Entender os municípios como organismos vivos, compostos por diversos sistemas interligados e em constante evolução, assim como a natureza, pode ajudar a planejar localidades mais sustentáveis e que assegurem o bem-estar de seus moradores.
As cidades são, ao mesmo tempo, o problema e a solução para mitigar os impactos das mudanças climáticas no meio ambiente e na vida das pessoas. Se por um lado elas são responsáveis por mais de 70% das emissões de gases de efeito estufa no planeta e por cerca de 75% do consumo mundial de energia, conforme estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU), por outro elas podem se transformar em peças-chave para combater o aquecimento global. Nesse contexto, projetar municípios mais inteligentes e sustentáveis é um dos principais desafios a serem encarados pelas localidades, ainda mais em um panorama de maior migração para os espaços urbanos e de crescimento populacional (a perspectiva é que sejam mais 2,2 bilhões de habitantes no planeta e de até 2050).
Diante desse cenário e da urgência de descarbonizar as cidades, a forma de planejamento e de design proposto pelo biourbanismo ganha mais visibilidade (e novas publicações) como um dos caminhos para lidar com a crise climática. Para a Sociedade Internacional de Biourbanismo, o conceito “enfoca o organismo urbano, considerando-o como um sistema hipercomplexo, de acordo com suas dinâmicas internas e externas e suas interações mútuas”. Entre os objetivos do método estão a contribuição científica para a identificação e realização de melhorias ambientais em sintonia com as demandas naturais das pessoas e dos ecossistemas que elas ocupam e a administração da transição da economia dos combustíveis fósseis para outro modelo de organização civil.
O biourbanista, arquiteto e paisagista Adrian McGregor, fundador e diretor de design da McGregor Coxall, defendeu em recente entrevista para a Bloomberg que é preciso ver os municípios como sistemas vivos e dinâmicos que vão se desenvolvendo junto com os seres humanos e a natureza. Só desse jeito será possível, segundo ele, encontrar as iniciativas mais adequadas para reverter a situação atual de inundações, secas, fortes ondas de calor, desmatamento e poluição do ar e das águas registradas em diferentes pontos do mundo.
Compreender que as localidades são parte da natureza, mesmo que não se pareçam com ela, revela a necessidade de modificar a maneira como esses lugares são pensados e desenhados, como são trabalhados e como o futuro da humanidade se assemelha a eles, acredita McGregor, que é o autor de “Biourbanism – Cities as Nature (Biourbanismo – Cidades como Natureza), lançado no final de 2022. Em seu livro, o arquiteto e também professor adjunto da Universidade de Canberra (Austrália) sugere estruturar os municípios em dez sistemas interligados: indivíduos, economia, energia, infraestrutura, mobilidade, tecnologia, água, resíduos, paisagem e alimentação. A interação desses grupos pode, conforme ele, determinar a saúde e a prosperidade de uma localidade.
O arquiteto argumenta que as cidades devem utilizar esses grandes blocos conectados para definir metas e indicadores de resultado alinhados com a realidade de cada uma delas, criando assim o que ele chama de um “plano de ação de resiliência”, medida que auxiliará a prever os reflexos climáticos de alguns eventos externos que começam a ocorrer. Ele reforça que cada região terá as suas prioridades, que serão estabelecidas a partir de suas características e localização, como por exemplo se é um lugar costeiro, ribeirinho ou deserto.
O fundador da McGregor Coxall, empresa com unidades na Austrália e no Reino Unido e que atua nas áreas de design urbano, arquitetura paisagística e meio ambiente, enfatiza ainda que a primeira alteração que deve ser feita para que os municípios consigam se descarbonizar é acabar com a lacuna que existe hoje entre as políticas e compromissos assumidos pelos governos dos países e as estratégias postas em prática pelas cidades, que são as maiores geradoras de emissões de gases de efeito estufa. McGregor comenta que as gestões federais não estão analisando corretamente de onde vêm essas emissões e, com isso, como diminuí-las.
Transparência de dados e gêmeo digital são iniciativas fomentadas pelo biourbanismo
Deixar as informações relacionadas ao consumo de energia mais acessíveis é uma das soluções apontadas pelo biourbanista e arquiteto Adrian McGregor que pode ser adotada para contribuir na redução dos impactos das mudanças climáticas. Na entrevista para a Bloomberg, o fundador da McGregor Coxall detalha que isso significa introduzir ferramentas como medidores inteligentes de uma forma mais abrangente, chegando a empresas e residências. De acordo com ele, ao entender em que pontos a energia é usada, pode-se verificar os maiores consumidores locais e estimulá-los a mitigar as suas emissões.
Isso permitiria aos planejadores urbanos e aos cientistas terem uma imagem dos municípios e, com isso, conceberem ações para diminuir os problemas ambientais e promover medidas mais sustentáveis. No entanto, McGregor frisa que essa estratégia exigiria que os governos dos países garantissem que as companhias de energia disponibilizassem esses dados. Além disso, ele ressalta ser importante que empresas e administrações públicas que possuem um grande número de ativos divulguem em seus balanços patrimoniais o risco climático de seus negócios e propriedades. Porém, o biourbanista pondera que essa é uma cultura que levará tempo para ser modificada.
