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Expandir as disciplinas voltadas para urbanismo e trazer a experiência de profissionais com comprovada atuação nessa área para dentro das universidades são caminhos apresentados por gestores de grandes escritórios de arquitetura e urbanismo do país para qualificar a preparação de novos arquitetos e urbanistas.

A forma como as cidades são desenhadas e funcionam é resultado da combinação da visão urbanística adotada em seu planejamento com os seus contextos geográfico, econômico e social. Conhecimento, repertório cultural e um olhar crítico para essa área são essenciais para pensar os rumos dos municípios e oferecer espaços urbanos qualificados, mistos, vibrantes e densos.

Atualmente, existem em torno de 700 instituições de ensino de Arquitetura e Urbanismo no país, formando milhares de novos arquitetos e urbanistas todos os anos, os quais se somam aos 220 mil profissionais já atuantes no mercado brasileiro, conforme dados do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU).  No entanto, apesar de sua relevância, o urbanismo é ainda pouco aprofundado pelos cursos universitários do Brasil e de outros países, que apresentam em seus currículos uma distância entre conceitos teóricos e as demandas atuais das localidades, colocando no mercado profissionais sem a formação adequada para atuarem nesse segmento.

O Somos Cidade consultou gestores de grandes escritórios de arquitetura e urbanismo do país sobre o tema e apresenta aqui nesta reportagem um importante panorama do impacto do ensino de arquitetura e urbanismo nas universidades brasileiras no mercado profissional.

As faculdades não estão aprofundando o conhecimento técnico e a interação do projeto de arquitetura com as demais disciplinas, considera o arquiteto e urbanista Kardec Borges, sócio da Unyt Arquitetura de Resultados e responsável pelo gerenciamento da equipe de Desenvolvimento de Produtos do escritório, que está sediado em Goiânia (GO). Na sua opinião, as instituições de ensino superior não estão preparando os estudantes para o mercado, exigindo muito pouco da parte de projetar e da integração do aluno com a realidade profissional. A mesma posição é defendida pelo arquiteto e urbanista Lucas Obino, fundador e CEO da Ospa, empresa com unidades em Porto Alegre (RS) e São Paulo (SP), que reforça a percepção do afastamento cada vez maior da formação acadêmica do cenário prático, tanto técnica quanto culturalmente.

Para o arquiteto e urbanista Murilo Vidal, diretor de Criação e Novos Negócios do escritório AREAURBANISMO, falta conhecimento sobre a produção urbanística nacional nos estagiários e recém-formados contratados pela companhia, localizada na capital de São Paulo. “Há inúmeros projetos interessantes no Brasil. Sempre fico impressionado com o desconhecimento sobre iniciativas icônicas tanto públicas quanto privadas, tais como o Porto Maravilha no Rio de Janeiro (RJ), Porto Digital no Recife (PE), Estação das Docas e Feliz Lusitânia em Belém (PA) ou mesmo o Parque Una em Pelotas (RS) e a Cidade Pedra Branca em Palhoça (SC)”, salienta.

Vidal observa que há uma carência nos jovens profissionais de um repertório mais amplo, de saber sobre as legislações nacionais, estaduais e municipais que regem o desenho urbano local e sobre a produção privada de urbanismo do País. Porém, ele ressalta que não é possível generalizar a qualificação dos estudantes, pois as faculdades são diferentes entre si. Ele acrescenta que isso também depende muito do engajamento pessoal de cada um, ou seja, é uma habilidade adquirida. “Todavia, vale parabenizar sim a qualidade ímpar da produção gráfica de uma nova geração, a qual iniciou o seu percurso acadêmico utilizando ferramentas digitais”, elogia.

Já o arquiteto e urbanista Gabriel Grandó, cofundador e diretor da IDEIA1 Arquitetura e do NAV – Núcleo de Estratégias Criativas, na capital gaúcha, tem percebido, com o passar dos anos, uma aparente redução na qualidade, profundidade e criatividade dos portfólios que o escritório recebe. “Talvez nós tenhamos nos tornado mais exigentes, não sei”, pondera. Grandó lembra que quando se formou, na Unisinos em 2003, as cadeiras de urbanismo eram voltadas para projetos destinados ao poder público, como grandes intervenções em áreas adensadas, buscando alternativas viárias. “As edificações nessas regiões eram tratadas volumetricamente, mas sem aprofundamento, pois seriam construídas pela iniciativa privada. Isolando assim as possibilidades de relações frutíferas entre essas duas esferas (pública e privada)”, descreve.

Sobre o aprendizado de urbanismo nas universidades, Vidal pontua que existem falhas e também acertos. “Levando em consideração a situação econômica brasileira, o simples fato das produções arquitetônicas e urbanas locais ainda serem referências globais prova a qualidade do nosso ensino”, argumenta. Um exemplo dado por ele é Curitiba (PR), que tem a sua concepção de corredores de ônibus até hoje estudada em todo o planeta. No entanto, ele acredita que há lacunas nessa área que poderiam ser solucionadas por meio de ações que envolvessem a academia, o mercado e o poder público.

