Shabbificação

Processo através do qual o aumento da oferta de residências de alto padrão beneficia as classes média e baixa por meio da liberação de imóveis mais antigos, a filtragem pode auxiliar os municípios a disponibilizarem mais unidades.

As cidades são lugares dinâmicos que vão se transformando e adaptando às demandas que surgem com o passar do tempo. O mesmo ocorre com as habitações, com as pessoas buscando opções que se ajustem aos diferentes ciclos de suas vidas e condições financeiras. Mas, para que essa migração de casas seja possível, é preciso que haja um estoque de moradias que permita aos indivíduos acessarem essas residências, especialmente a população de baixa renda. No entanto, a realidade da maioria das localidades no mundo dificulta essa movimentação devido ao déficit de imóveis e aos preços elevados dos já existentes.

A estimativa no Brasil, por exemplo, é que faltam 5,8 milhões de unidades para atender à necessidade atual de habitação. Já nos Estados Unidos, os cálculos apontam que há entre 1,5 milhão e 6 milhões de moradias a menos do que famílias para ocupá-las. Nesse cenário, os debates e as pesquisas sobre filtragem voltam a ganhar destaque como uma das estratégias para reduzir a escassez de residências. Esse processo acontece quando as propriedades envelhecem e, com isso, a sua qualidade e valores caem, ficando mais em conta para aqueles com rendimentos menores. Em paralelo a essa ação, há também a mudança dos antigos donos ou locatários desses imóveis para empreendimentos mais modernos, abrindo espaço para cidadãos de distintas faixas econômicas.

Esse efeito cascata abrange todo o mercado imobiliário, isso porque a edificação de novos complexos de alto padrão libera unidades para a classe média, que por sua vez deixa as suas casas para pessoas de baixa renda. Por muitas décadas, a filtragem foi o principal caminho para a acessibilidade habitacional, afirma o economista e professor da Universidade Rutgers, em Nova Jersey (EUA), Jason M. Barr, em artigo para o seu blog, o Skynomics. Ele faz um resgate histórico em seu texto de como Manhattan (Nova York, EUA) utiliza esse recurso ao longo dos séculos, desde a chegada dos imigrantes no início de 1900 até os mais recentes estudos que avaliam os impactos da filtragem.

Para Barr, que é autor do livro “Building the Skyline: The Birth and Growth of Manhattan’s Skyscrapers (Construindo o horizonte: O Nascimento e Crescimento dos Arranha-Céus de Manhattan)”, lançado em 2016, as administrações municipais precisam fazer um trabalho melhor para mostrar que a falta de moradias acessíveis prejudica a todos e não só quem enfrenta uma situação financeira difícil. Ele comenta ainda que as políticas de residências inclusivas obrigatórias e os incentivos fiscais para mais propriedades de baixa renda não funcionam, pois elas exigem altos investimentos para auxiliar apenas uma parcela da sociedade. Por isso, outras medidas precisam ser analisadas e retomadas, como a filtragem.

Nos últimos anos, acrescenta o professor, uma série de economistas tem empregado métodos estatísticos avançados para demonstrar que esse mecanismo continua sendo usado e traz resultados eficientes para fornecer imóveis acessíveis. Um dos levantamentos que evidenciam esse retorno citado por Barr foi realizado por Stuart Rosenthal, em 2014, “Are Private Markets and Filtering a Viable Source of Low-Income Housing? Estimates from a ‘Repeat Income’ Model (Os Mercados Privados e a Filtragem são uma Fonte Viável de Habitação de Baixa Renda? Estimativas de um Modelo de ‘Receita Repetida’)”.

A pesquisa reuniu dados de mais de 72 mil casas dos Estados Unidos, entre 1985 e 2011, verificando a renda (ajustada à inflação) de indivíduos que adquiriram ou alugaram moradias durante esse período. Dessa maneira, Rosenthal apurou que naquele país a alteração média na renda familiar foi de -11,8% para unidades de locação e de -7,5% para as ocupadas pelos seus donos. Isso significa que a cada rodada de mudança, os residentes seguintes dos imóveis estudados contavam com rendimentos menores que os anteriores. E uma das principais razões identificadas para isso foi o fato das habitações estarem ficando mais velhas e desgastadas.

O economista descobriu também que a filtragem é mais rápida nos primeiros 50 anos de uma moradia. Após esse tempo, pode ocorrer o inverso, com a valorização das residências devido ao seu interesse histórico e/ou arquitetônico. Outra informação revelada por Rosenthal é que as taxas anuais de filtragem são mais ágeis nas unidades alugadas do que naquelas onde os proprietários vivem. A partir dos dados coletados ao longo do tempo, ele concluiu que nos Estados Unidos, em média, a renda real de alguém recém-chegado a um imóvel de locação de meio século de idade corresponderia a 30% da renda dos novos habitantes de uma casa erguida recentemente.

Restrições de zoneamento e localização geográfica têm reflexos nos resultados de filtragem

Em artigo divulgado em 2022, os economistas Liyi Liu, Doug McManus e Elias Yannopoulos, da Freddie Mac (Federal Home Loan Mortgage Corporate) – uma das maiores companhias de garantias e seguros imobiliários dos Estados Unidos), pesquisaram em torno de 1,23 milhão de “rotações” domésticas em uma amostragem de 1,1 milhão de moradias norte-americanas ocupadas por seus donos. O trio constatou, entre outros pontos, que as taxas de filtragem variam muito entre os bairros, sendo maior dentro das cidades do que entre elas.

