gentrificação

A combinação entre proprietários que não querem ver seus bairros mudarem e leis restritivas para a construção de novas moradias cria o cenário que leva ao deslocamento de famílias de baixa renda de suas comunidades para outras com menos infraestrutura, dificultando o desenvolvimento de localidades acessíveis a todos.

A gentrificação costuma ser associada, pela opinião pública em geral, ao movimento econômico e social gerado pela implementação de novos empreendimentos imobiliários, principalmente os de luxo, em regiões mais antigas e tradicionais das cidades ou naquelas onde predominam os residentes de renda baixa. Por outro lado, uma análise mais profundada sobre o tema revela outros motivos para o deslocamento das pessoas, os quais envolvem questões políticas e estruturais.

“Os verdadeiros vilões na história da gentrificação não são os novatos de 20 e poucos anos que se instalam em bairros de renda mista, mas os proprietários (de imóveis) integrantes de grupos de Nimby (Não no Meu Quintal, da sigla em inglês) das comunidades mais ricas”, afirma a escritora Jerusalem Demsas em artigo para a revista The Atlantic. Mesmo quando não estão diretamente brigando para manterem os lugares onde vivem inalterados, os participantes dos Nimbys têm os seus interesses defendidos pela maioria das instituições e autoridades eleitas, assinala Jerusalem.

A escritora argumenta ainda que são esses grupos que impedem a construção de novas moradias em suas regiões, sejam elas unidades para os cidadãos de baixa renda ou para um público mais jovem e em ascensão em suas carreiras. “Perversamente, em vez de planejar o crescimento populacional em áreas urbanas, muitos governos estaduais e municipais norte-americanos fizeram o oposto: trabalharam para restringir e retardar a edificação, acreditando que uma cidade próspera e economicamente bem-sucedida pode permanecer estagnada”, acrescenta Jerusalem, que escreve há anos sobre a crise habitacional dos Estados Unidos.

Ao dar poder de decisão sobre o que pode ser edificado ou não em seus bairros, incluindo residências mais acessíveis, as administrações locais possibilitam que os Nimbys segreguem economicamente as comunidades. Quando proprietários ricos se manifestam contra empreendimentos em “seus quintais” – e as autoridades permitem que isso ocorra – menos casas são erguidas, contribuindo para a escassez de oferta de moradias e para a elevação dos preços das unidades para todos, explica a escritora. Dessa forma, analisa Jerusalem, cria-se o contexto para a gentrificação.

O termo vem do inglês “gentrification” e surgiu em 1964, quando a socióloga britânica Ruth Glass o utilizou para descrever alterações na organização espacial de Londres (Inglaterra) em estudo que fazia sobre as modificações urbanas da capital inglesa, como detalha matéria do ArchDaily. A expressão ganhou mais visibilidade a partir do final dos anos 1990 nos Estados Unidos, quando passou a ser usada em diversas pesquisas acadêmicas sobre o deslocamento, gradual ou súbito, de pessoas de seus bairros para dar lugar a usuários com maior status econômico e cultural.

Naquele país, além das dificuldades de substituição dos habitantes dessas comunidades por outros de renda e nível educacional mais altos, a gentrificação desencadeia conflitos entre os residentes recém-chegados, grande parte deles pessoas com formação universitária e predominantemente brancas, e os antigos moradores das localidades – a maioria delas composta por indivíduos de cor e de baixa renda (nos Estados Unidos o termo “de cor” é utilizado para identificar negros, latinos e asiáticos). “Esse cenário torna um problema estrutural em individual”, reforça a escritora.

Colocar esses grupos em lados opostos impede o potencial alinhamento político para tornar os municípios mais acessíveis, aponta Jerusalem. Ela recorda que essa união de forças não é impossível e cita o exemplo dado pelo historiador Suleiman Osman em seu livro “The Invention of Brownstone Brooklyn” (A invenção do Brownstone Brooklyn – estilo de casas edificadas com um arenito marrom que são uma marca do bairro de Nova York). A obra conta como inquilinos de alta renda aliaram-se aos de baixa renda, entre as décadas de 1960 e 1970, para lutar por seus direitos como locatários, “aproximando artistas e profissionais de classe média, etnias brancas e pobres não-brancos”.

 

Construção de bons espaços urbanos e de mais habitações pode reduzir o deslocamento de indivíduos de suas comunidades

Por serem estruturas vivas, nenhuma cidade permanece inalterada ao longo do tempo, podendo mudar de maneira lenta e quase imperceptível ou de forma acelerada e evidente, como acontece quando novos prédios são erguidos em uma área, relata o especialista em economia urbana Joe Cortright em artigo publicado pelo Caos Planejado. “Mesmo lugares sem edificações recentes veem uma entrada e saída constante de residentes, estimulada em sua maioria das vezes pelo curso natural da vida das pessoas. É uma ilusão sugerir que qualquer bairro irá permanecer inalterado, especialmente os de baixa renda”, ressalta.  

Para Cortright, o principal desafio da gentrificação não é parar as modificações que ela traz, mas sim “descobrir maneiras de garantir que produzam benefícios, se não para todos, para uma ampla gama de moradores atuais e futuros”. Nesse sentido, acredita ele, é preciso entender as reais causas que levam ao deslocamento dos cidadãos e desenvolver políticas para minimizar seus reflexos negativos. A escassez de boas áreas urbanas e de residências para acomodar quem gostaria de viver nesses ambientes qualificados é apontada como o verdadeiro motivo por trás do aumento dos preços dos apartamentos em regiões gentrificadas.

