Shabbificação

Pesquisa reforça a urgência de diminuir a quantidade de veículos circulando para ter cidades mais habitáveis, qualificar a saúde da população e avançar nas metas climáticas. Introduzir uma taxa de congestionamento, criar ruas sem automóveis e limitar o trânsito em áreas centrais são algumas das ações mais eficientes para alcançar esse objetivo, segundo o levantamento.

Ao mesmo tempo em que são responsáveis por cerca de 50% a 60% das emissões mundiais de gases de efeito estufa, conforme dados do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN Habitat), de 2021, os municípios são também os lugares com o maior potencial para desencadear iniciativas de combate ao aquecimento global. E uma das principais formas das localidades contribuírem para o atual processo de transição energética e descarbonização da economia é retirando mais carros das ruas.

Essa é a conclusão do estudo “A dozen effective interventions to reduce car use in European cities: Lessons learned from a meta-analysis and transition management (Uma dúzia de intervenções eficazes para reduzir o uso de veículos nas cidades europeias: Lições aprendidas com uma meta-análise e gerenciamento de transição)”, divulgado em 2022. A pesquisa revisou mais de 800 relatórios produzidos, desde 2010, sobre o assunto na Europa, e fez uma avaliação mais aprofundada de 24 documentos que quantificaram o retorno de medidas para diminuir a utilização dos automóveis nos municípios. A partir desse material, foram identificadas 12 ações efetivas para incentivar que mais indivíduos adotem outras maneiras de deslocamento, como caminhar, pedalar ou usar o transporte público.

Desenvolvido pela professora associada de Ciência da Sustentabilidade na Universidade de Lund (Suécia), Kimberly Nicholas, e pela diretora de Política da Unidade de Proteção Climática do Ministério de Transportes de Baden-Württemberg (Alemanha), Paula Kuss, o levantamento verificou que as taxas de congestionamento – valor pago para andar de carro nos centros das localidades –, controle de estacionamento e tráfego e criação de zonas de trânsito limitado foram as iniciativas que apresentaram os melhores resultados. O estudo descobriu ainda que a maioria das intervenções, mais de 75% delas, foi conduzida pelas prefeituras.

As lideranças das cidades contam com um leque mais amplo de mecanismos políticos para concretizarem mudanças que levem à redução da utilização dos veículos, como os econômicos, com instrumentos de cobranças e subsídios, e os comportamentais, como a comparação das decisões sobre como as pessoas fazem suas viagens, assinala Kimberly em artigo para a revista Fast Company. A professora da Universidade de Lund ressalta que os municípios mais bem-sucedidos na remoção de automóveis das vias públicas geralmente combinam diferentes medidas, como, por exemplo, oferecer benefícios para quem escolhe meios de locomoção mais sustentáveis e aplicar taxas que cobram ou restringem a circulação e o estacionamento dos carros.

A pesquisa de Kimberly e Paula enfatiza outros efeitos negativos da presença dos veículos nas localidades, que são a segunda maior fonte de emissões de gases de efeito estufa na Europa, sendo que em torno de 75% delas vêm do transporte rodoviário. Além dos congestionamentos e reflexos na saúde dos moradores, a poluição ambiental e sonora gerada pelos automóveis pode fazer mal para o coração – como destaca matéria do portal do Somos Cidade –, os carros ocupam um valioso espaço urbano que poderia ser aproveitado de formas mais vantajosas para as cidades, como calçadas mais largas, praças e áreas verdes. Em média, salienta Kimberly em seu artigo, os veículos ficam 96% do tempo estacionados, fazendo um uso ineficiente da terra e dos recursos.

Priorizar os automóveis no planejamento dos municípios favorece também o espraiamento dos territórios, aumentando os deslocamentos e, dessa maneira, as emissões de gás carbônico (CO2). A professora de Ciência da Sustentabilidade acrescenta que os subúrbios ficam, grande parte deles, afastados das regiões centrais e possuem casas maiores que nos demais bairros, consumindo mais energia e deixando uma pegada de carbono mais elevada. Levantamento efetuado em Toronto (Canadá) identificou que os imóveis suburbanos da América do Norte têm um índice de emissão de CO2 duas vezes mais alto que os de outras comunidades residenciais.

