Shabbificação

Na capital do Japão, lojas, bares e restaurantes para poucos clientes e uma infinidade de pequenos comércios e serviços podem ser instalados no térreo de casas geminadas em diversas áreas, inclusive nas mais residenciais. Os microespaços desenvolvidos a partir dessa possibilidade geram renda, preservam bairros e levam vida para becos, vias e edifícios, transformando-se um exemplo de zoneamento.

Tóquio, a cidade mais populosa do mundo com seus 37,8 milhões de habitantes reunidos na localidade e em sua região metropolitana, é repleta de paradoxos. Ao mesmo tempo que é moderna, com sua paisagem entrecortada por arranha-céus e letreiros luminosos de led, mantém seu lado tradicional através de suas construções e templos históricos. Além disso, apesar do seu extenso território, a capital do Japão é marcada pela presença de um grande número de microespaços compostos por uma multiplicidade de minibares, restaurantes e lojinhas familiares que se espalham por labirintos de ruas, becos e prédios de diferentes comunidades e tornam esses destinos mais vibrantes e viáveis social e economicamente.

Em diversas zonas da cidade, até mesmo nas mais residenciais, pequenos negócios, oficinas, galerias e serviços são permitidos no térreo de casas geminadas de dois andares. Nessas edificações, as lojas ou comércios ocupam, em muitos casos, um ambiente de cerca de cinco metros quadrados, proporcionando uma experiência intimista e com características únicas, já que muitos desses lugares, devido ao seu tamanho, conseguem receber pouquíssimas pessoas, descreve o pesquisador associado ao Laboratório de Arquitetura e Estudos Urbanos Almazán da Universidade Keio, no Japão, Joe McReynolds, em entrevista para a Bloomberg. Ele reforça que os microespaços são quaisquer cantos e recantos nos setores comerciais e habitacionais do município em que podem ser abertas miniempresas sem precisar pagar um aluguel muito caro.

Essa flexibilidade das leis de zoneamento urbano que autoriza que várias áreas tenham negócios e moradias, incentivando o uso misto, gera uma quantidade impressionante de regiões com potencial para que novos microespaços nasçam. McReynolds comenta que algumas das partes mais icônicas e adoradas de Tóquio são hoje os yokocho – becos e vielas constituídos após a Segunda Guerra Mundial, a partir dos então chamados mercados negros, com minúsculos bares e restaurantes que vão surgindo e se amontoando em todos os pontos disponíveis.

Com regras específicas para os distintos formatos de microespaços, as pequenas empresas da capital do Japão recebem ainda incentivos fiscais para sua manutenção. O pesquisador ressalta, por exemplo, que as licenças de bebidas são baratas e fáceis de serem obtidas em comparação com uma liberação dessas em uma localidade dos Estados Unidos, o que possibilita a sobrevivência desses mininegócios. Segundo ele, as escolhas regulatórias e as políticas postas em práticas determinam como serão as cidades. No artigo “Undestanding Tokyo’s Land Use – The Power of Microspaces (Entendendo o Uso de Terra em Tóquio – o Poder dos Microespaços)”, McReynolds investiga o cenário em que esses estabelecimentos se consolidaram e os aprendizados que eles podem fornecer para as estratégias urbanas em municípios norte-americanos e de outros países.

Ele argumenta que os microespaços da capital japonesa são resultado da união entre as particularidades históricas, espaciais e culturais da área e as intervenções das políticas públicas. O pesquisador acredita que mudanças nas legislações de zoneamento nos Estados Unidos, deixando-as menos restritivas quanto às funções que podem ser exercidas nas comunidades, oportunizaria a criação de microespaços em muitos contextos urbanos daquela nação. Golden Gai, uma rede de ruas estreitas no bairro de Shinjuku repleta de pubs e restaurantes, é apresentada como um exemplo que pode ter as suas condições físicas – de tamanho, flexibilidade e intimidade – e efeitos replicados em outros lugares por meio de iniciativas governamentais inteligentes e direcionadas.

Comunidades com muitos microespaços tendem a evoluir mais organicamente e com menos deslocamentos, atraindo perfis de residentes e empreendedores diversos, avalia McReynolds em seu artigo, publicado em 2022. Ele cita para ilustrar a situação um proprietário de imóvel idoso que pode alugar um andar da sua casa para um jovem que deseja abrir uma cafeteria. Outro benefício desses locais na estrutura das cidades, conforme o pesquisador, é o dinamismo que eles levam para suas regiões, que acabam se transformando em um destino em si, beneficiando a todos os comércios ali presentes.

A esses fatores, McReynolds acrescenta que, por serem pequenos negócios de nicho ou experimentais, minibares, lojas e restaurantes são mais fáceis de lançar e sustentar. O baixo custo e o apoio de outros habitantes, usuários e empresários tornam essas microempresas resilientes e uma das consequências naturais disso é a preservação histórica que ocorre nesses ambientes. Em seu artigo, ele aponta também que inúmeros microespaços são comerciais, mas que muitos deles são usados como áreas públicas e outros como residências e que a alteração, de maneira simples, entre os usos com o passar do tempo é outra vantagem dessas estruturas.

Capital japonesa tem quatro principais formas de uso do solo em microescala

Grande parte da configuração atual de Tóquio e a criação de muitos de seus microespaços estão conectados a sua história. Por duas vezes, o município foi quase que totalmente destruído e precisou se reconstruir – a primeira em 1923 devido ao terremoto na região de Kanto e depois durante a Segunda Guerra Mundial. Nesse panorama, contextualiza Joe McReynolds em seu artigo, o governo concentrou seus limitados recursos no restauro da rede de transporte ferroviário e rodoviário da cidade e sua ligação com o entorno ao mesmo tempo que os moradores deram início a uma série de iniciativas de redesenvolvimento de pequena escala.

