Escritora norte-americana defendeu que lugares com usos mistos, pessoas circulando pelas vias dia e noite e convivência comunitária, onde vizinhos de conhecem e redes de apoio se formam, tornam os espaços mais vivos e seguros.
As ruas e suas calçadas são os órgãos mais vitais de uma localidade, enfatiza Jane Jacobs em seu livro “Morte e Vida das Grandes Cidades”, lançado em 1961 e que até hoje é considerado por muitos especialistas em planejamento urbano, arquitetos e desenvolvedores como uma das obras mais revolucionária da maneira de pensar os municípios. Em uma época em que o Modernismo de Le Corbusier e seus distritos minimalistas e separados por função espalhavam-se pelo mundo, a escritora, jornalista e ativista social norte-americana surgiu como uma das principais críticas dessa visão urbanística.
Na contramão do pensamento modernista, para Jane os bairros devem ser compactos, com quadras não muito grandes, densos e diversos em seus usos, promovendo a movimentação de cidadãos ao longo do dia e oferecendo segurança a todos. “Se ela (cidade) falhar nisso, irá ter uma série de problemas”, argumenta. A escritora aponta em seu livro que são três as características essenciais para que um lugar possa dar proteção aos indivíduos. A divisão nítida entre público e privado, diferente do que ocorre em subúrbios ou em conjuntos habitacionais, é um dos pontos destacado por ela. Outra particularidade é a existência do que Jane chama de os olhos da rua, que são as pessoas que utilizam as vias ou as que, consciente ou inconscientemente, contemplam esses espaços de suas casas, exercendo uma vigilância natural do que ocorre neles, como detalha matéria do Urbanidades.
A combinação de um ambiente urbano atrativo com prédios com janelas voltadas para as calçadas eleva a quantidade de “olhares” observando a circulação dos cidadãos e, consequentemente, a segurança, assinala a jornalista. Além disso, o terceiro fator que contribui para esse cenário é que as ruas devem ter usuários transitando continuamente, tanto os residentes como os “estranhos”, como identifica Jane, que chegam ao local para trabalhar, para ir a um parque ou biblioteca, a um bar ou restaurante ou a algum estabelecimento comercial, incrementando o número de olhos atentos às vias. “É uma coisa que todos já sabem: uma rua movimentada consegue garantir a proteção (dos indivíduos), uma via deserta, não”, frisa.
No entanto, reforça a ativista social, não se pode obrigar as pessoas a usarem ou vigiarem uma rua. Para que isso aconteça de maneira espontânea é preciso que haja uma quantidade “substancial de estabelecimentos e outros lugares públicos dispostos ao longo das vias de um distrito”, acredita. Jane acrescenta ainda que é fundamental que existam atividades que possam ser realizadas à noite nesses espaços. Lojas, bares e restaurantes são exemplos dados pela escritora de negócios que atuam de forma variada e complexa para aumentar a proteção das calçadas. Isso porque eles são motivos para que moradores e estranhos andem pelo bairro.
A jornalista explica também que a influência desses locais na segurança dos cidadãos não vai muito longe e, por isso, é necessário que sejam instalados muitos e distintos estabelecimentos nas comunidades para que os trechos das ruas que não possuam ambientes públicos ao longo das calçadas sejam preenchidos. A importância dos proprietários de negócios nas vias para a garantia de todos é salientada por Jane. De acordo com a escritora, eles “costumam incentivar a tranquilidade e a ordem; detestam vidraças quebradas e roubos. Se estiverem em bom número, são ótimos vigilantes e guardiões das ruas”.
Em sua análise dos municípios norte-americanos, a ativista verifica que uma das coisas que muitos planejadores urbanos têm dificuldade de compreender é que pessoas atraem outras pessoas. Conforme Jane, esses profissionais partem do princípio que os habitantes das cidades preferem contemplar o vazio, a ordem e o sossego palpáveis. “O equívoco não poderia ser maior. O prazer dos indivíduos de ver o movimento de outros é evidente em todas as localidades”, avalia. A avenida Broadway, em Nova York, entre as décadas de 1950 e 1960, é utilizada por ela para descrever essa vontade dos cidadãos. Em determinado trecho, a via é dividida por uma ilha central estreita, formada no meio do trânsito. A jornalista relata que nas esquinas das ruas transversais a essa ilha foram instalados bancos atrás de grandes proteções de concreto e que, não importava o dia ou o clima, esses assentos estavam sempre com gente olhando o que ocorre no entorno.
Vida em comunidade e densidades equilibradas são caminhos para reduzir insegurança
Os municípios são vistos por Jane Jacobs como “imensos laboratórios de tentativa e erro, fracasso e sucesso, em termos de construção e desenho urbano”, que deveriam ser conhecidos profundamente antes de serem alterados. Para que isso seja possível, planejadores e desenvolvedores devem entender onde está a sua vitalidade, como seus espaços são utilizados, como os vizinhos interagem, as crianças brincam nas ruas ou por que determinada atividade funciona em um lugar e não em outro. Ou seja, compreender as cidades e saber como vivenciá-las, afirma o arquiteto e ex-diretor do Museu de Arquitetura e Desenho de Buenos Aires, Martín Marcos, em artigo para o ArchDaily.
