Apesar do senso comum, os estudos demonstram que ruas fechadas para automóveis não provoca um aumento do congestionamento na região.
Fugindo da lógica que orientou o desenho da maioria dos municípios no século 20, tirar a prioridade dos carros no desenvolvimento das localidades e diminuir a área destinada a eles nas vias não piora os congestionamentos. Pelo contrário, ao reorganizar o espaço das ruas deixando menos faixas para os automóveis, ocorre uma mudança na forma como as pessoas se deslocam, com a migração para outros meios de locomoção mais sustentáveis, como caminhar, pedalar ou utilizar o transporte público, reduzindo a circulação de veículos privados significativamente.
Esse fenômeno de redistribuição do trânsito é chamado de traffic evaporation (do inglês, evaporação do tráfego) e vem mostrando que os problemas de engarrafamento foram menos graves que o esperado pelos tomadores de decisão nas cidades que adotaram a prática. No entanto, mesmo com as informações reunidas sobre o assunto há mais de 20 anos, planejadores urbanos mantêm a visão de que mais estradas melhoram o fluxo, como ressalta matéria do The City Fix.
Um estudo apresentado em 2020 por pesquisadores da Universidade de Barcelona comprovou que a construção de novas vias levou a mais tráfego e aumentou o congestionamento, detalha a reportagem do site produzido pelo Centro WRI Ross para Cidades Sustentáveis – um programa do World Resources Institute. Para chegar a essa conclusão, foram analisados dados de 545 municípios da Europa de 1985 a 2005. A comodidade da infraestrutura disponível, aliada ao menor tempo entre as viagens e ao apelo do carro “particular como um indicador de riqueza e posição”, estimula mais cidadãos a percorrerem seus trajetos, mesmo que curtos, de automóvel, relata o The City Fix.
Um dos mais completos levantamentos sobre evaporação do tráfego (ou disappearing traffic – trânsito desaparecendo, em tradução livre – como também é identificado) foi realizado em 2001, pelos pesquisadores Sally Cairns, Stephen Atkins e Phil Goodwin. “Eles revisaram 70 casos de realocação de espaços viários, incluindo depoimentos de 200 engenheiros que atuam nesse segmento e planejadores em vários países”, assinala a matéria. Segundo os especialistas, projetos bem elaborados de diminuição da área para veículos contribuem para aprimorar as condições para pedestres, ciclistas e usuários de ônibus, metrôs e trens, sem elevar os engarrafamentos ou intensificar outros problemas ligados ao trânsito.
Mais que isso, eles identificaram que esse redesenho das localidades traz benefícios para a população, como redução dos acidentes, melhora na qualidade do ar, crescimento do investimento empresarial na região atendida e criação de um ambiente residencial e de trabalho atrativo, com mais pessoas nas ruas. Além disso, a oferta de menos faixas para os carros impacta na saúde dos indivíduos, que passam a se exercitar ao ir a pé ou de bicicleta para os seus destinos, e na vitalidade do varejo.
Apesar de muitos empreendedores ainda associarem suas vendas à facilidade de estacionamento e de movimentação de automóveis, o Yelp (aplicativo de avalições de estabelecimentos comerciais) mediu a procura por restaurantes nos Estados Unidos localizados em vias fechadas para veículos durante a fase mais restritiva da pandemia de coronavírus, em 2020, e apontou uma elevação na busca por locais nas ruas exclusivas para pedestres em relação a outros lugares de cidades como Boston, São Francisco e Burbank.
Os resultados obtidos no estudo de Cairns, Atkins e Goodwin variaram conforme o contexto do município, capacidade de investimento e a maneira como as propostas de reorganização dos espaços viários foram pensadas e implementadas, reforça o The City Fix. Mesmo com cenários distintos, as respostas às iniciativas foram muito mais positivas que negativas e isso se deve, indicam os pesquisadores, à inclusão nos novos planos de gestão do tráfego de medidas como a coordenação dos semáforos, que tornam o trânsito mais eficaz.
A esse fator soma-se a mudança que muitos motoristas fizeram em suas rotas e nos horários de saída, assim como nos lugares que frequentavam – com alguns cidadãos escolhendo diferentes pontos para fazer suas comprar ou ter o seu lazer. Outro elemento observado por eles a partir da diminuição das áreas para carros foi o incremento das viagens compartilhadas e do trabalho remoto – situação essa que ganhou força com a pandemia e acelerou modificações nas empresas e cidades que também se refletem na forma como as pessoas fazem seus deslocamentos.
Ruas sem carros, um movimento sem volta
Com as recomendações da 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), ocorrida em novembro em Glasgow, na Escócia, para a redução do uso de carvão e de combustíveis fósseis e das emissões de gases de efeito estufa, as cidades precisarão repensar os modelos atuais de ocupação urbana e de circulação da população entre seus bairros, melhorando as conexões e aumentando as vias voltadas somente para pedestres. De acordo com reportagem da Bloomberg, as ruas sem veículos são um movimento global crescente.
E um dos exemplos mais antigos desse tipo de intervenção vem de Rotterdam, na Holanda, que, em 1953, construiu uma via exclusiva para pessoas, a Lijnbaan Street, salienta a matéria. A meta da prefeitura era estabelecer um Centro moderno que trouxesse retorno em forma de bem-estar para os cidadãos e em prosperidade para os comerciantes locais. Segundo a Bloomberg, os negócios tiveram sucesso com a alteração, que se transformou em referência para outros municípios europeus. “Juntamente com investimentos pesados e sustentados em transporte público e infraestrutura para bicicletas, criou-se uma experiência urbana muito diferente para gerações de moradores dessas cidades”, afirma o texto. Reflexos hoje que podem ser vistos em lugares como Amsterdam, que busca proibir os automóveis movidos a combustível fóssil na região central até 2030.
