Com o foco na disponibilidade abundante de habitações, o Japão conta com uma política nacional de planejamento urbano que possibilita a edificação de residências, comércios e até indústrias na maioria de suas 12 categorias de uso da terra.
Casas independentes e multifamiliares, escolas, clínicas de saúde e templos, igrejas ou santuários misturam-se a pequenos negócios e escritórios no tecido urbano que compõe diversas localidades japonesas. É comum lojistas morarem no pavimento acima dos seus estabelecimentos, fábricas de menor porte instaladas ao lado de habitações unifamiliares e uma multidão de pessoas circulando pelas ruas de bicicleta, como descreve o canadense Greg Lam, que há anos vive em Tóquio e compartilha informações e peculiaridades sobre o país em seu canal no YouTube, o Life Where I’m from.
E esse cenário só é possível, segundo Lam, devido às normas de zoneamento estabelecidas de forma centralizada pelo governo para todo o território nacional e que preveem o uso misto na maioria das regiões dos municípios, incluindo aquelas com mais restrições. Enquanto no Canadá e nos Estados Unidos as cidades ainda são marcadas pela separação estática entre moradias, comércio e indústrias, com a predominância do zoneamento unifamiliar, no Japão pode-se ter, em um mesmo bairro, habitações independentes e prédios baixos para três, quatro ou mais famílias, assim como alguns tipos de lojas e serviços, exemplifica Lam.
Ele acrescenta que, mesmo na categoria residencial de baixa densidade, uma das que possui as maiores limitações, é permitido ter um negócio em casa, desde que o local destinado para o empreendimento tenha menos de 50 metros quadrados e seja menor que metade da área total do imóvel. Por isso, é possível ver muitas moradias com mercadinhos ocupando a parte térrea ou com máquinas automáticas, de bebidas ou de outros produtos, em frente às unidades. Ao todo, existem no país 12 tipos de uso do solo definidos pelo Ministério da Terra, Infraestrutura, Transporte e Turismo do Japão (Mlit), sendo seis deles habitacionais, três comerciais e três industriais.
As restrições entre os zoneamentos variam no que se refere à possibilidade de construção de edifícios e negócios maiores nas áreas residenciais, a presença de universidades, de restaurantes, hotéis e cabines de karaokê – populares entre os nipônicos – e as opções de deslocamento, com vias mais amplas e acesso ao transporte público. Já no que se trata das zonas de comércio, as diferenças pontuadas são relacionadas às dimensões e à natureza dos empreendimentos permitidos. Conforme material do Mlit, na categoria com mais flexibilização desse segmento, pode-se aliar moradias, pequenos prédios de fábricas, cinema, bancos, bares e restaurantes e grandes lojas de departamento.
Por sua vez, as três zonas industriais foram classificadas de acordo com o impacto que elas têm no meio ambiente e na qualidade de vida das pessoas, ou seja, o quanto podem gerar de ruídos sonoros e fumaça. Em apenas uma dessas categorias, a exclusiva para o setor produtivo, é proibido erguer habitações, hospitais, escolas e comércios. Lam observa ainda que nas outras duas regiões industriais os cidadãos têm a oportunidade de encontrar terrenos com valores mais acessíveis para comprarem ou alugarem suas casas, o que acaba levando muitos indivíduos para esses lugares, que podem contar também com algumas conveniências, como serviços e lojas.
Em seu vídeo, publicado em 2021, Lam ressalta que a criação de regras simples e claras em todo o Japão faz com que as pessoas tenham liberdade para edificar o que quiserem em seus terrenos – dentro das normas pré-estabelecidas –, da mesma forma que dá mais segurança aos desenvolvedores imobiliários, que enfrentam menos resistência de associações comunitárias e grupos de Nimby (Não no meu Jardim), pois todos sabem o que pode ser construído no local onde vivem, seja uma fábrica, um shopping ou um arranha-céu. Dessa maneira, o mercado decide o que é mais adequado de ser erguido em determinada área, afirma.
Além disso, as categorias de zoneamento japonesas têm outras restrições associadas, como a taxa de ocupação dos lotes e altura e recuo das edificações, concebidas para garantir ventilação e iluminação natural apropriada. Apesar da política ser centralizada e ter abrangência nacional, os governos municipais são os responsáveis por implementá-la e pela distribuição das terras entre as 12 zonas e por idealizarem os seus próprios planos diretores, como detalha matéria do nosso portal. No entanto, esses documentos precisam ser aprovados pelo departamento de Planejamento das Cidades do Ministério da Terra, Infraestrutura, Transporte e Turismo, que controla ainda os códigos construtivos do país.
Legislação japonesa evolui ao longo das décadas para assegurar estoque de residências
A estratégia habitacional da nação está centrada em elaborar “bairros compactos, transitáveis e de baixo carbono, com muitas casas para todos”, assinala em artigo o fundador e diretor-executivo do Instituto Sightline, Alan Durning. Para ele, os resultados dessa política são notáveis e podem ser confirmados pela abundância de moradias, preços acessíveis e formas urbanas orientadas para o trânsito e caminháveis. Durning cita o exemplo da capital japonesa que, em 2018, construiu 145 mil novas residências, mesmo com Tóquio dispondo de poucos terrenos livres e esses imóveis sendo acrescentados em bairros já existentes.