Marcos recorda ainda que a ativista social defende em sua obra a densidade e o convívio em comunidade como elementos relevantes para diminuir a insegurança e a violência nas localidades. O contato com os vizinhos, a criação de redes e se misturar com os estranhos que circulam pelas calçadas são outras ideias disseminadas por Jane para recuperar a vitalidade das vias, complementa o arquiteto. “A rua, diferente do que planeja Le Corbusier e o urbanismo moderno, não é um mero vazio para a mobilidade. A via é para Jacobs uma autêntica e completa instituição social onde desde pequenos aprendermos a construir uma comunidade”, pondera. Nesse sentido, uma rua que privilegie os carros em vez dos pedestres acaba morrendo e dando início ao fim do município, opina Marcos.
A confiança e a segurança nas vias nascem, ressalta Jane em seu livro, com o tempo a partir de inúmeros contatos públicos nas calçadas: são as pessoas que param nos bares, que conversam com os donos de padarias ou de lojas, que falam sobre seus filhos ou cachorros, entre tantas outras situações do dia a dia que acontecem em uma rua cheia de vitalidade. “A inexistência dessa confiança que se estabelece com os encontros casuais é um desastre para a via”, sentencia a escritora. Mas, para que esses contatos, a maioria deles triviais, ocorram é preciso que os bairros tenham infraestrutura diversificada – moradia, trabalho e lazer – para atrair esses indivíduos.
Trocar as características das cidades pelas dos subúrbios, dispersando os moradores, não irá solucionar a questão da insegurança, pontua Jane. “Reduzir o adensamento de uma localidade não garante a segurança contra o crime nem previne o temor a ele”, enfatiza. Para ela, a relação entre alta densidade e conforto material (opções de serviços, comércio, entretenimento e outras comodidades) é, em geral, reconhecida quando se trata dos centros urbanos, porém não quando se aborda áreas residenciais. Em sua concepção, como as habitações estão presentes na maioria dos distritos e seus residentes são os principais usuários de parques e dos estabelecimentos que ali se encontram, essas regiões também devem ser complementadas por outras funções, que assegurem uma boa distribuição de cidadãos nas ruas em todas as horas.
Uma infraestrutura adequada e diversa, lembra Jane, só é viável quando há uma concentração de indivíduos. “Deveríamos encarar as densidades da mesma maneira que as calorias e vitaminas. As doses são corretas por causa da eficácia delas. E o que é correto se modifica de acordo com as circunstâncias”, compara. A ativista comenta ainda em sua obra que, para promover a vida urbana, o adensamento é um trunfo.
Uma nova maneira de enxergar os municípios e entender os seus fenômenos
O envolvimento e a paixão de Jane Jacobs pelas questões urbanas começaram quando ela se mudou de Scranton (Pensilvânia), onde nasceu, para Nova York durante a Grande Depressão dos Estados Unidos – de 1929 até o final dos anos 1930. Foi na metrópole que ela encontrou sua vocação como escritora e jornalista e se envolveu em diversas iniciativas em defesa da cidade, iniciando pelo seu bairro, o Greenwich Village, como aponta reportagem do The Guardian. Quando a jornalista descobriu através de um panfleto que a 5ª Avenida de Manhattan seria expandida cortando o Washington Square Park, ela elaborou uma série de estratégias de comunicação, incluindo uma carta para o prefeito da época, e de mobilização e organização da comunidade local para reverter a demolição do parque.
No mesmo período em que terminava de escrever “Morte e Vida das Grandes Cidades”, Jane reuniu esforços para evitar que uma área de Greenwich Village fosse remodelada dentro dos conceitos do planejador urbano Robert Moses, que pregava que para modernizar as localidades era preciso erguer vias expressas e arranha-céus que as dividiam. A escritora tentou impedir que o lugar – densamente povoado e que compreendia uma das maiores coleções de arquitetura de ferro fundido do mundo – fosse descaracterizado. Tanto os projetos do Washington Square Park como o de reformulação do bairro onde Jane vivia não tiveram continuidade.
Jane, que nasceu em 4 de maio de 1916 e faleceu em Toronto (Canadá) em 2006, transformou a forma como se planejava os municípios até então, contrapondo os argumentos dos apoiadores do movimento Modernista. Além do seu trabalho como ativista social, jornalista e escritora, ela atuou na influente revista Architectural Record, onde foi editora e se aprofundou nos problemas e fenômenos das cidades, como destaca o arquiteto Martín Marcos em seu texto para o ArchDaily. Segundo ele, é necessário repensar a rua, a praça, o parque e a paisagem urbana, permitindo humanizar o espaço público e experimentar o encontro com pessoas diferentes. “Por isso, Jane Jacobs segue sendo uma referência inevitável para tornar as localidades melhores”, considera.
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