Filtragem

A Filtragem é o mecanismo pelo qual o aumento da oferta de moradias de alto padrão gera um efeito em cascata que beneficia a classe média e as pessoas de baixa renda.

A falta de imóveis é, hoje, um dos maiores obstáculos da acessibilidade à habitação no mundo e tem levado muitas cidades e estados a buscarem mecanismos e políticas públicas para modificar essa realidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, a estimativa é de uma escassez de 3,3 milhões de unidades e de um crescimento da demanda em torno de 300 mil residências ao ano, conforme o estudo The Major Challenges of Inadequate US Housing Supply (Os principais desafios da oferta inadequada de moradias nos EUA, em tradução livre) realizado pela empresa Freddie Mac e divulgado em 2020. Entre as muitas soluções para reverter esse cenário, o filtering (filtragem) é um dos caminhos que voltou a ser debatido recentemente com a publicação de diferentes levantamentos sobre o tema.

A filtragem é o processo que ocorre quando as propriedades envelhecem e, com isso, sua qualidade e preço baixam, ficando mais em conta para as famílias de baixa renda, explicou o economista-chefe da área de Pesquisa Econômica e Habitacional da Freddie Mac, Sam Khater, em webinar promovido pelo Urban Institute, também em 2020. Além desse movimento, acontece outro em conjunto que é o da mudança das pessoas que viviam nesses imóveis para outros mais novos, abrindo espaço para residentes de outras faixas econômicas. Dessa forma, um efeito cascata é desencadeado em diversos níveis, abrangendo todo o mercado imobiliário. Segundo Khater, o filtering tornou-se ainda mais relevante nos Estados Unidos devido à diminuição do número de novas construções caracterizadas como “casas iniciais acessíveis (em geral, a primeira moradia)” desde a década de 1990.

A pesquisa mais atual sobre filtragem foi apresentada em agosto de 2021 e é resultado do trabalho de um trio de economistas finlandeses que investigou como a edificação de novos prédios de apartamentos de luxo em bairros nobres impactou todo o setor imobiliário de Helsinque. Em artigo para o Full Stack Economics, o repórter Timothy B. Lee descreve que, a partir de dados do governo da Finlândia sobre como seus cidadãos moram, os especialistas puderam identificar como os indivíduos se transferiam de um lugar para outro na área metropolitana da capital e os reflexos dessa circulação entre as unidades.
Eles confirmaram que, quando uma nova propriedade de luxo chega ao mercado, começa uma reação em cadeia: quem aluga o apartamento recém-construído na região metropolitana de Helsinque está vindo de um antigo, que fica vago e será ocupado por outro locatário. “Essas correntes de mudanças podem se estender por seis ou mais etapas, com os residentes da cidade entrando em um jogo de cadeiras para encontrar opções de habitação melhores ou mais baratas”, afirma Lee em seu texto (que pode ser lido traduzido no site do Caos Planejado).

Os economistas finlandeses apuraram ainda que esse processo alcança rapidamente os bairros de baixa renda. Para cada 100 novos imóveis com localização central e valores de mercado, aproximadamente 60 unidades são criadas em áreas mais em conta, destacou o estudo. Isso representa, de acordo com Lee, que o segmento imobiliário de Helsinque não está hermeticamente fechado, que a linha entre moradias luxuosas e não luxuosas é difusa e que os cidadãos pulam de um nível de residência para outro. O repórter acrescenta que poucos indivíduos saltam diretamente dos distritos mais pobres para os mais ricos, mas que essa movimentação aproxima as duas pontas do setor construtivo. “E isso significa que erguer edifícios de apartamentos de luxo ajuda a tornar a habitação mais acessível para todos os inquilinos”, argumenta.

Efeito cascata da filtragem se repete no mercado dos Estados Unidos

O filtering é visto, há algum tempo, pelos especialistas em políticas voltadas para a moradia como um modelo que oferece residências populares, observa Timothy B. Lee. Apesar de ser uma movimentação que pode se prolongar por décadas, uma vez que ela é consequência do envelhecimento do estoque de imóveis, a filtragem pode ter também uma influência mais imediata na escassez de unidades registrada hoje entre as famílias de baixa renda, como revelam pesquisas efetuadas nesse campo atualmente. Lee reforça que a construção de um novo prédio de apartamentos libera espaço em bairros mais antigos e menos desejáveis em questão de meses e não de décadas.

