A construção de comunidades e economias locais mais fortes, saudáveis e com menor impacto ambiental passa pela transformação dos municípios em lugares mais caminháveis e que colocam o pedestre no centro dos seus planejamentos urbanos. A constatação é de pesquisadores do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), entidade sediada em Nova York e que no ano passado divulgou levantamento sobre as cidades mais fáceis de serem percorridas no mundo. Londres, Paris, Bogotá e Hong Kong estão entre as localidades onde as pessoas vivem mais próximas de escolas, serviços e lazer, dispensando o uso do carro para seus deslocamentos. O relatório indicou ainda que destinos com vias mais seguras e agradáveis para andar têm negócios com melhores desempenhos, como destaca a matéria do jornal The Guardian.
As ruas voltadas para os cidadãos incrementam as atividades comerciais, geram maior receita tributária por área e também oferecem mais retorno sobre os investimentos públicos realizados do que aquelas projetadas com o foco nos automóveis, analisa Rachel Quednau, diretora de Programa da Strong Towns, instituição que apoia a criação de lugares sustentáveis e prósperos nos Estados Unidos e Canadá. Segundo ela, uma via diversificada e simples para caminhar incentiva que os pedestres circulem entre lojas, cafés e restaurantes, resolvendo suas necessidades diárias perto de suas casas ou trabalhos e consumindo nesses estabelecimentos. Para a diretora, as ruas idealizadas para as pessoas possibilitam que “uma dezena de locais possam ser acessados a pé em questão de minutos e que cada centímetro de terreno seja economicamente produtivo, com várias empresas instaladas em sua extensão”.
Rachel comenta ainda em seu artigo que um estudo identificou algumas características comuns às cidades norte-americanas que estão repensando o espaço urbano e adotando o desenvolvimento de regiões compactas e caminháveis. Ela salienta, por exemplo, que as vias dessas localidades são estreitas, com no máximo duas faixas para o trânsito, e que há estacionamento em ambos os lados, o que leva a uma redução da velocidade dos veículos nessas áreas. Além disso, a presença de calçadas, faixas de segurança e sinalização facilitam a travessia pelas ruas, que contam também com árvores para deixar o trajeto mais convidativo. Já os negócios estão dispostos de maneira visível tanto para quem está andando como para quem passa de carro e as residências e escritórios locais ocupam os andares superiores dos prédios, trazendo mais vida para esses lugares e aproximando as pessoas do comércio e de serviços. “Invista em uma via voltada para pedestres e você criará valor que continuará a beneficiar a sua cidade por décadas e até mesmo séculos”, defende.
Circular por ambientes que apostam na diversidade de funções e na oferta de comodidades impacta ainda na forma de consumir das pessoas, como revela pesquisa do setor de Transporte de São Francisco (EUA), apresentada no site de notícias Vox. O relatório mostrou que viajantes que usam o transporte público ou que se deslocam a pé gastam mais dinheiro por mês nos negócios presentes em ruas seguras do que motoristas que passam pela mesma região. “Os cidadãos tendem a consumir mais em cidades caminháveis, estimulando a economia local”, afirma a matéria. Os reflexos para os municípios que investem nessa transformação urbana abrangem também o valor das propriedades desses lugares. A diretora de Programa da Strong Towns confirma que a qualificação dos espaços para andar e para o uso de bicicletas eleva o preço dos imóveis privados.
Mudanças ocasionadas pela Covid-19 reforçam preferência por consumo em vias com restrições aos veículos
A pandemia do coronavírus modificou a rotina e os hábitos da população mundial, que precisou se adaptar aos cuidados com a saúde e às restrições de distanciamento social impostas. Nesse cenário, diferentes cidades promoveram alterações em seu desenho urbano para atender à nova realidade, fechando ruas para os carros e ampliando os ambientes ao ar livre para as pessoas. Uma pesquisa efetuada pelo Yelp (aplicativo de avaliação de estabelecimentos comerciais) apontou um maior interesse dos consumidores por restaurantes situados em vias para pedestres, como assinala matéria da Bloomberg.
O texto descreve que os locais que se encontravam vazios por causa da Covid-19 foram convertidos em corredores destinados aos cidadãos, com acesso restrito de automóveis, tornando-se exemplos de como os espaços podem ser “facilmente reaproveitados para a mobilidade e diversão e como a atividade humana pode aumentar rapidamente quando os veículos são removidos”. O sucesso dessas medidas, chamadas também de ruas seguras, abertas ou lentas, está levando muitas prefeituras dos Estados Unidos a analisarem a manutenção desses lugares no pós-pandemia. Nesse sentido, Nova York aprovou em abril deste ano um projeto de lei que transforma o programa Open Streets em uma ação permanente.
Mesmo com o redesenho das cidades enfrentando resistência de muitos empresários norte-americanos, a reportagem da Bloomberg pondera que o estudo do Yelp traz dados positivos para os negócios das vias seguras. O levantamento avaliou a demanda por restaurantes em bairros de Boston, São Francisco, Boise e Burbank que tiveram ruas bloqueadas para os carros em 2020 e a comparou ao interesse dos usuários por outros estabelecimentos desse setor em cada uma das localidades em períodos antes e durante as restrições devido ao coronavírus. Com base em visualizações, fotos postadas e comentários no aplicativo, os pesquisadores perceberam que os empreendimentos em áreas fechadas aos automóveis foram mais procurados.
Os restaurantes da Valencia Street, em São Francisco, tiveram 18% a mais de busca que todos os demais estabelecimentos desse segmento da cidade nas noites em que a via impedia a circulação de veículos – quatro dias por semana entre julho e dezembro do ano passado, de acordo com o Yelp. Já na Vanderbilt Avenue, no Brooklyn (Nova York), os locais de comércio de comida registraram 54% a mais de visitas após o primeiro mês de funcionamento do Open Streets, conforme o Prospect Heights Neighborhood Development Council.
