Shabbificação

A organização e movimentação de pessoas contrárias à construção de empreendimentos imobiliários ou de transporte, como estações de metrô, em comunidades com infraestrutura qualificada empurra a população com menos recursos para as bordas dos municípios, piorando a mobilidade e elevando os custos de vida.

Viver perto do trabalho, de opções de lazer, praças, serviços de saúde e de educação e de outras comodidades que bairros bem estruturados oferecem é o desejo da maioria dos cidadãos. No entanto, essa vontade esbarra na dificuldade de encontrar habitações disponíveis ou com preços acessíveis nessas áreas, que em geral ficam nas regiões centrais das localidades. Além das restrições de zoneamento existentes e dos diversos regulamentos que tornam mais complexa a edificação de novas unidades residenciais, muitos projetos enfrentam a oposição de grupos de Nimby – sigla em inglês que significa “Não no Meu Jardim”.

“Um dos principais reflexos das ações dos Nimbys é que a produção de moradias nos lugares mais desejáveis das cidades é combatida por eles. Essas pessoas querem a melhor parte dos municípios para elas e, com a sua articulação, acabam afastando a população que tem menos poder de renda e de mobilização política para as margens, para a periferia das localidades”, aponta o coordenador do Somos Cidade, empresário e fundador e presidente de honra da Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil (Adit), Felipe Cavalcante. O resultado desse cenário, reforça Cavalcante, é a queda na qualidade de vida dos indivíduos que estão em comunidades mais afastadas dos centros urbanos e o aumento do tempo de deslocamento, dos congestionamentos e dos custos de infraestrutura das prefeituras, que precisam ampliar rotas de ônibus e estações e pontos de iluminação e de tratamento de água e esgoto.

O poder de mobilização dos Nimbys também é ressaltado pelo advogado e criador do São Paulo Yimby (“Sim no Meu Jardim”), Guilherme Pereira. Para ele, quem se opõe a algo, geralmente, consegue cativar e reunir pessoas de forma mais fácil do que aqueles que são favoráveis à mesma iniciativa em debate. “A partir disso, eles (Nimbys) conseguem uma influência maior na imprensa, com políticos e com a sociedade civil, o que, a meu ver, afeta o desenvolvimento urbano e outras medidas públicas”, argumenta. Pereira questiona, por exemplo, se a maneira como o assunto zoneamento é abordado atualmente considera a melhor perspectiva para os municípios, para a população e para quem é mais vulnerável ou se leva em conta as considerações desses grupos de pressão.

Resistência à mudança. Essa é uma das características dos Nimbys destacada tanto por Cavalcante quanto Pereira. Mesmo tendo demandas distintas, que surgem a partir da realidade de cada bairro e dos empreendimentos em andamento, os integrantes desses movimentos buscam conservar suas comunidades inalteradas. “Esses grupos são sempre contrários à construção de prédios, mesmo que eles já morem em edifícios vizinhos, na mesma rua ou área. E se posicionam, especialmente, contra a habitação popular”, acrescenta o coordenador do Somos Cidade. Segundo ele, os Nimbys querem “manter o status quo, as localidades congeladas como elas sempre foram”.

As ações combatidas por esses movimentos, salienta o fundador do São Paulo Yimby, são tanto do poder público como do mercado, como um projeto que os vizinhos acham que pode impactar suas rotinas. Entre os efeitos citados por grupos de Nimby estão o incômodo das obras, a sombra proporcionada pelos prédios e o receio de perda das particularidades do bairro ou do crescimento da criminalidade devido ao incremento na circulação de indivíduos na região. “Em um lugar como São Paulo, não é um edifício novo que vai influenciar no aumento da violência”, pondera Pereira.

O episódio do metrô em Higienópolis, na capital paulista, é recordado pelo advogado como exemplo do temor que muitos participantes dos Nimbys têm em relação ao novo, ao diverso. Diante da proposta do governo estadual de erguer uma estação da Linha 6- Laranja nessa comunidade, houve uma articulação forte dos residentes contra a iniciativa a ser construída na avenida Angélica. “Foi o caso da ‘gente diferenciada’ que virou notícia”, lembra. Em 2010, moradores e associações de bairro dessa área nobre do município fizeram oposição a essa obra, afirmando que a estação, chamada de Angélica-Pacaembu na época, era um potencial problema em vez de uma solução de mobilidade, relata matéria da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (Metrô CTPM).