Nos Estados Unidos, a reportagem cita o fechamento da 14th Street em Nova York e o da Market Street em São Francisco como outras ações que tiveram resultados positivos ao reduzir o espaço para os carros. No caso de Nova York, o governo reservou a rua apenas para ônibus, transformando um ponto altamente congestionado em um local mais “amigável para pedestres e ciclistas e com velocidades maiores para o transporte público”. Apesar das reclamações de muitos motoristas, os dados indicam que não houve elevação no congestionamento das vias para onde o tráfego foi desviado. Além da segurança que a medida trouxe para os indivíduos, os estacionamentos presentes nessa área estão se tornando ambientes verdes abertos a todos.
Já em São Francisco, a Market Street – uma das principais ruas do Centro da cidade californiana – não permite a circulação de automóveis em alguns trechos desde janeiro do ano passado, como informa matéria do jornal The San Francisco Examiner. O projeto envolve ainda o alargamento das calçadas e a instalação de mobiliário urbano para a maior proteção das mais de 500 mil pessoas que caminham pela via diariamente e também mais segurança para os cerca de 4 mil ciclistas que usam a rota todos os dias. Em conjunto com os ônibus e bondes que passam pela região, os cidadãos terão mais alternativas para ir aonde precisam.
A reportagem da Bloomberg complementa que veículos possuem o seu lugar nos municípios, mas que as pessoas precisam ter um papel mais central no planejamento urbano. “Tudo se resume à geometria. Já que existe uma área limitada nas cidades, vamos garantir que ela seja para os pedestres”, enfatiza o texto. Por sua vez, o The City Fix pondera que “diminuir o espaço viário para carros em áreas mais densas e, ao mesmo tempo, melhorar os ambientes para caminhadas, ciclismo e o transporte público, claramente, não produz o caos que muitos acreditam”. Conforme o site, essa prática é a maneira mais sustentável de aperfeiçoar a mobilidade em localidades densas e de rápido crescimento.
Transformação em Nova York é um símbolo de vias para as pessoas
A Broadway, em Nova York, era uma avenida congestionada e nada receptiva aos caminhantes e ciclistas, que sofriam para atravessar ou ocupar um espaço nessa famosa rua da cidade. A reconfiguração da via, a partir de 2009, foi idealizada pelo Departamento de Transporte da cidade em conjunto com o Project for Public Space com o objetivo de priorizar os pedestres, proporcionando mais segurança e mobilidade para eles.
As alterações abrangeram em torno de 3,7 quilômetros da Broadway e envolveram a remoção de faixas de trânsito para carros, regulamentação de estacionamentos, revisão dos tempos dos semáforos, qualificação da sinalização e a implementação de infraestrutura para os cidadãos, diminuindo os engarrafamentos e os períodos de viagem em toda a área. Durante o processo, que abrangeu também ruas próximas, foram modificados locais icônicos de Nova York, como a Times Square – que foi fechada totalmente para a circulação de automóveis, assim como a Herald Square.
No trecho da Broadway, entre a 23rd Street e a 59th Street, as interseções foram simplificadas, a travessia dos pedestres foi aprimorada com alterações nas fases dos semáforos e ciclovias foram adicionadas. Já a Times Square, Herald Square e Madison Square Park receberam mobiliário urbano com design inovador para tornar a experiência das pessoas ainda mais interessante.
Na região entre a 14th Street e a 23 rd Street, a avenida foi redesenhada para ter uma faixa móvel e duas de estacionamento e uma ciclovia. Em algumas partes, a via passou de mão dupla para única e locais antes destinados aos veículos foram transformados em praças. Além disso, instalações para bicicletas e para os caminhantes foram renovadas ao longo dessa seção, com as distâncias de travessia em cruzamentos encurtadas através da construção de decks e ilhas de refúgio.
De acordo com o Departamento de Transporte de Nova York, depois das mudanças, o fluxo de carros nessa parte do município melhorou, assim como a segurança dos cidadãos. Desde que foi fechada, o número de atropelamentos nessa área reduziu em 40% e os acidentes de trânsito, em 15%, segundo informações do The City Fix. Ao exemplo de Rotterdam, Nova York e São Francisco juntam-se as experiências em Copenhagen (Dinamarca), que tem o seu Centro voltado para os pedestres, e de Seul (Coreia do Sul), que colocou abaixo uma rua expressa elevada mesmo com as reclamações de que a iniciativa aumentaria o tráfego, o que não ocorreu.
A matéria do site acrescenta à lista o caso de Londres, que, em 2019, fechou o acesso a uma ponte sobre o Tâmisa para manutenção. Ao invés dos problemas de congestionamento anunciados, a ação diminuiu os níveis de ruído e de poluição do ar no entorno da estrutura e não houve prejuízo ao fluxo de carros. No Brasil, Curitiba é uma das cidades destacadas em algumas reportagens com o seu sistema de transporte rápido, planejado pelo arquiteto e urbanista Jaime Lerner, em um de seus três mandatos como prefeito da capital paranaense.
Foto: Broadway Boulevard (NYC DOT | reprodução Project for Public Spaces)
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