A busca pela reconexão com a natureza e a preocupação cada vez maior com a origem dos produtos consumidos têm levado mais pessoas a procurarem opções de moradia que aliem as comodidades urbanas às vantagens rurais e que contem com áreas destinadas para o plantio de alimentos. O movimento, que já vinha crescendo há alguns anos, ganhou impulso com a pandemia de coronavírus – que fez muitos cidadãos repensarem suas habitações e o contato com o verde. E, também, com a necessidade de encontrar mecanismos que reduzam as emissões de gases de efeito estufa para atender a metas como as estipuladas pelo Acordo de Paris e pela 26ª Conferência das Nações Unidas (COP26) sobre mudanças climáticas, ocorrida em novembro deste ano.

O cultivo de verduras, legumes, temperos, frutas, entre outros itens, é uma tendência no setor imobiliário, reforça reportagem do Agritecture, consultoria internacional especializada em ações de integração da agricultura ao ambiente construído. Nesse cenário, são muitas as abordagens que podem ser adotadas pelos desenvolvedores em seus empreendimentos, explicou a arquiteta e urbanista Marcia Mikai em entrevista ao Somos Cidade. Marcia é diretora da Pentagrama Projetos em Sustentabilidade e Regeneração e vice-presidente do Instituto Smart City Business America (SCBA). Segundo ela, as agrihoods são uma dessas possibilidades que vêm se disseminando em complexos residenciais nos Estados Unidos – onde surgiu –, Canadá, Europa e que já possui iniciativas no Brasil que incorporam algumas de suas características.

“A denominação nasceu da união das palavras agriculture e neighborhood (do inglês, agricultura e vizinhança) e abrange a oportunidade de produzir alimentos locais para o consumo em um contexto onde existe moradia”, salienta Marcia. A organização Urban Land Institute, que lançou um estudo sobre o tema – Agrihoods, cultivando melhores práticas –, define esse tipo de medida como “comunidades unifamiliares, multifamiliares ou de uso misto edificadas com uma fazenda ou horta como um de seus focos”. Em 2014, havia 12 agrihoods norte-americanas e em 2016 esse número subiu para 200, destaca a diretora da Pentagrama. Ela acrescenta ainda que em alguns países europeus a ideia vem se espalhando a partir de uma retomada do conceito de cidades-jardim, elaborado pelo planejador inglês Ebenezer Howard.

Uma das principais referências em agrihoods é Serenbe, localizada na região metropolitana de Atlanta, na Geórgia (EUA). A propriedade de Steve Nygran e Marie Lupo Nygran preserva 70% de suas terras para a agricultura e recreação e teve a sua primeira casa erguida em 2004. Atualmente, existem quatro “aldeias” de residências, cada uma delas com um centro comercial complementar voltado para um elemento que contribui para uma vida plena: “artes para a inspiração, plantio de alimentos, saúde para o bem-estar e educação para a conscientização”, como detalha o material de apresentação do empreendimento.

Sustentável, o complexo incentiva a convivência a partir de estratégias de design como a disposição das caixas de correio em uma posição central, criando um hub social, e a instalação das varandas das habitações próximas às calçadas para estimular a interação entre vizinhos. Atualmente, 70% dos moradores vivem na comunidade e 30% utilizam suas unidades para férias ou finais de semana. Além de uma fazenda orgânica de mais de 100 mil metros quadrados, o local conta com um mercado para a venda sazonal dos itens ali cultivados e com um paisagismo comestível, com árvores e arbustos frutíferos distribuídos ao longo dos trajetos internos.

Com mais de 24 quilômetros de trilhas e atrações como galerias de arte, livrarias, lojas de design, escola, restaurante, centros terapêuticos e uma pousada, Serenbe tornou-se um destino turístico, observa Marcia Mikai. “Tem pessoas que visitam o lugar apenas para usufruir os espaços construídos e as atividades oferecidas. O empreendimento tem toda uma vida própria”, comenta. Para a arquiteta, projetos como esse só fazem sentido se forem de uso misto do solo, ajudando a diminuir os deslocamentos e as emissões de gás carbônico. “Acredito muito no uso misto. Se isso ainda for associado à promoção de um arranjo produtivo local (APL), como uma indústria de beneficiamento de alimentos, um comércio ou com o foco no turismo ecológico ou rural, ocorre também o desenvolvimento econômico”, argumenta.

Sistemas agroflorestais proporcionam novas soluções sustentáveis e de geração de renda para os bairros planejados

Na mesma linha de Serenbe, de juntar o melhor da cidade e do meio rural, o complexo urbanístico Fazenda Itahyê, em Santana de Parnaíba, a cerca de 30 quilômetros da capital paulista, é um exemplo brasileiro de agrihood citado pela diretora da Pentagrama, Marcia Mikai. “É um projeto ambicioso que já produz orgânicos e possui um viés de preservação ao mesmo tempo em que terá lotes residenciais, uso misto, escola e a previsão de realizar ações sociais”, assinala. A comunidade planejada do Grupo Itahyê será lançada em uma área verde de 14 milhões de metros quadrados, com 64 nascentes, e contará com uma ocupação ordenada do solo estruturada a partir do urbanismo sustentável. “Estamos, agora, conversando com eles sobre a possibilidade de implementar sistemas agroflorestais lá”, adianta a arquiteta.

