Baseado em mais de 50 anos de pesquisas sobre como o espaço construído impacta a vida dos seres humanos e a maneira como eles usam os ambientes, o arquiteto e urbanista Jan Gehl defende cidades para pessoas, onde as localidades devem ser densas, habitáveis, sociáveis, sustentáveis e promover a saúde de todos.
Boas cidades precisam de ruas, praças e parques. Mas, isso não é tudo. O arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl defende que lugares dinâmicos, seguros, saudáveis e utilizados de fato por seus residentes são planejados a partir da escala humana, da forma e velocidade com que os indivíduos se movem, de seus cinco sentidos e de suas percepções, como reforçou em entrevista para a revista Architectural Digest Germany. Em um contraponto à visão modernista de urbanismo que dominou o desenvolvimento dos municípios com mais intensidade a partir da década de 1960, Gehl acredita que as localidades devem ser projetadas colocando os cidadãos no centro das decisões e experimentadas no ritmo de um passeio a pé e não de um automóvel.
A Cidade para Pessoas, conceito que o profissional elaborou ao longo de uma trajetória de mais de 50 anos de estudos sobre como os espaços influenciam a maneira como eles são usados e o bem-estar dos seres humanos, é densa, possui calçadas com fachadas ativas, com lojas, cafés, restaurantes e mobiliário urbano convidativo. “Descobrimos que o térreo é onde ocorre a comunicação entre o interior e o exterior do edifício. Então, se esse andar é rico, o lugar é rico e não importa o que você faça mais acima (se há apartamentos ou escritórios)”, detalhou Gehl em entrevista para a American Society of Landscape Architect.
Ele comentou ainda sobre uma pesquisa realizada na Dinamarca pelo seu escritório, o Gehl Architects, fundado em 2000, que comparou um trecho de rua com fachadas mortas a outro com diversos atrativos. O levantamento apurou que houve sete vezes mais atividades na calçada viva. “Havia o mesmo fluxo de pedestres nas duas áreas, mas de repente eles pararam (na parte mais dinâmica da via), olharam, entraram e saíram dos estabelecimentos, começaram a falar em seus celulares e a estacionarem suas bicicletas”, descreveu.
As ideias do profissional sobre como devem ser desenhados os municípios para oferecerem locais vivos e acessíveis para caminhar, pedalar e socializar, como ressalta matéria do portal Somos Cidade, foram reunidas no livro “Cities for People (Cidade para Pessoas)”, lançado em 2010. A obra é o resultado das décadas de estudos de Gehl sobre o tema e da aplicação desses conceitos em projetos focados em proporcionar equidade, sustentabilidade e saúde para a população. O seu trabalho está em sintonia também com a abordagem para os lugares de pensadores como a escritora e ativista Jane Jacobs e do Novo Urbanismo.
O interesse pelo assunto surgiu pouco tempo depois dele se formar na Escola de Arquitetura da Academia Real Dinamarquesa de Belas Artes, nos anos 1960. Questionado por sua esposa, a psicóloga Ingrid Gehl, e por alguns colegas de profissão dela porque os arquitetos não se preocupavam em entender os indivíduos e construir para eles, Gehl passou a investigar a relação entre a forma dos ambientes e o jeito de viver dos cidadãos e os reflexos que isso produzia. O mergulho nesse novo campo de conhecimento levou o casal à Itália, em 1965, onde por seis meses observaram a interação entre os espaços públicos e a rotina dos residentes. Depois disso, ele não parou mais suas pesquisas e de ensiná-las no meio acadêmico.
Um dos caminhos para alcançar municípios idealizados para os seres humanos e com estruturas mais qualificadas é a concepção de bairros de “alta densidade e uso misto, que são habitáveis, sociáveis, sustentáveis e adaptáveis”, como aponta o site do Gehl Architects. Garantir a acessibilidade, a inclusão e a mobilidade, principalmente, a ativa – incentivando os moradores a andarem a pé e a usarem a bicicleta em seus deslocamentos – é outra meta das iniciativas do arquiteto, que atua como consultor de design e estudo urbano para localidades e empreendimentos. Além disso, Gehl argumenta que é fundamental enxergar a locomoção dos indivíduos de uma maneira holística, integrando diferentes modais e definindo ações que fomentem as opções de baixo carbono, reduzindo a utilização dos carros.
Nesse sentido, algumas das soluções indicadas pelo profissional em entrevista para a American Society of Landscape Architect são instalar os estacionamentos longe dos pontos onde as pessoas precisam ir, tornar as ciclovias mais eficientes e seguras e colocar escadas tradicionais no lugar das rolantes. Os benefícios dessas medidas vão desde os ambientais, com diminuição da emissão de gases de efeito estufa, até a redução dos congestionamentos e o aumento dos cuidados com a saúde.
Em Copenhagen, foram analisados os custos para a capital da Dinamarca de um cidadão pedalando por um quilômetro em relação a um motorista fazendo o mesmo percurso em seu veículo, acrescenta o arquiteto. Segundo ele, enquanto a sociedade ganhava 25 centavos de dólar toda vez que o ciclista fazia um quilômetro, ela perdia 16 centavos de dólar quando esse trajeto era efetuado de automóvel. Gehl lembra ainda que em muitos países o cotidiano foi organizado para os seres humanos não se moverem. “Na maioria do mundo ocidental, os indivíduos ficam sentados o dia inteiro, seja no trabalho, no transporte ou em casa, cansados, em frente à televisão. Dessa forma não há atividade natural incorporada ao dia a dia”, declarou à associação.
