Definidas pelos governos municipais, as regras de zoneamento e de edificação têm um grande reflexo na escassez de habitações, na elevação dos preços dos imóveis, na expansão dos territórios e, consequentemente, na qualidade de vida das pessoas. Levar para as esferas estaduais e nacionais o planejamento de políticas para a área é um dos caminhos propostos para aumentar a oferta de residências.
A falta de moradias é uma realidade enfrentada por inúmeras cidades do mundo que não conseguem atender à demanda crescente por novas unidades. Além do incremento da população do planeta, as localidades precisam se adaptar aos diferentes comportamentos quanto ao morar acelerados pela pandemia de coronavírus, como o maior número de habitantes adaptando seus ambientes para fazer home office e mais indivíduos, especialmente os millennials – nascidos entre 1981 e 1996 –, querendo viver sozinhos ou terem mais espaço em suas casas.
O resultado da combinação desses fatores é uma pressão cada vez maior para a construção de mais imóveis, que acabam muitas vezes não sendo erguidos devido às restrições impostas pelas normas de uso do solo dos municípios, como ressalta artigo do jornalista Eric Levitz na New York Magazine. Segundo ele, o processo de zoneamento é o principal obstáculo à oferta de residências. Nos Estados Unidos, exemplifica, há entre 1,5 milhão e 6 milhões de moradias a menos do que famílias prontas para se mudarem para elas. Para se ter uma ideia do cenário atual, Levitz acrescenta que, entre 2018 e 2022, o aluguel médio naquele país registrou um aumento de 18%.
Ele assinala ainda que nos Estados Unidos os governos das cidades têm permissão para elaborarem suas próprias leis de uso do solo, em muitos casos através de mecanismos que possibilitam a influência desproporcional de proprietários de habitações mais velhos e ricos, que desejam manter os valores de suas unidades elevados e não possuem interesse em melhorar a acessibilidade dos imóveis de aluguel em suas regiões. Para o economista e diretor do City Observatory, Joe Cortright, municípios e bairros norte-americanos vêm estabelecendo, ao longo dos anos, zoneamentos, códigos de construções, requisitos de estacionamento e outros regulamentos que dificultam ou impedem a edificação de mais residências para atender à demanda existente em diversas áreas da nação.
O “localismo”, forma como Cortright chama o controle das administrações das cidades no planejamento do uso do solo, é visto também pelo economista como uma das maiores causas da crise habitacional e do problema de acessibilidade à moradia dos Estados Unidos. Conforme ele, foi criado naquele país um mundo em que municípios e bairros utilizam as normas de zoneamento para diminuir o número de unidades que podem ser erguidas, excluindo dessa forma pessoas com recursos limitados de ambientes com infraestrutura eficiente e próximos a opções de emprego, serviços, comércios, lazer e ao transporte.
Apesar de ver esse “localismo” como parte do problema e não da solução para a escassez de imóveis nos Estados Unidos, Cortright não nega a importância das cidades para resolver algumas questões pontuais. Porém, ele argumenta que os governos municipais na maioria das situações não contam com os incentivos e a capacidade para desafiar os interesses de grupos de bairros (como os Nimbys – Não no Meu Jardim, em tradução do inglês) e defender o adensamento de suas comunidades, algo que seria facilitado com a intervenção dos poderes estaduais ou federais, que trariam uma perspectiva mais abrangente para as políticas públicas relacionadas à moradia.
O estudo “Housing Constraints and Spatial Misallocation (Restrições Habitacionais e Má Alocação Espacial)”, feito pelos economistas Chang-Tai Hsieh, da Universidade de Chicago, e Enrico Moretti, da Universidade da Califórnia em Berkeley, aponta que, se as localidades de Nova York, San Jose e São Francisco (ambas na Califórnia) relaxassem as leis de zoneamento que proíbem a construção de empreendimentos de alta densidade, o PIB total dos Estados Unidos cresceria 9% em 2009 – o período de análise da pesquisa, publicada em 2019, abrange de 1964 a 2009. Atualizando para o contexto de 2020, as regras de uso do solo somente desses três municípios custam para a economia daquela nação aproximadamente 2 trilhões de dólares anuais, como revela reportagem do portal do Somos Cidade.
Os efeitos do déficit de residências são muitos e vão desde o deslocamento de famílias de seus bairros em razão dos altos custos das unidades, incremento das desigualdades e espraiamento das localidades (que ocorre por causa da falta de imóveis nos centros urbanos ou dos elevados preços das alternativas disponíveis). A queda na qualidade de vida das pessoas é mais uma consequência citada por Levitz na New York Magazine. Ele explica que, com os cidadãos tendo que viver mais longe do trabalho, de escolas e de outras comodidades, esses indivíduos ficam dependentes dos carros, aumentando os deslocamentos, o tempo gasto nesses percursos e as emissões de gases de efeito estufa. Esse panorama levou também mais de meio milhão de norte-americanos à condição de sem-teto, reforça o autor do artigo.
