Enquanto localidades da Europa avançam para transformar suas regiões centrais em ambientes sem veículos particulares e melhoram as condições climáticas e dos centros urbanos, o Brasil ainda foca suas estratégias de desenvolvimento dos municípios nos automóveis.
Cidades sem carros devem ser a norma até o final do século 21, projeta o escritor e especialista no assunto J.H. Crawford em seu site, principalmente em razão das restrições que serão impostas para reduzir os efeitos das mudanças climáticas no mundo. Segundo ele, as localidades precisam começar agora a se preparar para essa transformação, que é uma “oportunidade para construir ambientes urbanos superiores”. Crawford argumenta ainda que os municípios já existentes também podem ser convertidos para modelos sem veículos particulares através do aprimoramento dos transportes coletivo e ativo – a pé e de bicicleta –, criação de espaços verdes acessíveis aos moradores a uma caminhada de cinco minutos de suas casas, instalação de paradas de ônibus, trem e metrô próximas entre elas e aperfeiçoamento do sistema de entrega de mercadorias.
A poluição, do ar e sonora, não é o único motivo pelo qual o autor dos livros Cidades sem Carros (lançado em 2002) e do Manual de Design para Cidades Sem Carros (de 2009) defende a retirada dos automóveis das localidades. Crawford relatou em entrevista para o programa The Agenda, da emissora pública de Ontário (Canadá), que inúmeros estudos confirmam que os veículos são “destrutivos para a socialização nos municípios”. Lugares que colocaram essa modificação em prática em suas áreas centrais, como Oslo (Noruega), Bruxelas (Bélgica), Copenhagen (Dinamarca), Paris (França), entre outros, tornaram essas regiões as mais densamente usadas das cidades, com alta qualidade do meio ambiente e rica vida social, enfatizou o escritor.
“Os locais mais populares nos municípios são sempre os espaços sem carros”, reforçou Crawford em matéria da BBC, como parques, praças e zonas para pedestres. Ele recordou ainda que cidades norte-americanas continuam a destinar grandes extensões de território para estacionamentos. Houston e Dallas (ambas no Texas), por exemplo, têm cerca de 70% dos terrenos urbanos utilizados como vagas para automóveis, conforme o autor. “A crise habitacional de hoje decorre da falta de terra. Livre-se dos veículos e o problema será resolvido imediatamente”, complementou.
Outro fator a favor da diminuição dos carros é uma alteração no perfil de consumo do público mais jovem. O pesquisador de planejamento urbano da Universidade de Manchester (Reino Unido), Ransford Acheampong, disse à BBC que os millennials (nascidos entre 1981 e 1995) estão se afastando da propriedade privada dos automóveis, em comparação aos baby boomers (nascidos entre 1945 e 1960), e optando por serviços de mobilidade compartilhada. “Se você olhar as estatísticas, dirigir agora parece estar em declínio”, assinalou.
As barreiras aos veículos particulares são vantajosas para todos, inclusive para os condutores. O levantamento “A paradox of traffic and extra cars in a city as a collective behaviour” (Um paradoxo do tráfego e carros extras em uma cidade como um comportamento coletivo, em tradução livre do inglês), publicado pela revista Open Science, investigou como as pessoas se locomovem e como os automóveis afetam as localidades, aumentando engarrafamentos, o tempo para percorrer os trajetos e os reflexos no meio ambiente. Os pesquisadores Rafael Prieto Curiel, Humberto González Ramírez, Mauricio Quiñones Domínguez e Juan Pablo Orjuela Mendoza observaram que os veículos exigem uma infraestrutura cara e ocupam muito espaço nos municípios.
A partir dos dados apurados no estudo, foi verificado que quanto mais cidadãos decidem que dirigir é mais rápido, mais tráfego e congestionamentos serão registrados. Esse cenário acaba criando uma situação contraditória, na qual os indivíduos, para tentarem chegar velozmente aos seus destinos, optam pelos automóveis e terminam lotando as vias públicas, impedindo o fluxo contínuo e fazendo com que os motoristas – que em geral estão sozinhos – fiquem mais tempo dentro dos carros. Para saber mais sobre o levantamento, confira a matéria que produzimos para o portal do Somos Cidade.
