Cidades estão redesenhando as vias públicas para garantir mais espaço para as pessoas e bicicletas, retomando uma parte da área ocupada pelos veículos. Apesar da qualificação dos ambientes urbanos, o que atrai mais indivíduos aos lugares, muitos empresários continuam temendo quedas nas vendas. Pesquisas indicam o contrário.
Os anúncios das prefeituras sobre a retirada de vagas de automóveis para a instalação de ciclovias ou a ampliação das calçadas são recebidos, na maioria das situações, com receio pelos empreendedores que possuem negócios nas ruas abrangidas pelas mudanças. A preocupação entre esses comerciantes é que, sem a facilidade de estacionar os carros em frente a seus cafés, lojas, restaurantes e farmácias, por exemplo, haverá redução na comercialização, perda de clientes e prejuízos. No entanto, estudos recentes sobre o tema revelam que ocorre exatamente o oposto, com uma maior circulação de pessoas no local e, consequentemente, mais vendas.
“Toda vez que uma região é transformada para ficar mais amigável para uma mobilidade ativa (caminhar e pedalar), ela deixa de ser um ponto de passagem e passa a ser um destino”, assinala o coordenador do Somos Cidade, empresário e fundador e presidente de honra da Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil (Adit), Felipe Cavalcante. Ele acrescenta que as vias fechadas para os veículos possuem maior comercialização por metro quadrado de varejo que as ruas tradicionais. “Os turistas, assim como os moradores, gostam de ir nesses lugares, porque eles viram um passeio, um programa, conquistando mais público”, detalha.
Ao tornar um espaço atraente para quem anda a pé ou de bicicleta, diminuindo o ritmo de vida em um bairro, os visitantes demoram e param mais vezes nos estabelecimentos dessa comunidade, complementa a diretora de Programa da organização sem fins lucrativos Strong Towns, Rachel Quednau, em artigo. Segundo ela, pouco tempo após o redesenho das vias, os residentes estarão caminhando ou pedalando regularmente pela área para ver o que há de novo. A diretora reforça também que um número crescente de municípios está fazendo essa transição, tirando o protagonismo dos automóveis no planejamento urbano, devido à conscientização sobre os impactos positivos que as ciclovias podem ter e a prosperidade que essa modificação pode proporcionar.
Ruas projetadas para atender a todos os usuários – incluindo ciclistas, pedestres e quem utiliza o transporte público – resultam em menos carros rodando, redução dos congestionamentos e das emissões de gases de efeito estufa e melhoria da qualidade do ar e sonora e do bem-estar dos habitantes. Em geral, essas vias contam com propriedades com valores mais elevados e taxas de vacância menores, destaca o artigo de Rachel na Strong Towns.
Apesar dessa alteração estar se intensificando em diversos países do mundo, no Brasil ela ainda é muito tímida, aponta Cavalcante. As iniciativas realizadas, em grande parte, acabam se adaptando à estrutura viária existente e não fornecem a segurança necessária para quem deseja andar de bicicleta, conforme o coordenador do Somos Cidade. “E, para incentivar mais pessoas a pedalarem, é essencial oferecer proteção aos ciclistas, inclusive implementando barreiras físicas entre eles e os veículos”, salienta.
Outro fator observado por Cavalcante é que há um incremento no consumo dos indivíduos quando a infraestrutura para as bicicletas e para os pedestres é aprimorada e os automóveis são subtraídos da equação. “O tíquete de compras é menor, mas a frequência com que esses clientes vão até as lojas é maior”, enfatiza. Diferentes levantamentos comprovam esse cenário, como o apresentado na reportagem do Streetsblog NYC, que mostra os reflexos da colocação de uma ciclovia protegida na Skillman Avenue, no Queens, em Nova York (EUA), em 2017.
Ao contrário das previsões pessimistas dos empreendedores da região, a economia da rua aumentou depois da construção da pista, com crescimento de receita e abertura de novos negócios. As vendas nos estabelecimentos, bares e restaurantes no principal trecho comercial de sete quarteirões de Skillman tiveram uma elevação coletiva de 12% após a entrada da faixa, de acordo com dados do Departamento de Finanças do município. Em São Francisco (Califórnia, EUA), posteriormente a uma ciclovia ser adicionada à famosa Valencia Street, cerca de dois terços dos empresários afirmaram que a medida foi boa para suas lojas, agrega a diretora da Strong Towns.
Já em Nova York, empresas na Oitava e Nova avenidas obtiveram um incremento de 50% nas receitas de vendas depois que foram erguidas ciclovias protegidas no corredor que passa por esse ponto. Em um bairro de Memphis (Tennessee, EUA), a comunidade arrecadou 500 dólares para comprar tinta e marcaram suas próprias faixas para bicicletas, mesmo sem autorização dos órgãos locais. Em seis meses, os aluguéis comerciais na avenida que passou por intervenções dos moradores dobraram e todas as vitrines – metade delas estavam vazias – ficaram lotadas, relata outra matéria do Streetsblog NYC.
Empreendedores superestimam a utilização do carro por seus clientes
Além da certeza que terão queda nas vendas com a transformação de vagas de veículos em ciclovias, muitos comerciantes posicionam-se contra essa mudança por um motivo cultural, avalia reportagem da revista Wired. Essa resistência vem, segundo a publicação, do fato da maioria dos donos de negócios instalados em vias públicas serem motoristas que se deslocam em seus automóveis de outras partes do município para trabalhar. Por isso, para eles, dirigir é algo tão normal que são os ciclistas que parecem incomuns.
