Cidades para pessoas: Um número crescente de cidades em todo o mundo tem restringido o acesso de automóveis às regiões centrais
Reservar as áreas centrais apenas para os pedestres é o objetivo de muitas cidades, especialmente as europeias, que vêm, há anos, introduzindo mudanças importantes para impedirem, cada vez mais, o acesso de veículos. Alguns exemplos podem ser verificados em Oslo, Paris e Madri, cidades que desenvolvem diferentes estratégias para devolverem as ruas às pessoas.
“Para nós, as vias são para conhecer outros indivíduos, comer em restaurantes ao ar livre, para as crianças brincarem e onde a arte é exposta”, enfatiza a responsável pelo desenvolvimento urbano de Oslo, Hanna Marcussen em entrevista para a BBC. Para alcançar essa meta, a capital da Noruega fechou completamente determinadas ruas para os carros, retirou quase todas as vagas de estacionamento e as substituiu por bancos, ciclovias e pequenos parques e praças.
Para dar certo, as modificações foram sendo efetuadas aos poucos, por meio de projetos-pilotos para que os moradores percebessem como ficariam os ambientes e o acesso a eles, explica Hanna. Ela cita o exemplo da praça localizada em frente à prefeitura de Oslo, uma das mais bonitas do município conforme a política, que vivia cheia de automóveis. “Quando proibimos (os veículos), por volta de 2018, os cidadãos acharam estranho, mas agora estranham ter permitido algum dia que os carros passassem por lá”, conta. A medida de impedir a circulação de automóveis em certas vias centrais contribuiu também para amenizar o problema de poluição do ar enfrentado na localidade.
O maior efeito dos veículos nas cidades, além do impacto ambiental e dos diversos acidentes de trânsito, é o dano que eles causam aos espaços sociais. Essa é a opinião defendida por JH Crawford, um dos principais apoiadores mundiais dos municípios sem carro e autor de dois livros sobre o assunto: “Carfree Cities” e “Carfree Design Manual”. Ele argumenta, na matéria da BBC, que os lugares mais buscados são sempre os sem automóveis, como parques, praças ou regiões para os pedestres. Na entrevista, Crawford informa que locais como Houston e Dallas, nos Estados Unidos, têm até 70% dos terrenos urbanos destinados aos estacionamentos. “A crise imobiliária de hoje decorre da falta de terras. Livre-se dos veículos e o problema será resolvido imediatamente”, pondera.
Paris é uma das cidades que está evoluindo para reduzir significativamente os carros nas áreas centrais, algo que já vem sendo realizado de maneira gradativa há algum tempo. A proposta da prefeita da capital francesa, Anne Hidalgo, é banir a maioria dos automóveis da área central da cidade em 2022, abrangendo os quatro primeiros arrondissement (distritos) dessa zona, que incluem as regiões das duas ilhas do rio Sena, as ruas estreitas de Marais e uma extensa faixa do bairro Saint-Germain-des-Pres e da margem esquerda do Sena, adianta reportagem do canal France 24.
O vice-prefeito encarregado do departamento municipal de transportes, David Belliard, ressaltou na matéria que “residentes, viaturas para deficientes, táxis, profissionais e lojistas poderão entrar (com seus veículos nesses lugares)”. Ele complementou que não há a previsão de plano para cobrança de uma taxa de congestionamento e que não foi definido ainda se motocicletas e ônibus de turismo serão permitidos nessa parte, que abrange símbolos como a catedral Notre-Dame e o museu do Louvre.
Entre as ações da prefeita para tornar Paris mais verde e amigável para as pessoas está a revitalização da Champs-Élysées, a mais famosa avenida da capital, que se transformará em um amplo jardim, como assinala matéria do The Guardian. Anunciado no começo deste ano, o projeto irá preparar a cidade para receber as Olimpíadas de 2024 e contará com a retirada dos carros dessa zona e a criação de espaços para os cidadãos e cerca de dois quilômetros de corredores verdes que melhorarão a qualidade do ar.