Estratégias urbanas de Oslo priorizam os cidadãos em vez dos veículos
Devolver as cidades para a população é outro aspecto fundamental das políticas de restrição dos automóveis em áreas centrais. Em Oslo, esse foi o princípio norteador das mudanças promovidas na capital da Noruega, de acordo com a vice-prefeita da localidade para o desenvolvimento urbano, Hanna Marcussen, além da questão ambiental. “Trata-se de como queremos e para quem devem ser nossas ruas. Para nós, elas devem ser onde se conhece pessoas, se come em restaurantes ao ar livre, as crianças brincam e onde a arte é exibida”, ressaltou à reportagem da BBC.
O fechamento de vias do Centro para os carros foi efetuado de maneira gradual, assim como a remoção das mais de 700 vagas de estacionamento, que foram substituídas por ciclovias, bancos e pequenos parques. O resultado, destaca matéria da Fast Company, foi “um grande sucesso, o trânsito é rápido e fácil e as ruas (e o comércio local) estão cheias”. “Você pode ver que realmente está se recuperando o espaço e podendo usá-lo para outros fins, além de estacionar os veículos”, salientou o então CEO da Urban Sharing, Axel Bentsen, à revista. A empresa era responsável pela administração do serviço de compartilhamento de bicicletas do município, a Oslo City Bike, em 2019.
O primeiro passo para essa transformação foi dado na década de 1970, quando a capital norueguesa voltou determinadas vias para os pedestres. Já nos anos 1980, a cidade investiu na qualificação do transporte público e, em 2015, foram iniciadas as modificações mais significativas, com a retirada dos estacionamentos das ruas centrais e proibição dos automóveis em algumas vias. Há ainda garagens no entorno dessa região, informa a reportagem, e um pequeno número de vagas destinadas para motoristas com deficiência e para o carregamento de carros elétricos, assim como certas ruas ficam abertas para os caminhões de entrega no horário da manhã. O acesso é permitido também para os veículos de emergência. Para dar certo, a localidade aprimorou o transporte coletivo e as ciclovias, deixando-as seguras e confortáveis para serem utilizadas.
A oposição de proprietários de automóveis e de comerciantes e empresários às alterações, que temiam ver seus negócios prejudicados pela falta de movimento, foi contornada quando eles perceberam que a área onde ficavam os estacionamentos passou a contar com uma circulação 10% maior de pessoas (dados de 2019 em relação a 2018). “Tenho absoluta certeza de que, no futuro, o carro particular ocupará muito menos espaço nos municípios”, acredita a vice-prefeita de Oslo para o desenvolvimento urbano.
Glasgow e Bruxelas mobilizam-se para tirar os automóveis das regiões centrais
A cidade escocesa de Glasgow anunciou no final de 2021 que irá criar, em cinco anos, uma zona sem veículos particulares em parte do seu Centro histórico para “devolver ambientes públicos às pessoas”, aponta reportagem do jornal The Herald. A previsão é de um investimento de 30 bilhões de libras para aperfeiçoar o transporte coletivo, reduzir a poluição do ar, diminuir os congestionamentos e tornar o local mais atrativo para residentes e turistas.
A proposta envolve ainda o incentivo aos deslocamentos a pé e de bicicleta, isenções para táxis e serviços de emergência e acesso para os automóveis de indivíduos com deficiência. Estacionamentos de vários andares também serão mantidos próximos a essa área. A consulta pública sobre a ação deve ser realizada após maio deste ano, conforme o portal Glasgow Live. O plano de revitalização do Centro inclui o programa Avenues, que está redesenhando ruas dessa parte do município para promover viagens ativas (caminhar e pedalar), e o estabelecimento de uma zona de baixas emissões – que permite a entrada na parte central apenas de carros que atendam aos padrões de liberação de gases de efeito estufa determinados.