Ao olharem para o seu entorno somente a partir de suas perspectivas e escolhas pessoais de como irão se locomover pelas cidades, grande parte dos empreendedores termina por supervalorizar a opção de seus clientes usarem o automóvel para adquirirem seus produtos ou serviços. Uma pesquisa efetuada em Berlim, entre junho e setembro de 2020, investigou o comportamento de consumidores que utilizavam distintos meios de transporte para acessar os estabelecimentos de duas importantes ruas comerciais da capital da Alemanha, a Kottbusser Damm e a Hermannstrasse, que ficam em bairros movimentados e turísticos.
Dirk von Schneidemesser e Jody Betzien, através do Institute for Advanced Sustainability Studies (IASS), de Potsdam, apuraram que os proprietários de lojas julgam mal a forma como os clientes chegam aos seus negócios. Enquanto apenas 6,6% dos consumidores viajaram de carro até as vias pesquisadas, os empresários calcularam, em média, em 21,6% esse índice, como descreve matéria feita para o portal Somos Cidade. O relatório descobriu que mais de 50% do público faz suas compras a pé, seguido por quem vai de ônibus ou trem e os que se deslocam de bicicleta. Os varejistas projetaram parâmetros para esses modais 10% menores, em geral, do que o examinado na prática.
Os 2.019 clientes em potencial das ruas Kottbusser Damm e Hermannstrasse responderam perguntas também sobre a distância que suas casas ficavam dessas áreas, razões para irem até aquele lugar e a frequência com que visitavam as vias por semana. Por sua vez, os 145 empreendedores ouvidos especularam sobre o gasto com cada compra e de quão longe vinham os seus consumidores. O estudo averiguou que os condutores de veículos deixaram, em média, 23,45 euros nesses estabelecimentos, os ciclistas, 11,98 euros e os pedestres, 11,63. Se por um lado as vendas para motoristas são de maior valor, eles vão poucas vezes às lojas em comparação com quem caminha ou pedala.
Para ter um panorama mais amplo das receitas por modal, Schneidemesser e Betzien estimaram um gasto mensal que foi baseado na quantidade de vezes que os participantes do levantamento informaram que iam aos negócios das duas ruas. A partir disso, verificaram que os condutores são responsáveis pela menor parcela da receita dos comércios, com apenas 8,7% em comparação com quem caminha (61%), com os usuários do transporte coletivo (16,5%) e com quem pedala (13,5%).
Localidades que estão fazendo a lição de casa para melhorar as vias para pedestres e ciclistas
Com 23 milhões de bicicletas para uma população de mais de 17,5 milhões de habitantes, a Holanda é uma das principais referências quando o assunto é infraestrutura para as bicicletas e estímulo à mobilidade ativa. Cerca de 27% de todas as viagens feitas na nação são pedalando. “Estive recentemente naquele país e é impressionante a estrutura cicloviária que eles têm, com pontes, viadutos e faixas separadas dos automóveis e de quem caminha. As pessoas contam com total conforto e segurança para andar nas ciclovias”, frisa o coordenador do Somos Cidade, Felipe Cavalcante.
Copenhagen é outro exemplo de município pensado para os indivíduos e para fomentar outras maneiras de locomoção, como andar a pé, de bicicleta, de ônibus, metrô ou trem. A capital da Dinamarca é a localidade mais amigável para os ciclistas, conforme o Copenhagenize Index de 2019. Na segunda e terceira posições ficaram, respectivamente, Amsterdam e Utrecht, ambas na Holanda. Na capital dessa nação, a expectativa é até 2025 retirar mais de 11 mil vagas de estacionamento para carros do Centro da cidade e substituí-las por espaços para as bikes, por vegetação e ambientes para caminhar mais agradáveis.
No portal do Somos Cidades há mais informações sobre como as experiências holandesa e dinamarquesa podem ajudar os municípios a qualificarem as áreas urbanas e a mobilidade.
No Brasil, algumas localidades estão começando a instalar ciclovias e a ampliar sua infraestrutura para as bicicletas. Um exemplo nesse sentido dado por Cavalcante é Florianópolis (SC). Atualmente, a cidade conta com 142,43 quilômetros de malha cicloviária, de acordo com dados da prefeitura da cidade, entre ciclorrotas (as bikes dividem o espaço com os veículos), ciclofaixas (faixas exclusivas pintadas no chão que podem ter tachões para separá-las dos automóveis) e ciclovias (em geral, são bidirecionais e afastadas fisicamente dos carros).
No momento, o governo local está alargando a rodovia SC-403, na praia dos Ingleses, para colocar uma ciclovia bidirecional no canteiro central da estrada. Um trecho de um quilômetro que leva ao Centrinho da praia, a partir do Morro dos Ingleses, já foi concluído e os 1,99 quilômetros restantes devem ser finalizados ainda no primeiro semestre deste ano. A estrutura terá uma mureta de concreto de 20 centímetros para separar as bicicletas dos veículos e aumentar a proteção de quem pedala.
Segundo ranking de ciclovias e ciclofaixas nas capitais nacionais elaborado pela Aliança Bike e divulgado em 2022, existem no País 4.198,61 quilômetros de rede cicloviária segregada e a média de quilometragem nessas cidades é de 155,50 quilômetros. Florianópolis aparece em oitavo lugar geral entre os 27 lugares avaliados – o primeiro é São Paulo (SP). Já no quesito quilometragem por 100 mil moradores, a capital catarinense fica com a segunda posição, com 23,53 km/100 mil habitantes, atrás de Rio Branco (AC), que registrou 26,22 km por 100 mil residentes.
Seja o primeiro a receber as próximas novidades!
Não fazemos SPAM. Você pode solicitar a remoção do seu email a qualquer tempo.