Uma ressalva feita pela Bloomberg referente ao relatório é que ele não examinou outros negócios. Além disso, a professora de Estudos Urbanos e Planejamento da Universidade Estadual de Portland, Jenny Liu, ressalta no texto que não há como dizer com certeza que o “próprio fechamento de vias aguçou o apetite do consumidor: outros fatores exclusivos da era Covid, como a disponibilidade de mesas ao ar livre, também podem ter impulsionado os restaurantes”. Apesar dessa observação, a reportagem informa que uma pesquisa inédita realizada por Jenny sobre os impactos econômicos das melhorias nas ciclovias e nas ruas para as pessoas indica que as vias seguras são boas para as empresas.
A conclusão coincide com os resultados apurados por uma série de estudos efetuados antes da pandemia. O relatório da professora foi divulgado em abril deste ano e envolveu 14 ambientes de seis localidades dos Estados Unidos. “Contrariando os temores frequentemente ouvidos pelos proprietários de lojas de que a substituição do estacionamento de automóveis reduza o tráfego dos clientes, Jenny encontrou efeitos positivos nas vendas e no emprego para os negócios desses lugares pensados para os pedestres, com benefícios específicos para restaurantes”, relatou a matéria.
Cidades caminháveis atraem públicos diversos e geram oportunidades de trabalho
Ao mudar o foco dos carros para as pessoas, as localidades tornam-se mais abrangentes e acessíveis a residentes com diferentes perfis etários e sociais. Segundo o Chicago Metropolitan Agency for Planning, 63% dos millennials (nascidos entre o começo dos anos 1980 e final da década de 1990) e 42% dos boomers (geração de 1946 a 1964) preferem viver em um lugar onde poderiam dispensar o veículo, afirma a reportagem da Vox. A matéria complementa que 62% dos millennials gostariam de morar em uma comunidade em que os automóveis fossem opcionais. “Se as cidades parecem menos dependentes de carros, é provável que sejam mais atraentes para várias idades”, frisa o texto.
Ouvido pela Vox, o planejador urbano norte-americano, Jeff Speck, autor do livro Regras da Cidade para Caminhadas: 101 etapas para fazer lugares melhores, defende que a construção de habitações populares próximas aos centros dos municípios também ajuda na atração de uma população diversa, de novas empresas e empregos. Para Speck, o motivo da maioria das regiões não serem caminháveis está ligado ao fato das cidades serem projetadas pelo zoneamento de uso único. Dessa maneira, “o varejo não pode estar perto a um consultório médico, que não pode estar próximo de uma casa unifamiliar, que não pode ficar ao lado de uma residência multifamiliar”. Nessa lógica, uma pessoa precisa circular por múltiplas áreas para poder resolver suas necessidades, dependendo de um veículo para isso. “Hoje, isso não faz mais sentido. A solução: as localidades devem adotar regulamentações que permitam que a terra seja multiuso”, reforça a matéria.
Ruas para pessoas não são apenas vantajosas para os negócios, para a integração e aproximação entre gerações e para proporcionar mais oportunidades de trabalho. Elas oferecem ainda o melhor retorno do investimento público, argumenta a diretora de Programa da Strong Towns, Rachel Quednau. A afirmação baseia-se na relação entre o baixo aporte de recursos precisos para a criação de calçadas e sua manutenção em relação aos altos valores desembolsados para as estradas, sua sinalização, pavimentação e pagamento de salários de guardas de trânsito. “Mesmo o custo de fornecer melhorias para o espaço de pedestres, como árvores e bancos, empalidece em comparação ao que gastamos quando construímos em torno dos carros”, assinala.
Curitiba: um exemplo brasileiro de rua para as pessoas
Cerca de 100 mil pedestres circulam diariamente pelo calçadão da XV de Novembro, na capital paranaense, a primeira via exclusiva para pessoas implementada no Brasil. Construída em 1972, a Rua das Flores – como também é conhecido o percurso – fica no Centro da cidade e reúne comércio, serviços e uma série de opções de lazer para quem transita pela região. A ideia para criar o calçadão surgiu no primeiro mandato do arquiteto Jaime Lerner como prefeito de Curitiba – ao todo ele assumiu o cargo três vezes. A via, que tem passeio desenhado com pedras portuguesas e mobiliário especial, com floreiras, bancos, luminárias, idealizado pelo arquiteto Adão Assad, tornou-se um símbolo da localidade. “Uma cidade boa é aquela que é boa para seus habitantes”, afirmou Lerner em vídeo divulgado pelo Paraná Portal.
Apesar de reações contrárias de comerciantes no início das obras, que temiam que a alteração resultasse em queda nas vendas, os negócios locais viram o movimento aumentar com o passar dos anos e novos empreendimentos serem abertos ao longo da via, com cafés, lojas e confeitarias ampliando a oferta de comodidades à população, como recorda matéria da Prefeitura de Curitiba. O texto informa ainda que o comércio presente na rua foi aquecido, o trânsito da área central aperfeiçoado e a iniciativa copiada por outros destinos no Brasil.
A capital conta também com a primeira Via Calma do País, instalada quatro décadas depois do calçadão da XV de Novembro, onde a velocidade máxima permitida é de 30 quilômetros por hora, beneficiando pedestres e ciclistas. Outra ação do governo municipal foi a transformação de quarteirões do Centro da cidade em Área Calma, na qual os carros podem andar, no máximo, a 40 quilômetros por hora. A Prefeitura adianta que novos calçadões devem ser implementados em outros bairros, descentralizando as vantagens das vias destinadas para as pessoas.
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