Ele observa que as restrições para construir mais habitações em comunidades que estão se tornando mais atraentes é um dos fatores que não contribui para diminuir a substituição de residentes de renda mais baixa por outros com mais recursos. O especialista em economia urbana destaca ainda a visão do analista político e escritor Daniel Kay Hertz de que todos que têm uma demanda por espaço em um município acabam sendo “gentrificadores”, pois exercem de alguma forma mais pressão no mercado imobiliário, independentemente do bairro que escolham para viver, inclusive os de baixa renda.

Em artigo para a Bloomberg, Hertz declara que se uma localidade limita a oferta de moradias, serão criadas comunidades economicamente segregadas. Ele salienta que todos que vivem em uma cidade estão sujeitos aos processos sistêmicos que acabam levando ao deslocamento dos indivíduos de lugares com mais infraestrutura e oportunidades para outros mais precários. A escritora Jerusalem Demsas complementa que novas habitações não são maldições para os municípios. No texto para a revista The Atlantic, ela reúne informações de estudos que demonstram que a edificação de uma quantidade maior de residências não provoca deslocamento, pelo contrário, ajuda a reduzi-lo.

Pesquisa realizada pela economista Kate Pennington, por exemplo, revelou que pessoas que vivem a até 500 metros de um novo empreendimento em São Francisco (Califórnia, EUA) viram seus aluguéis e o risco de deslocamento caírem. O levantamento apurou também que “proprietários de unidades com locação controlada dentro de uma área de 100 metros (de complexos recém erguidos) eram cerca de 30% menos propensos a despejar seus inquilinos após a construção de mais moradias”.

Para Jerusalem, não se pode esquecer que o “motor central” da desigualdade habitacional dos Estados Unidos é uma longa história de segregação econômica e racial, que pode se manifestar de muitas maneiras – desde a separação dos bairros residenciais dos comerciais até a manutenção de zoneamentos que privilegiam as casas unifamiliares e apontam os imóveis multifamiliares como “incômodos”. A escritora pondera que em vez de focar na questão da segregação, a atenção e as discussões voltam-se para o “novo – para os arranha-céus próximos a residências geminadas – e o desafio, que muitas cidades não conseguem cumprir, de integrar comunidades sem destruir o que os grupos marginalizados chamam de lar”.

 

Alterar regras de zoneamento e garantir moradias acessíveis são caminhos para minimizar efeitos da gentrificação

Diferentes mecanismos das legislações urbanas podem ser usados para garantir que mais habitações sejam erguidas, reduzindo os reflexos da gentrificação nas localidades e auxiliando no desenvolvimento de municípios com maior integração e igualdade de oportunidades de acesso às residências. Matéria da Vox reforça que o aumento da produção de moradias contribui para a diminuição dos aluguéis e garante também que os novos inquilinos não elevem o preço dos imóveis existentes, uma vez que contam com as novas edificações para atender às suas demandas. “Aliviar a pressão que o incremento dos valores das locações exerce (no mercado imobiliário) é fundamental para interromper o deslocamento indesejado de pessoas”, afirma a reportagem.

Além disso, a Vox indica que a definição de políticas de proteção aos locatários e a preservação das habitações acessíveis já construídas são outras maneiras de minimizar os impactos da gentrificação, sejam os despejos ou a substituição de moradores de baixa renda por outros com mais condições financeiras. Outro elemento essencial nesse debate assinalado pela Vox é a necessidade de alterar as regras de zoneamento das cidades para ajudar a combater a segregação e permitir o surgimento de comunidades mais densas, diversas e dinâmicas.

Em relação às normas brasileiras com potencial para contribuir positivamente na modificação do cenário atual das localidades, artigo do Caos Planejado sobre as diferentes visões de grupos Nimbys e Yimbys (Sim no Meu Quintal) sobre os municípios ressalta que instrumentos como o adensamento e a verticalização dos bairros podem ser utilizados pelas administrações públicas para promover melhorias nos ambientes urbanos e acrescentar mais unidades residenciais. Um exemplo dado é de São Paulo, que em 2014 aprovou o novo Plano Diretor Estratégico, permitindo a otimização do uso do solo nos denominados Eixos de Estruturação da Transformação Urbana, que ficam próximos a estações de metrô e de corredores de ônibus.

Já na capital do Rio de Janeiro, o Reviver Centro une diferentes medidas para recuperar urbanisticamente essa área da cidade, agregando mais habitações às já edificadas na região, que abrange bairros centrais e da Lapa. Além de atrair novos moradores, adensar e verticalizar o local e qualificar os ambientes, criando espaços verdes e aprimorando a mobilidade, haverá imóveis voltados para o público-alvo do projeto de aluguel subsidiado, diversificando a população. O artigo salienta ainda que é preciso aguardar o teste do tempo para verificar os seus resultados, mas a iniciativa já mostra pistas de “como aliar desenvolvimento do mercado imobiliário a programas residenciais”.

Os custos das restrições impostas para a construção de mais habitações também são destacados no texto, que lembra que a manutenção do modo de vida tradicional das comunidades centrais, onde moram boa parte da elite econômica, implica impactos para toda a sociedade. Abrir mão de uma série de benefícios para a população em geral, como acesso a melhores opções de residências, trabalho, transporte, serviços e lazer, é um desses efeitos.

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