Um dos estudos citados pelo repórter no Full Stack Economics é o do economista Evan Mast, da Universidade de Notre Dame (EUA), que desenvolveu um levantamento semelhante ao dos pesquisadores finlandeses em doze das maiores cidades norte-americanas. Para avaliar o mercado imobiliário e os efeitos do filtering, Mast utilizou um banco de dados de marketing privado, o Infutor Data Solutions, que reúne informações sobre 266 milhões de pessoas nos Estados Unidos. Devido às correntes de mudanças, o economista chegou a conclusões similares às dos colegas da Finlândia, frisando que novas habitações de luxo deixam propriedades vazias em uma grande variedade de bairros.

A análise envolveu 802 empreendimentos multifamiliares, desde os “Texas doughnuts” de Dallas – como são chamados os quarteirões de prédios de garagens cercadas de apartamentos – aos arranha-céus do município de Nova York, e constatou que aproximadamente 70% dos indivíduos que foram viver em um edifício luxuoso recém-finalizado vieram de áreas próximas com renda acima da média e os demais 30% eram de distritos com rendas abaixo da média, informa matéria da Bloomberg. “Já no sexto elo da cadeia (de movimentação dos residentes), 40% daqueles que estavam mudando de unidade eram de bairros com renda abaixo da média”, complementa o artigo de Lee. Ele enfatiza ainda que, quanto mais rapidamente os prédios são construídos, mais vagas são abertas e mais agilmente os imóveis antigos são filtrados para a população com menor renda.

Mesmo com os debates sobre moradia girando, frequentemente, em torno da luta entre desenvolvedores imobiliários que querem erguer residências a preços de mercado e ativistas da habitação popular que desejam forçar os incorporadores a edificar propriedades acessíveis, Lee pondera que esses objetivos não estão em conflito. De acordo com o repórter, a construção de mais unidades pressiona para baixo o reajuste dos aluguéis em todas as faixas de renda. “Aqueles que estão realmente preocupados com a acessibilidade de uma moradia devem encorajar a edificação de residências a preço de mercado – incluindo apartamentos luxuosos”, defende.

Permitir a construção de mais casas é a melhor política habitacional

Apesar dos reflexos positivos no acesso aos imóveis pela população de renda mais baixa salientados nas pesquisas dos economistas finlandeses e de Evan Mast, foi registrada uma filtração para cima em lugares como Los Angeles (Califórnia) e Washington, DC, onde os preços sobem e as novas casas são vendidas para compradores com renda mais elevada. O dado foi ressaltado pelo economista-chefe da área de Pesquisa Econômica e Habitacional da Freddie Mac, Sam Khater, no evento do Urban Institute. Conforme ele, isso acontece principalmente em cidades costeiras dos Estados Unidos e em algumas do interior do Oeste, como Austin e Denver.

Em comum, esses locais apresentavam a tendência de ter poucas construções novas. Khater comentou também que a falta de elasticidade na oferta de moradias – seja por causa das terras limitadas ou caras, restrições de zoneamento ou fatores de demanda – e as oportunidades de empregos que atraem profissionais mais instruídos e com renda mais alta impulsionam a filtragem e a gentrificação. Essa dinâmica limita as opções para pessoas com rendas média e baixa nessas áreas mais centrais e empurram os cidadãos para os subúrbios.

O economista-chefe da First American Financial Corporation, Mark Fleming, que foi outro participante do webinar do Urban Institute, considera que “a melhor política de acessibilidade habitacional é construir mais casas, qualquer casa, em qualquer nível”. Khater assinalou ainda que a falta de oferta de residências desacelera o crescimento econômico já que os indivíduos não conseguem se mudar para os lugares com maior produtividade. A reportagem com a cobertura do debate pode ser conferida no site da revista EDGE do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos.

A disponibilidade de unidades abaixo do necessário ao longo dos anos criou um grande déficit de moradia, especialmente, em estados norte-americanos com economias fortes, mostrou o levantamento The Major Challenges of Inadequate US Housing Supply elaborado pela Freddie Mac. De acordo com o estudo, 29 regiões dos Estados Unidos enfrentam as dificuldades da escassez de habitações, sendo o Oregon o mais afetado, seguido pela Califórnia, Minnesota, Flórida, Colorado e Texas. A situação vem sendo agravada pela migração interna, ocasionada pela busca por melhores empregos e salários. Dessa forma, há pessoas saindo de locais com excesso de residências – como West Virgínia, Alabama e Dakota do Norte – para destinos que registram uma alta procura e falta de propriedades.

Ainda segundo a pesquisa, os regulamentos de zoneamento são a principal razão para esse panorama de escassez de imóveis. Por fim, aponta também que, à medida que a geração millennials (nascidos entre 1981 e 1996) e Z (nascidos a partir de 1997) entram no mercado imobiliário para formar suas próprias famílias, a demanda por imóveis continuará a crescer ao longo dessa década, pressionando os preços e piorando a questão de acessibilidade às propriedades.

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