Outra observação feita por Kimberly sobre os impactos dos carros nas localidades refere-se ao planejamento do tráfego que, para as autoras do estudo, ignora, muitas vezes, o fato de que a construção de mais estradas e faixas de rolamento incrementa o fluxo de veículos, fenômeno conhecido como trânsito induzido, exagerando os benefícios dessa ação e subestimando os custos de edificação e os seus efeitos. Ela frisa que a pesquisa demonstra claramente que para melhorar a saúde da população, cumprir os acordos climáticos e promover cidades mais sustentáveis e dinâmicas é urgente diminuir a utilização dos automóveis.

Para que isso seja viável, a professora acredita que as prefeituras precisam se reinventar, colocando em prática iniciativas de transição para a mobilidade sustentável, projetando meios para evitar a circulação de carros, como a criação da Cidade de 15 minutos em Paris – que prevê a implementação de novas centralidades na capital francesa – e fomentar o transporte coletivo e ativo: caminhar e pedalar. Ela cita ainda o levantamento “Providing decent living with minimum energy: A global scenario (Proporcionando uma vida decente com o mínimo de energia: um cenário global)”, de 2020, que afirma ser possível oferecer aos cerca de 8 bilhões de habitantes do planeta condições adequadas para viver usando 60% a menos de energia do que a empregada hoje em dia. No entanto, para se chegar a esse panorama, será preciso que os países ricos ergam três vezes mais infraestrutura de transporte público do que contam atualmente e que cada pessoa limite suas viagens anuais entre 5 mil quilômetros (em municípios densos) e 15 mil quilômetros em lugares mais remotos.

Conheça as 12 intervenções mais eficientes para o menor uso de veículos

1.Taxas de congestionamento

A solução mais eficaz apontada no estudo de Kimberly Nicholas e Paula Kuss foi a de motoristas pagarem para acessar o centro das localidades em certos horários e dias da semana. Os recursos arrecadados com a medida são destinados para opções sustentáveis de transportes. Londres é a pioneira na aplicação dessa estratégia, alcançando uma redução de 33% do tráfego nessa área da capital inglesa desde a sua introdução, em 2003. O valor diário, no momento, é de 15 libras e 80% das receitas obtidas vão para melhorias no transporte público. Milão (Itália), Estocolmo e Gotemburgo (ambas na Suécia) também utilizam esse sistema. Nos casos analisados, foi encontrada uma variação de 12% a 33% de queda no uso dos automóveis.

2. Controles de estacionamento e trânsito

Já as normas para a retirada de vagas de estacionamento na rua e alteração de rotas foram bem-sucedidas em muitas cidades europeias, com esses espaços sendo transformados em ruas, ciclovias e calçadas sem carros. O retorno mais significativo dessa ação foi encontrado em Oslo, que registrou uma redução de 19% na utilização de veículos no centro da capital norueguesa. Esse parâmetro teve uma oscilação entre 11% e 19% nos municípios avaliados.

3. Zonas de tráfego limitado

A iniciativa proíbe a circulação de automóveis nas regiões centrais, exceto para moradores locais ou para quem paga uma taxa anual. Os valores coletados com essa cobrança e com multas são encaminhados para a qualificação do transporte coletivo. Roma (Itália) foi o lugar com o melhor desempenho com essa intervenção: diminuição de 20% no uso de carros durante o horário com restrições e de 10% no período sem proibições.

4. Serviços de mobilidade para passageiros

São medidas que aliam esforços públicos e privados para estimular os trabalhadores a utilizarem o transporte coletivo. Um dos exemplos revelados pela pesquisa foi o de Utrecht (Holanda), onde o governo local e companhias fornecem passes gratuitos para os funcionários escolherem os meios públicos para seus trajetos, combinando-os com ônibus particulares que fazem a conexão entre as estações e os pontos onde ficam os escritórios, comércios e outros empregos. Com a divulgação da ação, houve uma queda de 37% na parcela de passageiros que foram para o centro da cidade com seus veículos.

5. Tarifas de estacionamento no trabalho

Outra maneira efetiva para incentivar as pessoas a deixarem seus automóveis em casa é criar estacionamentos pagos nos empregos e associar a estratégia a um mecanismo em que os funcionários podem “sacar” os valores relativos a essas vagas para carros para serem usados no transporte coletivo. Em Rotterdam (Holanda), um grande centro médico pôs em prática esse sistema e apurou uma redução de 20% a 25% nas viagens particulares de seus trabalhadores. Assim como nas ações anteriores, os recursos arrecadados são para financiar os meios públicos de locomoção.