A partir de agosto de 2022, será a vez de Bruxelas avançar nas restrições aos veículos em seu Centro. O novo projeto de circulação tornará o bairro Pentágono da capital belga em uma zona livre de automóveis e com mais espaço para pedestres, ciclistas, transporte coletivo e para equipamentos de micromobilidade, como scooters, revela a plataforma The Bulletin. A meta é tanto melhorar o tráfego como o acesso a essa região e colocar as pessoas no foco das estratégias urbanas. A expectativa é também transformar o coração do município em um ambiente mais saudável – diminuindo a poluição do ar e sonora – e atrativo para quem mora, trabalha, visita ou faz compras na zona central.
De acordo com a matéria, muitos habitantes do Pentágono já estavam acostumados a um estilo de vida sem carros: somente 30% das famílias do bairro possuem um, indicando potencial para uma alteração nas escolhas sobre mobilidade dos residentes de Bruxelas. Entre as medidas a serem adotadas para melhorar os deslocamentos estão aumentar a segurança em cruzamentos de 12 zonas de alto índice de acidentes e o direcionamento dos condutores que chegam ao Centro para estacionamentos públicos do entorno, diminuindo o tempo que os cidadãos buscam por uma vaga e o risco de atropelamentos ou batidas. Além disso, as ciclovias serão aprimoradas, um plano de renovação para ônibus, metrô e bonde será lançado e nova sinalização será instalada.
As iniciativas da capital da Bélgica envolvem ainda um incentivo financeiro para que as pessoas troquem seus automóveis por outros meios de locomoção, relata reportagem do site Um Só Planeta. Com o patrocínio da Bruxelles Environnement e apoio da União Europeia, o programa Bruxell’Air oferece uma renda extra para quem experimentar outras formas de circular pela cidade e permitirá elevar a qualidade do ar e tornar a localidade mais sustentável. Os valores disponibilizados variam conforme o perfil de cada família, podendo chegar ao limite de 900 euros (em torno de R$ 4,7 mil, em abril de 2022), e são pagos em uma parcela única.
Os recursos podem ser utilizados em serviços compartilhados de bicicleta e de carros, no transporte coletivo ou até mesmo para comprar equipamentos de ciclismo e a sua solicitação só pode ser feita em até seis meses depois do cancelamento do registro dos veículos – não podem participar motos ou carros comerciais. O serviço conta também com uma consultoria gratuita para ajudar o morador que aderir à ação a planejar os trajetos de acordo com sua rotina.
Paris deve proibir tráfego de automóveis em importantes áreas do Centro até 2024
A capital da França é mais um exemplo de lugar que vem intensificando seus esforços para diminuir a quantidade de veículos em regiões centrais. O trabalho de recuperação dos ambientes urbanos para as pessoas anda em conjunto com a instalação de ciclovias protegidas dos carros, redesenho de cruzamentos para priorizar os pedestres e transformação de uma rodovia ao longo do rio Sena em um parque e trilha para caminhadas, como destaca matéria do Fast Company. Até 2024, o município deve proibir a circulação de automóveis em quatro distritos do Centro e em parte da margem esquerda do Sena.
No entanto, a região – que vem sendo chamada de zona tranquila – não ficará 100% livre dos veículos: será permitido que residentes e aqueles que estiverem indo a uma loja ou galeria, por exemplo, possam chegar com seus carros. Motoristas de entregas, táxis, ônibus, aplicativos de transporte, indivíduos com deficiência e trabalhadores desses locais também poderão acessá-los de automóvel. Apesar das isenções, a estimativa é que mais de 100 mil veículos sejam retirados das vias todos os dias, assim como a poluição que eles geram.
A prefeita Anne Hidalgo acredita ainda na implementação da cidade de 15 minutos, uma visão de planejamento urbano que possibilita aos cidadãos realizarem uma série de atividades do dia a dia a pé ou de bicicleta gastando até um quarto de hora. Para isso, o governo local tem investido em soluções para criar novas centralidades e aperfeiçoar o transporte coletivo e ativo, além de já ter reduzido o espaço para carros, vans e caminhões em ruas do Centro de Paris. As experiências nas cidades europeias mostram um caminho que pode ser seguido pelos municípios brasileiros para repensar o desenho das localidades e priorizar as pessoas em vez dos automóveis, ganhando com isso mais qualidade de vida e segurança para transitar, além dos benefícios ambientais que retirar os carros das ruas traz.
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