A questão gerou discussões acaloradas na internet e reportagens na imprensa com várias declarações de habitantes do Higienópolis, entre elas uma feita para Folha de São Paulo que teve grande repercussão. “Você já viu o tipo de gente que fica ao redor das estações de metrô? Drogados, mendigos, uma gente diferenciada”, disse ao jornal uma psicóloga e residente dessa região, que depois negou ter falado aquelas palavras. A situação desencadeou manifestações também de cidadãos a favor da realização do empreendimento, mas sem retorno. Pouco tempo depois desses acontecimentos, o Metrô de São Paulo anunciou que iria reavaliar a localização da estação por motivos técnicos e não por pressão, conforme matéria da revista Exame. Somente em 2021, os trabalhos na Linha 6-Laranja chegaram ao Higienópolis, porém em outro ponto e agora com o nome Faap-Pacaembu.

Um jogo judicializado

A primeira referência ao uso do termo Nimby é da década de 1970, quando pessoas de média e baixa renda lutaram contra a construção de armazéns para produtos químicos e contaminantes perigosos, como indica reportagem feita para o portal do Somos Cidade. A partir dos anos 1980, a palavra começou a ganhar um novo significado e passou a ser utilizada por moradores que eram críticos a novos desenvolvimentos em suas comunidades. O novo perfil de integrantes desses movimentos é formado, em geral, por indivíduos mais velhos, brancos e mais ricos, de acordo com o coordenador do Somos Cidade, Felipe Cavalcante.

Ele comenta que o diálogo com esses grupos tem se mostrado pouco efetivo. “Essa questão possui um problema adicional: como eles (Nimbys) estão ali só pensando nos seus interesses e não nos dos municípios, raramente essas pessoas mudam de opinião e ainda conseguem influenciar mais gente através da mídia, do Ministério Público, das prefeituras, vereadores e da justiça. São poucos que fazem um grande barulho”, analisa. Para o criador do São Paulo Yimby, Guilherme Pereira, falta um conhecimento maior da sociedade civil sobre urbanismo e como as decisões de planejamento afetam as localidades, assim como uma participação maior dos políticos nos debates.

“Já por parte da iniciativa privada, vejo que continua existindo resistência por parte de alguns empreendedores em repensar a forma de trabalhar, a qualidade dos projetos que deixam para as cidades, a importância de ter soluções que sejam benéficas para os bairros”, enfatiza. Entre as medidas que poderiam ser introduzidas nos complexos imobiliários, o advogado lista recuos menores das calçadas, fachadas ativas, paisagismo e uso misto. Pereira complementa que expandir as discussões sobre os lados positivos e negativos das regras de edificação é um caminho para se ter uma conversa mais aberta e com maior envolvimento da população sobre as consequências das restrições de zoneamento, dos limites de altura dos prédios, dos planos diretores e de outras normas no futuro dos municípios.

Mais um ponto frisado por ele é que as maiores vitórias e derrotas dos Nimbys ocorrem por meio do poder judiciário, com o envolvimento do Ministério Público. “É um jogo bem judicializado e cada decisão pode ir em um sentido diferente”, observa. O metrô em Higienópolis seguiu essa linha, assim como o caso do Ocupe Estelita, em Recife (PE), entre tantos outros. O empreendimento imobiliário Novo Recife, na área do Cais José Estelita, no Centro da capital pernambucana, é alvo de polêmicas desde a sua divulgação, em 2012.

O terreno de 10,1 hectares arrematado em leilão realizado em 2008 pelo único participante a apresentar proposta, o Consórcio Novo Recife, formado na época pelas empresas Moura Dubeux, Queiroz Galvão (que entrou em recuperação judicial e saiu do projeto) e GL, pertencia à Rede Ferroviária Federal S.A (RFFSA), aponta reportagem do g1. O complexo, que teve uma série de paralisações por causa de ações na justiça e de manifestações da sociedade civil e de artistas, terá ao todo 13 torres residenciais e comerciais de até 38 andares. Contrário à iniciativa, o movimento Ocupe Estelita promoveu diversas ocupações e atividades culturais no espaço em distintas ocasiões.

Desde 2012 até a retomada das obras, em 2019, quando foram demolidos dois armazéns da estrutura, muitas foram as idas e vindas do empreendimento pelos órgãos públicos de Pernambuco e da justiça, incluindo uma operação da Polícia Federal em 2015. Chamada de Lance Final, a ação tinha o objetivo de apurar se houve fraude no certame que possibilitou a compra da área do Cais Estelita, que foi anulada. A decisão foi revertida em 2017 pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5).