Um dos motivos que explica essas diferenças, conforme salienta Jason M. Barr no Skynomics, é a capacidade do estoque de residências de um município acompanhar a demanda – conhecida como elasticidade da oferta. Regiões com restrições de zoneamento e regulamentos de construção mais rígidos possuem unidades com preços mais elevados e menos filtragem, detalha o professor de Economia. Ele observa que em Nova York, São Francisco (Califórnia) e Seattle (Washington), que têm poucos novos complexos sendo erguidos, o processo de filtragem é menor e acontece, em grande parte das situações, um incremento nos valores das propriedades por causa da pouca disponibilidade.

Em Helsinque, o estudo “City-wide effects of new housing suply: Evidence from moving chains (Efeitos em toda a cidade da nova oferta de habitações: evidências de cadeias móveis)” analisou 106 novos prédios multifamiliares edificados entre 2010 e 2019 em um raio de até três quilômetros da Estação Central da capital finlandesa. Juntos eles somavam 3.196 imóveis. Essas moradias foram ocupadas por pessoas de renda mais alta, averiguou o levantamento. Contudo, os economistas idealizadores da pesquisa acreditam que as correntes móveis (as trocas de casas) iniciadas com a construção dessas residências repercutiram nas comunidades de média e baixa renda, através da filtragem.

Foi verificado ainda que na terceira rodada de mudanças de indivíduos dessas unidades, 60% dos migrantes eram de bairros da metade inferior da distribuição de renda da região onde os prédios estavam instalados, assinala Barr em seu artigo. Já na quarta fase de troca de inquilinos ou de proprietários, os recém-chegados faziam parte da metade inferior da distribuição de renda familiar do país como um todo.

Nos Estados Unidos, outro levantamento também se aprofundou na avaliação das cadeias móveis: “The effect of new market-rate housing construction on the low-income housing market (O efeito da construção de novas habitações a preço de mercado no setor imobiliário de baixa renda)”, de Evan Mast, publicado em 2019. Ele investigou a migração de pessoas em aproximadamente 700 empreendimentos multifamiliares com preços de mercado erguidos entre 2009 e 2017 na área central de 12 grandes localidades daquela nação.

Seguindo a movimentação dos indivíduos, Mast identificou que um edifício novo com valores de mercado para 100 moradores acaba levando de 45 a 70 cidadãos a se mudarem de comunidades com renda abaixo da média, com a maior parte desse fenômeno acontecendo em três anos. Barr enfatiza que esse retorno sugere que a mobilidade para residências mais recentes afetará um amplo leque de bairros e estabelecerá uma folga no segmento imobiliário de baixo custo.

Estratégias para cidades e estados disponibilizarem mais imóveis acessíveis

Com base em sua pesquisa histórica sobre habitação e arranha-céus de Nova York e nos estudos efetuados por economistas de distintos países, Jason M. Barr lista em seu artigo algumas iniciativas que os governos municipais e estaduais podem adotar para estimular a construção de mais propriedades, incluindo as voltadas para famílias de baixa renda. Além disso, essas ações contribuem para estabelecer um mercado imobiliário que consiga se adaptar de forma mais ágil e flexível às necessidades da população.

A primeira medida indicada pelo professor de Economia é permitir a edificação de unidades habitacionais acessórias e a subdivisão de casas maiores em lugares para duas ou três famílias. Isso possibilitaria tanto uma renda extra para o dono da moradia como uma oportunidade para pessoas que precisam de uma residência pequena e barata. A revisão das leis de zoneamento é mais uma intervenção frisada por Barr, principalmente para autorizar que prédios médios de apartamentos sejam erguidos próximas às estações centrais de transporte e ao longo de seus percursos.

Liberar o uso misto para complexos de escritórios é mais uma recomendação do professor, aliando a esses ambientes comércio, serviços, escolas e habitações, assim como fomentar a construção de imóveis para aluguel em vez de unidades para serem utilizadas pelos seus proprietários. Isso poderia ser realizado, segundo Barr, por meio de subsídios para os desenvolvedores focados em projetos para a classe média. Ele sugere também uma modificação para um programa de imposto em que os tributos sobre as taxas de valor da terra sejam maiores que as do valor da edificação. O economista descreve que esse sistema irá incentivar os donos de terrenos a densificarem seus lotes, fornecendo mais moradias.

Porém, para que as estratégias para ofertar mais residências obtenham sucesso, Barr ressalta que é preciso que as administrações públicas definam políticas que elevem a confiança e diminuam o medo que muitas pessoas têm em relação às mudanças que podem ocorrem com a construção de mais empreendimentos em seus bairros. O professor pondera que as localidades devem se adiantar na disponibilização de serviços e comodidades nas regiões para demonstrar que a qualidade de vida pode melhorar mesmo com o adensamento das comunidades.

Ele diz ainda que deveria ser permitido aos proprietários comprarem um seguro do valor da terra, protegendo-os de possíveis, mas raras de acontecer, quedas no preço de seus lotes. Essa iniciativa reduziria a insegurança em relação às alterações que possam ocorrer em seus bairros e que leva muitos a se oporem a que mais habitações sejam erguidas. Intervenções como essa podem deixar os donos de terras mais favoráveis a rezoneamentos e densificação de suas comunidades, viabilizando que a filtragem funcione.

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