6. Planejamento de viagens no local de trabalho

Oferecer programas que ajudam os funcionários a definirem seus trajetos, dicas para parar de utilizar o veículo próprio nos deslocamentos, descontos para o transporte coletivo e qualificação da infraestrutura para bicicletas têm sido iniciativas empregadas em municípios da Europa para reduzir os automóveis nas vias. Complementando essa intervenção, os espaços de estacionamento são diminuídos. Um levantamento realizado no Reino Unido, em 2010, investigou 20 cidades e verificou que, em média, 18% dos passageiros passaram para outro tipo de transporte após diversas medidas serem combinadas.

7. Planejamento de viagens universitárias

O mesmo princípio adotado em pontos de trabalho foi levado para o meio acadêmico. A estratégia associou ainda o estímulo ao uso do transporte público, das bicicletas e às caminhadas com a menor oferta de vagas para carros nos campi. Um dos melhores resultados com esse sistema foi o da Universidade de Bristol (Reino Unido), que atingiu uma queda de 27% no uso de veículos entre seus funcionários disponibilizando descontos em ônibus e trens e melhorando a estrutura de ciclovias.

8. Serviços de mobilidade para universidades

Projetos desenvolvidos com o foco nos estudantes, com passes gratuitos para o transporte coletivo e possibilidades de conexões de ônibus para chegar nas instituições de ensino. Catânia (Itália) é uma das referências indicadas no levantamento de Kimberly e Paula. O município identificou uma redução de 24% no número de universitários que optaram por ir às aulas em seus automóveis.

9. Compartilhamento de automóveis

A oportunidade de integrantes desses programas alugarem facilmente um carro próximo por algumas horas demonstrou retornos promissores em Bremen (Alemanha) e Gênova (Itália). Cada veículo compartilhado substituiu entre 12 e 15 automóveis privados, em média. Para funcionar, essa ação previu a elevação do número de unidades ofertadas e de estações e a sua integração a áreas residenciais, ao transporte público e à infraestrutura para bicicletas. Uma ressalva feita por Kimberly e Paula é que outras pesquisas revisadas alertavam para o risco dessa iniciativa induzir pessoas que antes não viam os carros como uma alternativa para seus percursos passarem a utilizá-los. Elas recomendam mais levantamentos sobre como elaborar essas intervenções para que sejam eficientes na diminuição dos veículos nas ruas.

10. Planejamento de viagens escolares

Programas de aconselhamento, planejamento e eventos para incentivar alunos e familiares a caminhar mais, pedalar ou pegar carona com colegas para ir à escola. Medidas nesse sentido, para terem resultado, demandam a qualificação das ciclovias e dos espaços de armazenamento das bicicletas. Em Norwich (Inglaterra), essa abordagem representou uma queda de 10,9% na utilização dos automóveis nos trajetos até as instituições.

11. Planos de viagem personalizados

As mesmas estratégias das companhias, universidades e escolas podem ser ampliadas para o planejamento dos deslocamentos individuais dos habitantes. Marselha (França), Munique (Alemanha), Maastricht (Holanda) e San Sebastián (Espanha) são exemplos de regiões que idealizaram projetos nesse sentido, instigando os moradores a andarem a pé, pedalarem e a usarem o transporte público – algumas dessas localidades ofereciam descontos nas passagens. Os retornos oscilaram entre 6% e 12% de redução na utilização dos carros.

12. Aplicativos para mobilidade sustentável

As autoras do estudo mapearam entre as ações para retirar mais veículos das vias o recurso de gameficação para fazer com que mais pessoas caminhem, pedalem ou façam seus roteiros de transporte coletivo. Aplicativos com recompensas para quem atinge metas foram testados em Bolonha (Itália), que concebeu um app para seus residentes e equipes de funcionários de empresas participantes rastrearem sua mobilidade, ganhando pontos para isso. Kimberly e Paula reforçam a importância de desenhar bem essa e as demais iniciativas para que elas não só diminuam os automóveis nos ambientes urbanos, mas também promovam o transporte sustentável e a queda das emissões de gases de efeito estufa.

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