Já em 2019, sete anos após o anúncio do projeto, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) finalizou o levantamento do lugar, dentro do processo de licenciamento ambiental, encerrando o embargo que havia à obra desde 2014. Ao longo das batalhas travadas entre companhias, órgãos públicos e grupos da sociedade civil, foram feitas várias exigências ao consórcio para mitigar possíveis danos da construção, como a criação de uma biblioteca, um parque linear ao longo do cais atual, com equipamentos de esporte e lazer, ciclovia e a edificação de 200 habitações populares, detalha artigo do Jornal do Commercio. De acordo com o veículo, essas compensações – que tinham um custo estimado em R$ 76,6 milhões, em 2017 – devem chegar a cerca de R$ 90 milhões quando forem concluídas (segundo dados de 2021).

Com outra visão sobre as cidades, movimento Yimby cresce no Brasil

Os grupos de Nimby sempre foram bem representados nos debates sobre planejamento urbano no País, sustenta o fundador do São Paulo Yimby, Guilherme Pereira. O advogado explica que nos últimos 30 anos, quando o desenho e as decisões sobre as localidades ganharam mais relevância, os integrantes dessa vertente tiveram influência na política, na academia e na população. “Eles possuíam outros nomes, como associações de moradores, mas já tinham os seus interesses defendidos”, conta. Com um olhar distinto para o desenvolvimento dos municípios e favoráveis à construção de mais imóveis, outro movimento vem se expandido no Brasil nos últimos anos: o Yimby.

“Está apenas começando por aqui, mas sem sombra de dúvida vai crescer muito. Isso porque é algo que faz sentido, são grupos que lutam contra a exclusão, a injustiça urbana, o egoísmo urbano”, descreve o coordenador do Somos Cidade, Felipe Cavalcante. Os Yimbys, conforme ele, são compostos, em sua maioria, por indivíduos mais jovens que não veem muito sentido no estado das coisas. Pereira avalia que há muita gente interessada nessa discussão, que já questionava o que acontecia nas localidades, mas não tinha uma organização que os representasse e, agora, conseguem se reunir através desse movimento.

O São Paulo Yimby foi lançado em 2020, inspirado pelo que estava acontecendo nos Estados Unidos e por identificar que no Brasil, apesar das causas e origens serem diferentes, as dificuldades enfrentadas eram as mesmas: falta de residências, inacessibilidade habitacional e encarecimento do custo de vida. “Naquele momento, havia debates sobre a revisão do Plano Diretor de São Paulo, pandemia, eleições e episódios de moradores se opondo a novas edificações”, contextualiza Pereira.

Ele assinala que atua em diferentes frentes, sendo uma delas a de conscientização urbanística, tratando desse assunto de uma forma que atinja tanto leigos interessados na questão como profissionais do setor e outra a de acompanhamento de casos específicos que ocorrem na capital paulista. “Vejo que muitas vezes só um lado é mostrado na imprensa, tento trazer um outro ponto de vista, ampliando as discussões”, reforça Pereira, que aborda ainda em seus textos temas ligados à habitação, transporte coletivo e patrimônio histórico.

Entre as mais recentes manifestações de grupos de Nimby em São Paulo, o advogado ressalta a oposição ao projeto do Parque das Flores na região da Avenida Paulista e à proposta de edificação de uma sede para uma organização não-governamental focada em crianças de espectro autistas em uma praça no bairro Santo Amaro. Com a previsão de erguer um túnel de 100 metros e um espaço verde de em torno de 10 mil metros quadrados, o Parque das Flores ligaria a Avenida Paulista ao complexo imobiliário de uso misto Cidade Matarazzo. Alvo de processos na justiça, a obra foi paralisada em 2021, o que levou a modificações no empreendimento por parte dos idealizadores.

“O projeto foi revisado e o proponente retirou uma parte, que para mim seria a melhor da iniciativa: um túnel para os carros e em cima dele seria uma área livre para as pessoas. Atualmente, o escopo do complexo foi diminuído e será uma reforma de calçada”, adianta Pereira. O impasse surgiu a partir de reclamações de residentes do entorno dessa parte do município, que eram contrários à implementação do túnel, pois com a obra seria necessário redirecionar o trânsito de uma parcela da rua São Carlos do Pinhal. Duas associações de moradores da região entraram com uma ação na justiça e conseguiram paralisar o início dos trabalhos do túnel em 2019, de acordo com matéria da revista Casa Vogue.

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