Shabbificação

Instalada na ilha hondurenha de Roatán, em uma Zona Econômica Especial do país da América Central, Próspera é um dos exemplos mais avançados de localidade planejada e operada por uma companhia privada e com autonomia para estabelecer suas instituições reguladoras e administrativas. Em maio desse ano, ela chegou aos seus primeiros mil habitantes.

Destino turístico do Caribe, a ilha de Roatán, em Honduras, vem chamando a atenção mundial por motivos que vão além de suas belezas naturais. É nessa região, em um terreno adquirido do governo nacional, que a Honduras Próspera LLC, incorporadora sediada em Delaware (Estados Unidos), está construindo o seu próprio município. Conhecida como cidade privada, charter city ou cidade startup, Próspera é uma referência de lugar idealizado, erguido e operado por uma empresa e que tem independência para definir suas leis e gerir seus assuntos. O foco de projetos desse tipo, conforme a incorporadora, é criar uma plataforma para impulsionar a implementação de novas localidades em zonas econômicas especiais, fomentando ambientes favoráveis para os negócios e a qualidade de vida nessas áreas através de soluções de governança inovadoras.

Para viabilizar Próspera, Honduras instituiu Zonas de Emprego e Desenvolvimento Econômico (Zedes), em 2013, dando às companhias presentes nesses espaços uma ampla autonomia do governo da nação, mesmo que os empreendimentos sejam edificados em solo que pertence ao país, como detalha matéria do Market Urbanism Report. Oficialmente constituída como uma Parceria Público-Privada (PPP) em dezembro de 2017, e com garantia de estabilidade legal de 50 anos, a Próspera Zede estima atrair investimentos estrangeiros na ordem de 500 milhões de dólares e proporcionar 10 mil empregos diretos até 2025, ressalta reportagem da Econ Americas, consultoria financeira especializada na América Latina.

Atualmente, a região conta com três prédios que já foram ampliados desde a sua criação para atender à demanda crescente por escritórios e ao aumento da população, que chegou a 1 mil moradores em maio deste ano (a maioria são hondurenhos, mas há também norte-americanos, alemães, nicaraguenses, guatemaltecos, brasileiros, entre outras nacionalidades), segundo dados do relatório da Honduras Próspera e de postagem realizada em seu Instagram. Desde 2021 até março de 2023, o município passou a abranger um território de 1 mil acres (4.047.000 metros quadrados), incluindo o campo de golfe e o resort que já existiam na área. Próspera é descrita pela revista Exame como uma cidade inteligente, baseada no estado mínimo liberal, superconectada e hipermoderna, que possuirá, entre outras iniciativas, um complexo de casas desenhado pelo renomado escritório de arquitetura Zaha Hadid, o Beyabu, que deve ser inaugurado até final do ano.

Além disso, está sendo trabalhado pela incorporadora outro hub, dessa vez no continente hondurenho, em La Ceiba, que tem acesso a um porto e fica próximo de um grande centro urbano. Satuyé, como é chamado o projeto, é um parque industrial que será concretizado em parceria com a Jacobs Engineering e contará com uma empresa que produz exames médicos, adianta o relatório sobre o progresso do empreendimento da Honduras Próspera. A charter city está se tornando interessante ainda para companhias de construção civil, de drones, biomedicina e bancos, assinalou o diretor de internacionalização da Adrianople Group e especialista em localidades privadas, Francisco Litvay, durante participação no podcast Além da Curva. O programa é apresentado pelo coordenador do Somos Cidade, empresário e fundador e presidente de honra da Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil (Adit), Felipe Cavalcante.

Sobre o funcionamento de Próspera, Litvay explica que ela tem um modelo de Lei Comum (Common Law), fundamentada nos melhores exemplos de regulamentações dos Estados Unidos, Inglaterra, Nova Zelândia, entre outros lugares. Por ser uma Zede, a localidade privada possui status jurídico de município e é responsável por disponibilizar infraestrutura para seus residentes, como educação, saúde e segurança. Há um conselho formado por nove pessoas – cinco delas eleitas pelos habitantes e as outras quatro são indicadas pelo desenvolvedor do complexo –, para fazer a administração de Próspera, assim como existe uma ouvidoria e um Centro de Arbitragem, que cuida de todas as disputas da Zede, inclusive as trabalhistas, e conta com árbitros que passam por um rigoroso procedimento de seleção, acrescenta a matéria da Econ Americas.

Apesar de operar como um pequeno estado-nação, como destaca reportagem do Market Urbanism Report, Próspera não está totalmente desvinculada das normas de Honduras. Litvay complementa que a cidade privada segue o direito criminal hondurenho, bem como os tratados internacionais firmados pela nação, como o de Direitos Humanos. Mas, no que se refere às empresas e ao incentivo ao crescimento econômico, há uma vasta autonomia, com padrões próprios para regulamentar setores como os de construção, criptomoedas, biomedicina, entre outros. As companhias também podem optar por serem geridas por leis de qualquer país integrante da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ou propor o seu código legal particular perante as autoridades da localidade, que têm o poder de aprová-lo ou não.