Já na capital da Espanha, a iniciativa Madri Central tornou, em 2018, uma área de 4,72 km² proibida para automóveis, como mostra reportagem do Smart Cities. A preferência nessas regiões de baixas emissões de gás carbônico é a do transporte público, dos pedestres e das bicicletas. A medida é uma evolução diante das quatro Áreas de Prioridade Residencial (APR) que existiam anteriormente e se integra às atividades previstas no Plan A, um plano municipal que visa diminuir em 23% os níveis de contaminação do ar da localidade, como afirma o texto. O Plan A envolve também a instalação de mais ciclovias em Madri e a redução da velocidade em algumas vias do Centro.
Apesar das inovações, o programa teve o seu nome alterado em setembro deste ano pela nova administração madrilenha e passou por modificações, com o alívio de restrições, revela o jornal El País. O atual Madri Distrito Centro mantém as proibições aos veículos na área central, mas libera para os comerciantes o acesso de mais carros, independentemente da etiqueta ambiental que eles tenham (na Espanha há um sistema de classificação nacional a partir do ano de fabricação e do seu potencial poluidor), em seus negócios, aumenta de 30 para 45 minutos o tempo de carga e descarga de mercadorias nessa região, entre outras determinações.
Mesmo com avanços e retrocessos, cada vez mais localidades pelo mundo estão reavaliando a mobilidade em seus territórios e retirando o enfoque do planejamento urbano nos automóveis e colocando nas pessoas. “Daqui a 100, 200 anos, não vamos ter mais veículos nas zonas centrais das cidades porque tudo poderá ser feito de transporte público, de bicicleta ou a pé”, projeta Felipe Cavalcante, empresário do setor imobiliário e coordenador do movimento Somos Cidade.
Estudo aponta vantagens de banir carros das cidades
Mais de 80 milhões de veículos são produzidos ao ano no mundo e a sua fabricação contribui com cerca de 4% das emissões totais de gás carbônico no planeta. Os dados são da pesquisa “A paradox of traffic and extra cars in a city as a collective behaviour” (Um paradoxo do tráfego e carros extras em uma cidade como um comportamento coletivo, em tradução livre do inglês) que avaliou a forma como os indivíduos se deslocam e como os automóveis afetam as localidades, aumentando os engarrafamentos, o tempo dos percursos e o impacto ambiental. Publicado recentemente na revista Open Science, o levantamento indica a necessidade de retirar os veículos rapidamente dos municípios para impedir que eles sejam “invadidos” pelos congestionamentos, como ressalta matéria do site Gizmodo.
Os pesquisadores responsáveis pelo estudo, Rafael Prieto Curiel, Humberto González Ramírez, Mauricio Quiñones Domínguez e Juan Pablo Orjuela Mendoza, observam que os carros exigem uma infraestrutura cara e ocupam muito espaço nas cidades, “geralmente de maneiras muito ineficientes”. Eles defendem ainda que incentivar o transporte ativo, como caminhar e pedalar, e a utilização de ônibus, metrôs e trens é uma forma para melhorar a mobilidade nos municípios e a qualidade de vida da população, assim como reduzir a poluição, os acidentes de trânsito e os ruídos e devolver as localidades para os pedestres.
Apesar das evidências dos problemas que o uso dos automóveis causa nas cidades, os resultados do levantamento reforçam que mudar a lógica que prioriza os veículos no planejamento dos municípios impõe grandes desafios. Segundo os autores da pesquisa, as razões para os carros serem a principal escolha para a locomoção são muitas e envolvem “conforto, percepção de ter mais segurança, horários fixos e escassa disponibilidade de estações de transporte público”. E essa visão é consequência direta da maneira como as localidades foram desenhadas, com foco nos veículos e não nas pessoas.