Estados norte-americanos revisam normas de zoneamento e criam leis regionais para erguer mais casas
Permitir a edificação de prédios em áreas com altos níveis de demanda por moradias e acesso ao transporte público é uma das medidas destacadas por Eric Levitz em seu artigo na New York Magazine para auxiliar na redução da escassez de habitações nos Estados Unidos. Ele enfatiza que a reforma das regras de zoneamento é a prescrição médica para resolver a fobia que os residentes daquele país têm em relação à construção de apartamentos em suas comunidades.
Levitz salienta que nações que têm imóveis abundantes, como o Japão, adotam outras estratégias. Para o jornalista, o país asiático fez um ótimo trabalho para expandir a disponibilidade de unidades e atender à necessidade da população ao estabelecer um zoneamento nacional – ao todo há 12 tipos de uso do solo determinados pelo Ministério da Terra, Infraestrutura, Transporte e Turismo do Japão (Mlit), sendo seis deles para moradia, três comerciais e três industriais. Esse formato, na opinião de Levitz, possibilita que o interesse coletivo por habitações abundantes se sobreponha aos desejos de cada cidade.
As administrações municipais no Japão são responsáveis pela implementação da política, pela distribuição das terras entre as 12 zonas e ainda pela idealização dos seus planos diretores, que precisam ser aprovados pelo departamento de Planejamento dos Municípios (do Mlit), como descreve matéria sobre o assunto no Somos Cidade. Joe Cortright, do City Observatory, comenta que nos Estados Unidos uma comissão nacional para apresentar sugestões sobre como lidar com a crise imobiliária está sendo proposta pelo especialista em política urbana e coautor do livro “The New Localism: How Cities Can Thrive in the Age of Populism (O Novo Localismo: Como as Cidades podem Prosperar na Era do Populismo), Bruce Katz.
A iniciativa é vista por Cortright como uma boa ideia para debater formas de ampliar a oferta de residências, acesso à moradia e também como uma oportunidade para desmistificar crenças que cercam esse segmento, como a de que a edificação de mais imóveis com preços de mercado torna as unidades mais caras. Ele frisa ainda que, quando se trata da construção de mais habitações populares, uma das soluções passa por diminuir o controle local sobre o uso da terra. De acordo com o economista e diretor do City Observatory, é mais fácil para os governos municipais inovarem nesse campo quando há cobertura política e incentivo legal das esferas públicas estaduais.
Inclusive, para Cortrigth, tem sido a relutância dos poderes estaduais e federais em tomar uma atitude para conter o “localismo irrestrito” a principal razão da crise imobiliária norte-americana. Ele recorda que Califórnia, Washington e Oregon aprovaram há pouco tempo legislações que reduzem o poder das cidades de usar o zoneamento para impedir que novas residências sejam erguidas. Minneapolis (Minnesota), Hartford (Connecticut) e Houston (Texas) são outros lugares que modificaram as normas de uso do solo em seus territórios, ampliando as regiões onde podem ser edificados empreendimentos mais densos, exemplifica o planejador urbano e diretor de Pesquisa do Califórnia Yimby (movimento Sim no Meu Jardim), M. Nolan Gray, em artigo para a revista The Atlantic.
No Brasil, déficit de moradias é estimado em 5,8 milhões de imóveis
O cenário retratado nos Estados Unidos repete-se em outras nações, com os mesmos problemas de falta de oferta de habitações e regras restritivas de uso da terra. Dados do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional brasileiro, de 2022, mostram uma escassez de 5,8 milhões de residências e a necessidade de investimentos anuais de R$ 228,7 bilhões para erguer 1,2 milhão de unidades por ano até 2030.
O estudo, feito pela Fundação João Pinheiro, informa ainda que a tendência era de elevação desse índice devido, principalmente, ao aumento do aluguel urbano. Nos quatro anos analisados no levantamento, a quantidade de casas desocupadas em razão dos altos valores das locações foi de cerca de 2,8 milhões em 2016 para em torno de 3 milhões em 2019.
Além do processo de reavaliação das leis municipais de zoneamento, dos planos diretores e dos demais regulamentos para incentivar a construção de mais moradias, a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) calcula que o combate à carência de imóveis em todo o território nacional pode gerar 3,2 milhões de empregos diretos e indiretos e prevê um incremento de R$ 46,4 bilhões anuais em toda a cadeia produtiva do setor. As informações foram divulgadas na nota técnica “Déficit Habitacional no Brasil – Impacto da Cadeia Produtiva da Construção Civil”, publicada em 2022.
As consequências sociais e econômicas positivas da diminuição da falta de residências no País são pontuadas no estudo da Firjan, entre elas a redução da desigualdade, o maior bem-estar das populações mais vulneráveis e o aquecimento do segmento produtivo ligado à construção civil. Com o investimento de R$ 228,7 bilhões anuais estimados para essa área pelo Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, a entidade detalha que poderiam ser criados 3.074.049 postos de trabalho na indústria vinculada à construção civil e 201.011 nos demais segmentos da cadeia.
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