Diferenças e semelhanças entre as cidades privadas e os bairros planejados

Assim como Próspera, em Honduras, existem mais de 20 charter cities em variados graus de desenvolvimento em diversos continentes, salienta o diretor de internacionalização da Adrianople Group, Francisco Litvay. Esses municípios e outros formatos de zonas econômicas especiais foram identificados no Open Zone Map, iniciativa da empresa onde Litvay atua e que tem o objetivo de reunir dados sobre cada um desses ambientes no planeta e, com isso, melhorar a compreensão do público em geral sobre o tema. Outra meta da medida é estimular mais pesquisadores a investigar o assunto e expandir as informações sobre as zonas econômicas especiais. O levantamento contou com 40 pessoas envolvidas e foi lançado em outubro de 2021.

Zâmbia e Nigéria, na África, são algumas das nações interessadas em instalarem cidades privadas, cita o diretor de internacionalização, bem como a localidade de Duqm, em Omã – todos esses territórios podem ser encontrados no mapa da Adrianople Group. Gurgaon, na Índia, e Jiaolong, na China, são outros exemplos listados pelo Instituto de Charter Cities, que observa ainda que essas regiões, em conjunto com Próspera, possuem modelos de administração de sua economia e sociedade distintos entre si. Projetos como o em andamento em Honduras e nos demais países começam em pequena escala e vão evoluindo organicamente, aponta Litvay. Ele relata também que os municípios privados são resultado da combinação de duas tendências que vêm ganhando força nas últimas décadas: as zonas econômicas especiais e a governança privada.

Sobre a relação entre as charter cities e os bairros planejados, o diretor de internacionalização comenta que a principal semelhança entre esses empreendimentos é o fato deles serem planejados, desenvolvidos, financiados e operados pelo setor privado. Por outro lado, a falta de autonomia regulatória das comunidades planejadas é o elemento que diferencia esses dois tipos de iniciativas. “A Cidade Pedra Branca, em Palhoça (SC), o Urbitá, em Brasília (DF), o Parque Una, em Pelotas (RS), por exemplo, são complexos concebidos e construídos por companhias e que têm infraestrutura melhorada, mais segurança, bom urbanismo e qualidade de vida, mas não possuem independência para fazer suas leis”, reforça.

Apesar de não contarem com autonomia regulatória, Litvay argumenta que muitos desses projetos acabam promovendo mudanças urbanísticas significativas em suas áreas que podem influenciar o debate sobre o futuro dos municípios e levar a modificações nos planos diretores e em outras normas locais. Ele enfatiza ainda a importância das comunidades planejadas trazendo a informação de que, hoje em dia, um em cada quatro norte-americanos vive em um bairro privado. Somente no Highlands Ranch, subúrbio que fica em um antigo rancho próximo a Denver, no Colorado, moram mais de 107 mil habitantes em um espaço com restaurantes, shopping center e mais de 80 quilômetros de trilhas para caminhadas, de acordo com dados do Uncover Colorado, guia de turismo especializado naquele estado.

Próspera enfrenta críticas quanto a sua implementação e ampliação

Apelidada de “Hong Kong do Caribe”, conforme a revista Exame, e a “Singapura latino-americana”, segundo o Market Urbanism Report, a cidade privada em Honduras possui desafios políticos e sociais para lidar durante o seu desenvolvimento. Um desses aspectos envolve o lugar onde Próspera está sendo construída, junto a uma pequena comunidade onde moram nativos da ilha, que temem que suas terras sejam compradas pela incorporadora à frente do empreendimento. Há no ambiente uma relação de amor e ódio com a Honduras Próspera, isso porque ao mesmo tempo que a população está apreensiva com a possibilidade de terem que sair de suas casas, a companhia é a maior geradora de postos de trabalho para os residentes.

Outra barreira a ser ultrapassada é a questão da manutenção da lei que estabeleceu as Zonas de Emprego e Desenvolvimento Econômico (Zedes), que foi revogada pelo recém-eleito governo hondurenho, em 2022, detalha o Market Urbanism Report. As notícias sobre o tema são ainda confusas, com informações que a proibição é apenas para a criação de novas Zedes e não para as que já existem, como a de Próspera, que tem uma estabilidade legal de 50 anos. A revista Exame agrega que manifestantes pediam, em 2021, o cancelamento dessas zonas para impedir que novos municípios privados fossem erguidos na nação.

Para o diretor de internacionalização da Adrianople Group, Francisco Litvay, a localização das charter cities é um dos critérios mais relevantes que pode fazer com que um empreendimento desse porte falhe. Em sua opinião, as zonas econômicas especiais devem ser pensadas para ajudar a reformar os países. “Mas, temos situações reais em que não foi assim, como na Índia, em que para instalar essas áreas foram retiradas terras de pequenos fazendeiros. Acho que isso é algo inadmissível em iniciativas desse movimento. A gente quer que seja como a China, que as zonas auxiliem a mudar a nação para melhor”, sustenta.

Litvay pontua também que o pior cenário de todos no que se trata dessas regiões é quando o país se prejudica para defender os interesses desses lugares e não o contrário. “A Zona Franca de Manaus (AM) é um exemplo, a equipe de lá estava fazendo lobby contra a reforma que permitiria que mais zonas econômicas especiais fossem abertas no Brasil, porque isso criaria mais competidores (para eles)”, conclui.

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