É por causa dessa dinâmica, enfatiza o profissional, que Copenhagen, Melbourne, Sydney (ambas na Austrália), Nova York (Estados Unidos) e Vancouver (Canadá) contam com políticas específicas para estimular os seus residentes a caminhar e pedalar o máximo que puderem em suas rotinas. “Apenas uma hora de exercício moderado, como ir e voltar a pé do emprego, pode agregar sete anos extras de vida. Isso resultará também em uma conta de saúde muito menor para a população”, pondera.
Síndrome de Brasília e a invasão dos carros nas localidades
A importância da escala humana no planejamento dos municípios está presente em praticamente todas as falas do arquiteto Jan Gehl, assim como suas críticas aos princípios adotados pelo movimento modernista. Durante sua participação no TEDx Talks, ele falou sobre como essa forma de criar as cidades fez com que os profissionais perdessem a capacidade de desenhar espaços para as pessoas, o que levou à concepção de lugares grandes, frios, sem vida e voltados para os carros, que tomaram conta das áreas urbanas a partir da década de 1960. Ele chama esse padrão de planejamento de “síndrome de Brasília”.
A capital do Brasil é sempre citada por Gehl como um símbolo desse período, uma região desenvolvida para ser apreciada do alto. “Brasília do ar é muito interessante. Do ponto de vista do helicóptero, do avião, tem distritos maravilhosos com prédios governamentais e habitacionais nítidos e precisos. No entanto, ninguém gastou nem três minutos para pensar em como ela seria na altura dos olhos”, frisou na entrevista para a American Society of Landscape Architect. Um dos principais questionamentos que Gehl faz à localidade e a tantas outras que seguiram essa linha de pensamento é a separação dos usos, com moradia, trabalho e lazer instalados em diferentes pontos.
“Tudo é gigantesco, os parques e monumentos, e ordenado na capital do Brasil. O que não é grande na cidade é como as pessoas são tratadas, em como elas se deslocam e caminham por Brasília”, sustentou em sua apresentação no TEDx Talks. Conforme o arquiteto, é preciso reverter os efeitos causados pelo modernismo nos municípios. Gehl salientou ainda que para se projetar uma cidade é necessário primeiro conhecer como os cidadãos vivem naquele ambiente, depois planejar o espaço e então os edifícios. “O contrário nunca funciona”, disse.
O profissional assinala que os lugares em escala humana aproximam os indivíduos, os reúnem nas calçadas, nos cafés, restaurantes e comércios ali presentes, e podem ser percorridos numa velocidade de cinco quilômetros por hora, no ritmo do homo sapiens, e não a 60 quilômetros por hora. “Localidades com dimensões menores são como uma festa em que todos se concentram na cozinha, é ali que há diversão e interação”, relata. Ele conclui a sua fala no evento sugerindo que planejadores urbanos, desenvolvedores e arquitetos pensem grande, mas façam sempre áreas menores do que eles acreditam que precisam, pois assim terão regiões onde as pessoas querem estar.
O que faz uma cidade ser boa para os seus residentes?
A ampla experiência de Jan Gehl na idealização de ambientes para os cidadãos, que já teve os seus conceitos aplicados em mais de 200 municípios pelo mundo, entre eles, Copenhagen – que foi o primeiro laboratório para testar os seus métodos –, Nova York, Melbourne, Londres, São Paulo (SP) e Palhoça (SC), foi transformada também em uma ferramenta para auxiliar localidades e desenvolvedores a pesquisarem como os espaços públicos são utilizados por seus usuários. De acordo com a descrição do site do Gehl Architects, os 12 critérios de qualidade ajudam a verificar se as variadas características de um ambiente coletivo são protetoras, confortáveis e agradáveis para quem passa um tempo nele.
Esse instrumento foi estabelecido a partir do entendimento que lugares sem proteção básica contra veículos, barulho, chuva e vento são evitados pelos habitantes, assim como aqueles que não são agradáveis para caminhar, usar cadeira de rodas, sentar e conversar. Atrás desses itens está ainda a visão de que grandes áreas públicas tendem a oferecer experiências estéticas e sensoriais positivas e proporcionar elementos em escala humana para que os visitantes não se sintam perdidos no seu entorno.
Entre as perguntas definidas no modelo estão se os moradores identificam mecanismos para dar segurança para grupos de diversas idades e capacidades para andar ou pedalar sem o risco de ser atropelado por um motorista e também se eles acham a região segura de dia e de noite. Fazem parte do questionário itens como a presença ou não de paradas de transporte coletivo, fachadas interessantes, árvores ou bancos e pontos para fazer exercícios ou jogos. Complementam a ferramenta, questões sobre a distribuição do espaço, se ele permite que os usuários conversem e se é bonito e confortável. Com esses dados na mão, planejadores e empreendedores podem avaliar as soluções mais adequadas para um projeto ou ambiente específico de uma cidade.
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