pode “viver, trabalhar, fazer compras e se divertir”.

O arquiteto chama a atenção também para os estacionamentos, que ficam em pátios paisagísticos – que possuem área extra para salas de jogos e oficinas. “Portanto, esses ambientes possivelmente permitirão uma flexibilidade futura nos arranjos de moradia e, claro, uma maior oferta para trabalhar em casa”, avalia. As habitações sociais de Poundbury, que representam 35% dos imóveis residenciais disponíveis, são edificadas nos mesmos altos padrões das unidades privadas, revela o The Sydney Morning Herald. Voss agrega que os materiais usados são inspirados no estilo arquitetônico de Dorset e têm a sua qualidade e emprego controlados pelo Ducado da Cornualha por meio de contratos vinculativos com cada desenvolvedor. “Muito da aparência do lugar é ditado por um código de design que os habitantes e construtores devem seguir”, detalha o jornal de Sydney.

A cidade possui ainda quatro centros comerciais distribuídos a uma distância que permite que as pessoas caminhem até eles e 80 empresas que contratam em torno de 2 mil cidadãos. “Trata-se de criar um local para viver, não apenas para dormir”, disse o gerente de Desenvolvimento Imobiliário de Poundbury, Jason Bowerman, ao The Sydney Morning Herald. Já para o Insider, Bowerman acrescentou que “placemaking e fazer uma comunidade são fundamentais aqui”. A estratégia sustentável contou também com a instalação de 11 eco-homes, com isolamento térmico 30% melhor que o previsto pela regulamentação do Reino Unido, relata o arquiteto Richard Voss. Outra ação nesse sentido é o uso de energia renovável na localidade, produzida por uma planta de biometano construída em uma fazenda da região.

Reconhecimento depois de anos de controvérsias

Apesar das inovações sustentáveis e do desenvolvimento urbano, Poundbury e os princípios apoiados pelo príncipe Charles receberam diferentes julgamentos durante décadas. A cidade, que já foi comparada a uma Disneylândia feudal e a um cenário de filme, tem o seu design “impregnado de nostalgia”, segundo o Insider. Contudo, Richard Voss pontua no texto para o Urban Design Forum que as “pessoas estão começando a notar que o lugar teve seus sucessos e continua a se desenvolver”. Ele reforça seu ponto de vista com uma opinião dada pelo crítico de arquitetura do The Guardian, Oliver Wainwright: “há muito ridicularizada, a comunidade crescente e diversa sugere que muitas coisas estão sendo acertadas”.

De acordo com o The Sydney Morning Herald, o “futuro rei deve ter se sentido vingado quando o secretário de Habitação, Robert Jenrick, prometeu uma série de reformas para devolver a ‘beleza’ ao planejamento da Grã-Bretanha”. A matéria, publicada em julho deste ano, comenta que a declaração foi dada baseada em pesquisa que mostra a preferência do público por casas erguidas antes da Lei de Planejamento de 1947. Outra informação assinalada é de que o ponto central das reformas previstas pelo governo envolve códigos de design para cada região, na mesma linha do elaborado para Poundbury.

O jornal narra ainda que Jenrick frisou que a ligação entre moradias insatisfatórias e os subúrbios mal planejados em termos de bem-estar e saúde mental era algo bem conhecido, mas que a relação entre o declínio na qualidade e na beleza desses espaços desde o período do pós-guerra e o aumento da oposição a novas residências é uma novidade. O arquiteto Voss pondera que, ao se olhar para além dos prédios da cidade idealizada pelo príncipe Charles, é possível encontrar a “atração, o interesse e o caráter que as pessoas desejam”. Já o gerente de Desenvolvimento Imobiliário de Poundbury, Jason Bowerman, resumiu ao Insider que a localidade não se trata “apenas de fileiras e mais fileiras de edifícios sem rostos, sem qualquer sentimento de comunidade”.

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