O diretor do Instituto Sightline compara que a cidade nipônica tinha, naquele ano, uma população de cerca de 13,5 milhões de pessoas, quase o mesmo que os estados de Idaho, Oregon e Washington (EUA) reunidos. Contudo, as regiões dos Estados Unidos ergueram menos que 84 mil habitações no mesmo período. “Na América do Norte, esse desenvolvimento ‘preenchido’ (dentro de comunidades edificadas) é controverso, lento e caro por causa da burocracia e da oposição da vizinhança. A proeza de Tóquio em 2018 não foi uma anomalia. O ritmo surpreendente de construção de casas da capital do Japão se mantém há anos”, argumenta. Segundo Durning, a localidade edifica, em geral, mais moradias que toda a Califórnia e, em alguns anos, que toda a Inglaterra.
“Provavelmente, não é coincidência que o sistema geral de regulamentação sobre residências japonesas sempre foi simples, uniforme e marcadamente mais acolhedor para imóveis de vários tamanhos e tipos do que as políticas de outras nações”, analisa o diretor. Ele destaca ainda o estudo “Renascimento Urbano como Intensificação: Regulamentação da Construção e Reescalonamento da Governança do Lugar no Boom Manshon de Tóquio”, dos professores Andre Sorensen, Junichiro Okata e Sayaka Fujii, respectivamente das universidades de Toronto (Canadá), Tóquio e Tsukuba (Japão), que faz uma recuperação histórica da evolução das estratégias habitacionais do país do sol nascente.
O primeiro código de uso da terra do Japão que se tem registro é de 1919 e contava com apenas três tipos de zoneamento. Já em 1968, as regras foram atualizadas e passaram a ter oito zonas e, em 1992, a legislação foi modificada mais uma vez para ganhar os contornos que possui atualmente, com as 12 categorias de uso do solo para todo o território, aponta a pesquisa. Durning recorda também que nem sempre as propostas voltadas para esse segmento foram bem aceitas pelas comunidades e que, na década de 1970, houve uma reação popular contra os arranha-céus e ocorreu uma desaceleração no ritmo de construção de moradias.
A situação levou a uma escassez de unidades no mercado e à elevação dos preços, semeando uma crise que impactou profundamente a economia japonesa nos anos 1990. Foi nesse momento que foram efetuadas as modificações nas legislações de desenvolvimento urbano e nos códigos de construção para impulsionar que mais edificações fossem erguidas e, com mais oferta, que os valores dos imóveis começassem a baixar, relata o diretor do Instituto Sightline. Entre as medidas, estavam uma norma que excluía os porões da fórmula para calcular a área interna dos prédios permitida, o que possibilitou que as estruturas fossem um andar mais altas, e um sistema para autorizar novos arranha-céus de maneira mais ágil, incentivando que mais residências se tornassem uma realidade.
Renovação acelerada de habitações pode criar mais unidades no mercado japonês
Entre as muitas tradições nipônicas, a atualização dos estoques de moradias é uma das que chama a atenção. As “casas descartáveis”, como chamou Alan Durning, diretor-executivo do Instituto Sightline, são um fenômeno tanto cultural como uma necessidade de segurança. Durning pontua em seu artigo que as rigorosas leis de proteção contra terremotos do país são remodeladas frequentemente, o que faz com que os imóveis depreciem rapidamente, entre 20 e 30 anos, e sejam substituídos logo em seguida. “Como as reservas habitacionais mudam velozmente, o Japão tem muito mais chances de instalar edifícios maiores (onde antes havia pequenas casas e, assim, elevar o parque residencial)”, enfatiza.
Ele complementa que, nos últimos 50 anos, a prefeitura de Tóquio triplicou o seu estoque de moradias, ampliou o número de unidades na cidade em cerca de 2% ao ano, desde 2000, e manteve os aluguéis e os preços de compra dos imóveis estáveis. Essa visão de não valorizar a longevidade das edificações é explicada tanto pelas “técnicas construtivas pobres” que foram desenvolvidas para atender à crescente demanda por habitações após a Segunda Guerra Mundial como pelas inovações de processos e materiais para dar mais resistência contra desastres, como terremotos e tsunamis, explica artigo da arquiteta Kaley Overstreet no ArchDaily.
O fato de as pessoas acreditarem que suas residências irão perder valor rapidamente também faz com que elas tenham pouco incentivo para permanecer em suas casas, frisa Kaley. Isso proporciona um mercado no qual os proprietários sentem-se livres para projetarem suas moradias como quiserem. “De fato, no Japão, há quase cinco vezes mais arquitetos licenciados, devido à necessidade de desenhar e construir novas unidades”, sentencia. Contudo, ela observa que essa tendência pode estar sendo substituída por uma abordagem diferente. Em vez de demolir as edificações, alguns cidadãos estão avaliando renovar seus imóveis, readequando as plantas baixas, derrubando paredes e abrindo espaços de uma maneira mais moderna. “Pela primeira vez em muitos anos, as pessoas estão começando a apreciar uma casa antiga”, revela.
Essa movimentação imobiliária, ressalta Kaley, é um reflexo das modificações pelas quais o Japão está passando, como o menor crescimento populacional e o envelhecimento de seus habitantes. Em breve, o país deve ter mais de um terço de sua população com mais de 65 anos, adianta a arquiteta. Segundo ela, essas alterações demográficas estão levando a um número acima da média de residências vazias, e essa quantidade deve aumentar para quase 30% até 2033 – fazendo com que a nação repense suas tradições e estratégias.
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