Outro fator fundamental para o biourbanismo é o desenvolvimento de um gêmeo digital da cidade física, que deve ser abastecido com informações ao vivo do mundo real. O mecanismo, descreve McGregor, possibilita que um usuário – seja ele um habitante local ou um funcionário do governo – simule alterações no município que ele reside para ver quais seriam as repercussões. Esses dados seriam compartilhados publicamente e viabilizariam testar os reflexos de um empreendimento ao longo de sua vida útil, especialmente no que se refere à utilização da água e de energia, exemplifica. O arquiteto adianta que espera que esses gêmeos digitais sejam integrados ao metaverso (um universo virtual 3D, onde as pessoas podem interagir, trabalhar, fazer compras e se divertir usando avatares personalizados).
Com os avanços tecnológicos, os gêmeos digitais estão se tornando mais confiáveis para a tomada de decisões, relata McGregor. Ele acrescenta também que os próximos passos envolvem agregar a esses elementos virtuais informações de satélite, sensoriamento remoto (coleta de dados sem contato direto com o item estudado) e mais detalhes sobre cidades inteligentes para construir modelos mais qualificados. A Inteligência Artificial (IA), destaca o biourbanista, oportunizará a avaliação desse padrão de gêmeo digital com o objetivo de descobrir as melhores maneiras de enfrentar certos desafios ambientais e das localidades.
O arquiteto salienta ainda que essa ferramenta é “bastante poderosa” para ajudar planejadores urbanos e governos a testarem os impactos climáticos, privilegiando investimentos e gastos em infraestrutura nos espaços corretos para elevar a resiliência dos municípios. Todas essas informações ficariam disponíveis gratuitamente em um painel descentralizado e de código aberto, que poderiam ser acessadas e empregadas para idealizar políticas com o intuito de reduzir rapidamente as emissões de gases de efeito estufa.
UrbanShift apoia iniciativas de descarbonização e preservação da biodiversidade em mais de 20 cidades
Com 1,4 bilhões dos moradores dos municípios vivendo em alto ou extremo perigo de riscos ambientais, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) está liderando um movimento para auxiliar as localidades a tornarem as áreas urbanas em lugares para as pessoas através de um desenvolvimento sustentável, integrado, inclusivo e de carbono zero. Financiado pelo Fundo para o Meio Ambiente Global e implementado pela ONU, Banco Mundial e Banco Asiático de Desenvolvimento, o projeto UrbanShift atende a 23 cidades da África, América Latina e Ásia. Lançada durante a Semana do Clima de Nova York (EUA) de 2021, a ação trabalha em conjunto com os municípios na implementação de soluções inovadoras que vão desde transporte sustentável e moradias populares até gestão de resíduos, conservação da biodiversidade e outras medidas baseadas na natureza.
Para isso, além de financiamento, as agências integrantes do programa realizam treinamentos e workshops de capacitação e participam de conferências internacionais assinalando o papel essencial que as localidades devem ter no combate à crise climática. Entre as metas estipuladas pelo UrbanShift estão: mitigar, em parceria com as cidades, países e organizações, mais de 170 milhões de toneladas de emissões de gases de efeito estufa, restaurar 1 milhão de hectares de terra e melhorar a qualidade de vida de 40 milhões de indivíduos. O projeto definiu também cinco prioridades para a ação climática urbana em 2023 para conseguir diminuir as emissões do planeta pela metade até 2030 e manter o aquecimento global abaixo de 1,5 grau centígrado, que segundo os cientistas é o limite para evitar alguns dos impactos mais perigosos das mudanças do clima.
A primeira das propostas trata da integração dos objetivos de descarbonização em todas as esferas governamentais – municipal, estadual e nacional – e entre os setores institucionais. Decisões sobre uso da terra, transporte público e habitação, para citar algumas, devem incorporar a preocupação com o alcance das metas climáticas, incentivando a colaboração entre esses diferentes segmentos. Outra iniciativa busca a maior eficiência energética das edificações, que é indicada como a solução de redução de emissões mais econômica e a mais eficiente para diminuir o consumo de energia. Uma transformação na construção civil liderada pelos municípios é fundamental na visão dos criadores do UrbanShift para atingir os objetivos ambientais acordados e ainda oferecer residências acessíveis, infraestrutura resistente à crise climática, empregos verdes e regiões saudáveis.
O terceiro ponto reforçado pelo programa é a descarbonização do transporte e o estímulo à mobilidade ativa – caminhar e pedalar. A conexão entre variados meios de locomoção, aprimorando a circulação, é outro fator essencial para reduzir a dependência dos veículos. O acesso a serviços urbanos básicos e a edificação de mais imóveis nos espaços centrais das cidades é a quarta intervenção urgente pontuada pelo projeto. Conforme dados do UrbanShift, mais de 1,2 bilhões de moradores de localidades do globo não contam com serviços como abastecimento de água, saneamento, energia, habitação segura e transporte coletivo. Esse panorama demonstra a necessidade de aliar medidas climáticas com a mitigação das desigualdades sociais e urbanas.
Complementando as estratégias, está a demanda de encontrar ações baseadas na natureza para lidar de uma forma mais econômica com os desafios relacionados à água e à crise climática, como restauração de cursos d’água, expansão de áreas verdes e diminuição dos riscos de inundação. Segundo informações do programa, até 2050 mais de dois terços das cidades africanas devem enfrentar riscos climáticos extremos e choques relacionados à água, incluindo secas, enchentes e poluição, afetando a saúde e o bem-estar de milhões de pessoas. Outros municípios do planeta poderão vivenciar os mesmos problemas se modificações não forem promovidas para reduzir os reflexos da mudança climática, salientam as agências que encabeçam a iniciativa.
Seja o primeiro a receber as próximas novidades!
Não fazemos SPAM. Você pode solicitar a remoção do seu email a qualquer tempo.