A combinação do crescimento acelerado das cidades no século 20 às políticas de utilização do solo e ao planejamento orientado aos automóveis levou à expansão de áreas suburbanas de baixa densidade, elevando a distância entre moradia, trabalho, serviços, comércio e lazer e tornando maior o custo para a implementação de um sistema de transporte público eficiente. Esse é o cenário descrito pelos pesquisadores e que explica por que os carros ganharam a preferência dos cidadãos para chegarem aos seus destinos. Além disso, eles assinalam que, com um número maior de veículos nos municípios, muitos “legisladores estão inclinados a edificar ainda mais estrutura automotiva e a investir mais em carros particulares, impulsionando o seu uso e acabando em mais congestionamentos”.
Essas decisões levam a consequências como “super poluição, engarrafamentos e mais tempo para percorrer distâncias curtas”, salienta um dos autores do estudo, Rafael Prieto Curiel, à reportagem do Gizmodo. Ele prevê também que em uma “megalópole com 50 milhões de habitantes e 50 milhões de veículos, que é para onde vamos, será impossível nos locomover. Quer dizer, isso não é uma cidade, é um estacionamento”.
O coordenador do movimento Somos Cidade acrescenta que os municípios são pensados em função dos automóveis e as pessoas acabam sofrendo muito com isso. “Os ambientes urbanos não foram construídos para os pedestres e, com o crescimento das localidades, cada vez mais a resposta que vejo para as dificuldades que essa forma de conceber os espaços trouxe é adensar as cidades e ter centros urbanos amigáveis para os cidadãos”, analisa Felipe Cavalcante. Ele comenta, ainda, que uma das maiores preocupações de muitos planejadores é fazer com que um carro vá de um ponto A para um B da maneira mais rápida possível em um município.
Pesquisa evidencia que quanto mais veículos nas vias maior é o tempo de deslocamento
A máxima repetida há décadas por desenvolvedores das cidades e por motoristas de que mais infraestrutura para os automóveis diminui o período gasto em um trajeto foi colocada em xeque pelo estudo divulgado na revista Open Science. “O modelo (usado pelos autores para apurar os dados levantados) é instrutivo, mostrando a falácia da lógica de tentar reduzir os tempos de condução elevando o uso de carros”, relata a matéria do Gizmodo. Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores mediram as viagens feitas com veículos e o quanto elas demoraram em cenários diferentes: com as ruas vazias, com outros condutores nas vias, criando tráfego, e com a designação de algumas faixas de rodagem para a utilização exclusiva de pedestres, ônibus e ciclista, detalha a reportagem. A mesma experiência foi realizada com transporte público, a pé e de bicicleta.
A partir das informações, foi identificado que “se um número maior de cidadãos decidir que dirigir é mais rápido, haverá mais trânsito, congestionamento e os deslocamentos serão mais longos”, descreve o texto. A situação cria um paradoxo constatado diariamente nos grandes municípios: para chegar rápido ao seu destino, mais indivíduos optam pelo carro, lotando as ruas e impedindo o fluxo contínuo, fazendo com que os motoristas permaneçam mais tempo em seus veículos – muitas vezes com só uma pessoa dentro. O Gizmodo destaca que, apesar de empregar modelos redutores, que consideram que todas as populações são iguais e têm o mesmo acesso aos diversos modais de transporte, a pesquisa é esclarecedora e revela o custo negativo dos automóveis para as cidades.
O levantamento traz ainda sugestões para melhorar a mobilidade e qualidade de vida dos residentes, diminuindo o período dispensado para atravessar as localidades e reduzindo as emissões de gases de efeito estufa, como o investimento em transporte público mais confiável e veloz. Além disso, o estudo recomenda o uso misto do solo, aproximando residências e comércio local e serviços, e disponibilizar mais rotas para caminhadas e ciclovias. A essas ações, os pesquisadores enfatizam que podem ser necessárias outras iniciativas para alterar o comportamento das pessoas, incluindo uma menor oferta de faixas de tráfego para carros, remoção de estacionamentos gratuitos e proibição para que novas estruturas desse tipo sejam abertas, implementação de pedágios dinâmicos ou de taxas de engarrafamento.
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