Borges analisa também que a cadeira de urbanismo é pouco explorada no currículo, principalmente nas faculdades da região de Goiânia. “A disciplina torna-se eletiva na formação e, devido a essa pouca dedicação à matéria na grade curricular, a visão crítica atualizada do pensamento de cidade, em especial, com as tendências mundiais, é inexistente”, assinala.

Falta conhecimento sobre o funcionamento e as relações do mercado nos jovens profissionais

Os cursos de Arquitetura e Urbanismo não estão conseguindo preparar os alunos para atenderem às demandas atuais do setor, frisa o sócio da Unyt Arquitetura de Resultados, Kardec Borges. “A academia continua centrada nas relações das teorias e na aplicação do conhecimento dos docentes, que têm pouco entendimento das relações mercadológicas de projetos para o consumidor”, avalia. Conforme ele, essa situação leva a falhas nas informações sobre leis, normas e regramentos que regem o trabalho de quem projeta. “Não há uma atualização sobre as mudanças que ocorrem nas legislações ou mesmo um questionamento ou um exercício do pensamento crítico sobre essas regras com os estudantes na grade curricular e nem cobram isso até a formação do profissional”, reforça.

A dificuldade de aproximação entre a realidade do segmento imobiliário, mais fluída, e das universidades, mais regrada, é destacada pelo diretor de Criação e Novos Negócios da AREAURBANISMO, Murilo Vidal. “Fato esse que acontece no mundo como um todo, porém no Brasil esse fosso de distanciamento parece ser mais profundo”, sentencia. Contudo, Vidal recorda que as faculdades de Arquitetura e Urbanismo no País seguem padrões impostos pelo Ministério da Educação.

Com cerca de 20 anos de atuação e em torno de 100 colaboradores, o Grupo Ospa conta com aproximadamente 30% da sua equipe composta por estagiários e recém-formados. E nesses novos profissionais um dos maiores problemas notados pelo fundador e CEO do escritório, Lucas Obino, é a preparação técnica estar cada vez mais secundária. “O que falta, principalmente, é formação cultural, entendimento amplo e racional sobre a realidade. Na Ospa, escolhemos as pessoas por perfil cultural e depois direcionamos tecnicamente”, explica. Obino comenta que o aprendizado se dá de maneira individual e constante.  Ele analisa ainda que esse panorama é consequência de o mundo estar cada vez mais rápido e complexo, o que dificulta a racionalização e compreensão do contexto contemporâneo. “O afastamento entre teoria e prática no universo acadêmico gera um espiral descendente, em que tudo é relativizado porque não encontra confrontação prática, nada precisa ser real, tudo é subjetivo”, constata.

O equilíbrio entre teoria e prática também é defendido pelo cofundador e diretor da IDEIA1 a, Gabriel Grandó, que aponta que os alunos que tiveram muita experiência em estágios durante a faculdade saem mais preparados para o mercado. “A universidade é o momento ideal para o aprofundamento teórico – isso vai fazer diferença lá na frente –, mas, a partir da metade do curso, deve-se começar a ter essa equiparação dos conteúdos com a prática”, afirma. Atualmente, o escritório possui 25 colaboradores, sendo 16 arquitetos e seis estagiários da área.

Grandó detalha que o distanciamento da realidade do mercado é resultado de as faculdades serem formadas majoritariamente por profissionais teóricos. “E o próprio Ministério da Educação incentiva isso, criando dificuldades para que mestrandos e doutorandos complementem seus conhecimentos com uma experiência prática, pois exigem ‘dedicação exclusiva’, bem como dando avaliação superior para as instituições com mais mestres, doutores…”, critica. Na sua opinião, as universidades deveriam ser o HUB do conhecimento universal, unindo esses especialistas com outros que têm expertise prática.

A pouca aplicabilidade dos conceitos e teorias abordados nos cursos de Arquitetura e Urbanismo também é salientada por Borges como uma das principais carências na formação dos acadêmicos. Para ele, isso é uma consequência do grande número de faculdades desse segmento sendo abertas e do problema “crônico dos docentes sem experiência – pelo menos nas cadeiras de projeto”. O sócio da Unyt ressalta que o escritório, com sete anos de atuação no mercado nacional e internacional, tem hoje 27 pessoas entre colaboradores e associados, sendo dois estagiários e três recém-formados em arquitetura e urbanismo.

A falta de conhecimento real sobre o funcionamento do setor imobiliário levou a AREAURBANISMO, que trabalha há duas décadas com o foco em urbanismo e paisagismo, a promover workshops internos para os recém-formados contratados. No momento, a empresa conta em seu time com 15 pessoas, entre eles um estagiário e um jovem profissional de arquitetura e urbanismo. “Os acadêmicos que acabam de se graduar chegam ao escritório com uma vontade muito grande de aprender e pôr em prática todo o conhecimento adquirido não somente ao longo do seu curso, mas também através de viagens de estudos e da absorção da vida urbana. Um bom urbanista está sempre olhando e aprendendo com a cidade”, revela. Para suprir um pouco das demandas percebidas nos estudantes recém-saídos das faculdades de Arquitetura e Urbanismo, o Grupo Ospa desenvolveu um braço de educação, criando o Instituto de Cidades Responsivas.