Assim como as agrihoods, os sistemas agroflorestais são uma nova maneira de trabalhar a agricultura nos empreendimentos, com o plantio de árvores e de alimentos e a produção de madeira de lei, que captura carbono em toda a sua vida útil. “É um método que imita a natureza, regenera terras degradadas e que se retroalimenta ao auxiliar com sua sombra e nutrientes o crescimento de outras espécies, sendo uma alternativa à monocultura”, explica Marcia. Desde 2000, ela se dedica às questões de sustentabilidade e, há dois anos, centrou seus esforços na modelagem de viabilidade econômica das agroflorestas – que em conjunto com as agrihoods são as frentes de atuação da Pentagrama. “E a gente constata que esses sistemas são super lucrativos em um ciclo de 20 anos”, enfatiza.

Marcia ressalta que o mundo tem um desafio muito grande em relação à diminuição das emissões de gás carbônico e os sistemas agroflorestais se apresentam como uma solução inovadora nesse cenário. Ela lembra ainda que no Brasil as emissões de gases de efeito estufa são oriundas principalmente do desmatamento ou da modificação de uso da terra. “Esse instrumento também pode criar um polo econômico local, promovendo uma atividade produtiva que gere lucro e dê uma resposta importante para o planeta, reduzindo o impacto ambiental”, defende. Marcia pondera que o momento é promissor para a instalação de sistemas agroflorestais já que muitas empresas estão colocando em prática ações de ESG (do inglês Environmental, Social and Corporate Governance) que geram resultados efetivos na captura de carbono.

No entanto, a arquiteta frisa que essa alternativa não pode ser utilizada apenas para “enfeitar” os complexos imobiliários. “Os empreendedores precisam perceber que o público mudou, assim como o turismo, e que existe um nicho de pessoas interessadas em desenvolvimentos com iniciativas socioambientais ou que sonham em possuir um sítio, mas não têm vocação de tocar o negócio”, destaca. Nesse sentido, ao conceber um empreendimento com um sistema agroflorestal, uma parte do terreno pode ser reservadas para a área privativa e o restante pode operar em um formato associativo ou cooperativo com uma gestão profissional que gere alimentos e lucro.

Marcia informa que esse tipo de ação pode ser implantada em locais de reserva legal, que são espaços dentro de propriedades rurais, privadas ou públicas, que precisam ser preservados e, em geral, demandam o aporte de recursos sem retorno financeiro. “Com a adoção dessa ferramenta, se tem a oportunidade de obter dinheiro para o complexo”, afirma.

Empreendedores inserem agroflorestas em seus projetos

Apesar de considerar as medidas no segmento ainda “tímidas”, a arquiteta e urbanista Marcia Mikai já vê o mercado imobiliário voltando os olhos para os sistemas agroflorestais e seus benefícios ambientais, sociais e para os negócios, como é o caso do Praia da Grama, do proprietário da KSM Realty, o empresário Oscar Segall. Localizado em Itupeva (SP), o complexo residencial alia uma praia artificial com ondas que permitem surfar e uma orla de cerca de um quilômetro, lotes de 2,2 mil a 3,3 mil metros quadrados e uma série de comodidades a uma agrofloresta com mais de 17 mil árvores – pomar e horta.

Cercado pela Mata Atlântica, o Praia da Grama foi concebido pelo arquiteto Gui Mattos e o paisagismo é de Benedito Abbud, responsável também pelo sistema agroflorestal que fica em uma área do terreno destinada ao Condomínio Fazenda da Grama. No local, os moradores podem caminhar por trilhas e colher seus alimentos e temperos. “Além da piscina de ondas, a agrofloresta se tornou algo bem atrativo. Tanto que o Abbud tem falado muito do seu impacto dentro do empreendimento”, reforça Marcia. Complementam a infraestrutura, um campo de golfe, hípica, lago para esportes aquáticos, quadras de tênis, pista de skate, beach club, restaurante, spa e ambientes para a prática de esportes.

Na região Centro-Oeste do País, o Parque Cultural Florata é mais uma iniciativa de agrofloresta desenvolvida no Brasil. Parte integrante do Condomínio Florestal Florata, o espaço conta com 70 mil metros quadrados de extensão e abriga parcela de uma reserva legal de 300 mil metros quadrados de Mata Atlântica, no município de Santo Antônio de Goiás, próximo a Goiânia (GO). Além das belezas naturais, da produção de alimentos local e das árvores frutíferas, o parque possui uma galeria de arte ao ar livre, com esculturas e obras diversas. A intenção é, no futuro, promover também atividades culturais no ambiente.

O projeto das duas estruturas foi idealizado pela Biapó Urbanismo e lançado em 2018. O condomínio conta com terrenos a partir de 2 mil metros quadrados e envolve mais de 265 mil metros quadrados de mata com trilhas ecológicas, ciclovia, lagos, pergolados sensoriais, estações de ginástica e lugares para redes e para a contemplação, de acordo com matéria do jornal Diário de Goiás.

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