Dessa maneira, foram surgindo bairros de forma espontânea e desorganizada, com características que podem ser percebidas ainda hoje por aqueles que caminham pela localidade. As paisagens urbanas resultantes desse movimento são vibrantes e habitáveis, com inúmeros pequenos edifícios e negócios e ruas estreitas e labirínticas, compondo comunidades densas e baixas que não contam com ambientes coletivos, mas são altamente adaptáveis, explica o pesquisador, que é um dos coautores do livro “Emergent Tokyo: Designing the Spontaneous City (Tóquio Emergente: Desenhando a Cidade Espontânea)”, escrito pelo arquiteto e professor associado da Universidade Keio, Jorge Almazán.

A obra, lançada em 2022, aborda como o município foi sendo moldado ao longo dos anos pela combinação de políticas públicas com uma mistura de escolhas diárias pontuais que vão definindo padrões naturais de baixo para cima. Almazán detalha em entrevista para a Bloomberg que a capital japonesa é uma referência de urbanismo emergente, que está baseado na ideia de que sistemas e fenômenos, por meio de interações dos indivíduos que são parte deles, podem gerar ordens. Ele exemplifica fazendo um paralelo com comportamento de um bando de pássaros voando, no qual há evidentemente uma formação, porém não existe um líder conduzindo.

Nesse cenário se estabeleceram quatro tipos principais de microespaços na cidade: os becos yokocho, as residências de uso duplo, preenchimento subterrâneo e os prédios zakkyo, cada um deles com seus quadros regulatórios e origem. Entre essas maneiras de utilizar o solo em microescala, os yokocho são as mais conhecidas com seus labirintos de bares e restaurantes em vielas e becos que ficam, em muitos casos, junto a distritos comerciais ou em regiões próximas a estações de transporte. Há um interesse crescente por esses lugares em Tóquio, tanto por parte de arquitetos e urbanistas como pelos moradores e turistas, assinala McReynolds.

Já os preenchimentos subterrâneos têm sua história relacionada ao período de pré-guerra e também aos chamados mercados negros que estão na base dos yokocho. Com a construção de ferrovias elevadas, o espaço abaixo delas acabou sendo ocupado por pequenos negócios que se transformaram em uma ponte entre as escalas humana e veicular, cheias de atrativos, relata o pesquisador. Por sua vez, as residências de uso duplo são as casas geminadas, nas quais os proprietários possuem liberdade para abrir no andar térreo qualquer tipo de comércio, serviços e até mesmo uma atividade de fabricação leve.

Apesar dessa flexibilidade, os regulamentos de zoneamento da localidade não permitem que sejam gerados incômodos para os vizinhos, como barulho excessivo ou poluição do ar. As disputas que possam ocorrer nesse sentido são resolvidas pelas associações de bairro. Quando não há um consenso, o tema é levado ao Departamento de Polícia Metropolitana de Tóquio. A última categoria reúne edifícios com vários andares e repletos de sinalização luminosa em neon ou led em suas fachadas, conhecidos como zakkyo. Em geral, esses prédios são altos, estreitos, cada pavimento pode ter uma grande diversidade de micronegócios – de lojas e cafeterias a clínicas de saúde e escolas de idiomas – e ficam perto de estações de trem, em distritos comerciais, onde há um gigantesco fluxo de pessoas.

País possui 12 tipos diferentes de zoneamentos definidos para os municípios

A estratégia habitacional do Japão está focada em fomentar a idealização de bairros compactos, caminháveis, de baixo carbono e com muitas moradias, observa em artigo o fundador e diretor-executivo do Instituto Sightline, Alan During. Ele afirma que o retorno dessa política pode ser verificado pela abundância de imóveis, pelos preços acessíveis das unidades e pelas iniciativas orientadas para o trânsito (medidas de estímulo para a criação de novas centralidades próximas a eixos de transporte público) e pelo incentivo para os cidadãos andarem e pedalarem.

O sistema geral de regulamentação sobre residências na nação sempre foi simples, uniforme e mais acolhedor para propriedades de diferentes tamanhos e formatos do que as normas de outros países, de acordo com During. O Ministério da Terra, Infraestrutura, Transporte e Turismo do Japão (Mlit) estabelece 12 tipos de uso do solo – seis deles destinados para moradia, três comerciais e três industriais. Na parte habitacional, as restrições de zoneamento variam quanto à dimensão dos edifícios e dos negócios permitidos, à presença de universidades, hotéis, restaurantes e karaokês, assim como sobre o formato das ruas e o acesso ao transporte coletivo.

Já nas áreas comerciais, as diferenças estão relacionadas ao tamanho e à natureza dos empreendimentos, sendo que na categoria mais flexível desse setor é possível aliar residências, bares, restaurantes, lojas e pequenas fábricas. O impacto no meio ambiente e na qualidade de vida dos indivíduos são as métricas utilizadas para classificar as três zonas industriais no Japão. Apenas uma dessas regiões é exclusiva para o segmento produtivo. Mesmo com a política centralizada e de abrangência nacional, cabe aos governos municipais a responsabilidade por implementá-la, pela distribuição das terras entre essas 12 zonas e pela elaboração dos planos diretores.

O primeiro código de uso do solo do país é de 1919 e possuía somente três formas de zoneamento. Em 1968, houve uma atualização das regras e foram criadas oito zonas e, em 1992, essas leis foram alteradas para ganharem a sua estrutura atual, como recorda matéria feita para o portal do Somos Cidade.

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