Faculdades devem ampliar temas relacionados ao urbanismo em seus currículos

Aprofundar e expandir as disciplinas abordadas nos cursos de Arquitetura e Urbanismo é uma das iniciativas que podem contribuir para preparar melhor os urbanistas. Gabriel Grandó, da IDEIA1, adianta que as recentes intervenções privadas em áreas públicas é um dos assuntos que deveriam ser trabalhados nas academias, trazendo a arquitetura das edificações também como um elemento que compõem a qualidade urbana. “Pensar em como viabilizar financeiramente ou agregar valor de mercado para as incorporações residenciais e comerciais no cenário das cidades é de extrema importância – quem vai continuar transformando e aprimorando cada vez mais os espaços públicos serão as desenvolvedoras e incorporadoras privadas”, observa.

Ele acrescenta que relacionamento é mais uma questão a ser incluída entre as disciplinas, seja ele entre colegas, times maiores ou com clientes. “Psicologia, coaching, técnicas de gestão de pessoas e de negociações em geral, fonoaudiologia para uma boa apresentação e defesa de projetos seriam muito produtivas para os alunos de arquitetura e urbanismo”, complementa. Apesar do acréscimo desses conteúdos, Grandó não vê necessidade de revisão dos currículos das faculdades. “Tive uma ótima formação, mas há sim muita abertura de intersecção entre conhecimentos diversos que deveriam ser implementadas”, considera.

Já Kardec Borges, da Unyt, enfatiza que o entendimento construtivo e mais cadeiras sobre urbanismo para se ter uma visão crítica e colaborativa dos profissionais na formatação dos municípios são os assuntos que poderiam fazer parte dos cursos. Sobre modificações na grade curricular, ele pondera que a preparação continuada é fundamental, especialmente, quando se avalia a abrangência da área de Arquitetura e Urbanismo. “Um panorama interessante seria a formação básica com direcionamento especializado (como bacharelado e graduação)”, projeta Borges, que é graduado pela PUC de Goiás, em 2001, e é presidente da Associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura – regional de Goiás (Asbea/GO).

Para Lucas Obino, do Grupo Ospa, racionalizar o subjetivo parece ser o rumo a ser trilhado pela academia, uma vez que se fala tanto atualmente sobre ciência e dados. “Vejo que as faculdades deveriam direcionar os aspectos vocacionais, colocando os caminhos em perspectiva e contexto. A especialização (dos profissionais) deve ficar por conta das escolhas individuais, em formação continuada, sempre vinculando teoria e mercado”, argumenta Obino, que se graduou na Ufrgs em 2007.

Gabriel Grandó frisa que a arquitetura e o urbanismo são um ramo muito abrangente, no qual todos acabam se formando como “clínicos gerais” e isso é muito difícil para o graduando. “Tendo um direcionamento e se especializando da metade do curso para o final em áreas nas quais o estudante já mostra facilidade, seria um caminho para uma fluidez, felicidade e para se ter melhores profissionais”, avalia. Já Borges destaca que, embora com boas intenções, a obrigatoriedade de títulos de mestrado para ensinar gerou uma dificuldade para o segmento. “Por um lado, criou-se um mercado de mediocridade por esses títulos. É espantoso quando se analisa as linhas de pesquisa, com quase nenhuma utilidade, e, por outro viés, retira-se a oportunidade de grandes especialistas que atuam no setor participarem do ensino por não terem mestrado”, enfatiza.

Ensino e debate sobre legislação urbanística, enriquecimento de repertório de projetos nacionais e exercícios práticos de urbanismo através de parcerias com o setor são as sugestões de Murilo Vidal, da AREAURBANISMO para melhorar os temas tratados nos cursos. “Diversas universidades do mundo realizam essa parceria entre escritórios e faculdades como uma maneira de aproximar essas duas realidades”, exemplifica Vidal, que se formou em 2003 na FAU-Mackenzie e em 2006 na Architectural Association de Londres.

Segundo ele, os currículos acadêmicos merecem sempre serem avaliados por especialistas no assunto. “Creio também na formação continuada. De fato, um bom urbanista nunca para de aprender. Além disso, penso que a questão central é realmente uma aproximação bem-vinda entre a academia e o mercado”, defende. Vidal assinala ainda que os profissionais que estão hoje à frente da boa produção urbanística do País são oriundos de diversas universidades brasileiras, o que demonstra que há uma qualidade na educação acadêmica espalhada pelo território nacional. “Vejo com bons olhos essa discussão contemporânea sobre as nossas cidades e acredito que todos os envolvidos podem contribuir para termos localidades melhores, ou seja, mais justas, verdes, humanas e criativas”, pontua. 

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