Shabbificação

Conceito difundido pelo economista político Francis Fukuyama, a vetocracia refere-se à excessiva fragmentação do poder, que possibilita que uma multiplicidade de grupos de interesses diversos dificulte a governabilidade ou a realização de reformas ou projetos em áreas que vão da habitação e transporte público à energia renovável.

A vetocracia é apontada por diferentes economistas e cientistas políticos como um dos principais obstáculos para o desenvolvimento e planejamento dos municípios, a qualificação da infraestrutura urbana e a concretização de empreendimentos imobiliários. O termo foi usado pela primeira vez pelo economista político e pesquisador da Universidade de Stanford (Califórnia, EUA) Francis Fukuyama para explicar porque o sistema político norte-americano tornou muito complexo para o governo nacional a concretização de mudanças e a aprovação de novas propostas. 

A gestão por veto, que é como Fukuyama detalha em entrevista para o Vox o conceito que criou, permite que muitos atores e grupos de distintos interesses tenham direito de solicitar a suspensão de iniciativas apresentadas nos Estados Unidos, que foi o panorama analisado pelo economista. Essa fragmentação do poder complica a tomada de decisões e os processos de governabilidade, de reformas políticas e de produção de consenso, acrescenta o cientista político e professor do Insper, Fernando Schüler, em entrevista para o Instituto Millenium, um think tank voltado para acelerar o progresso do Brasil através da liberdade. 

Para Schüler, a vetocracia é resultado, em alguma medida, dos reflexos da tecnologia na democracia. Com o acesso crescente das pessoas à Internet e às redes sociais, existe uma maior facilidade dos cidadãos se organizarem, participarem, darem a sua opinião e influenciarem o debate público e a tomada de decisão sobre variados assuntos que têm efeito em suas vidas. Ele recorda que, há cerca de 30 anos, os indivíduos dependiam dos partidos, do parlamento, dos sindicatos, da mídia tradicional e das instituições para fazer a mediação entre a vontade da população e a decisão política. 

“Hoje, as pessoas participam diretamente, tem movimentos de rua, uma multiplicidade de grupos da sociedade e (isso) é muito bom para a democracia, você possui mais liberdade. Mas, de outra parte, há muito mais dificuldade de consenso, instabilidade”, argumenta. O professor e também doutor em Filosofia complementa que essa realidade acabou dando poder a “minorias barulhentas” e que qualquer reforma, seja ela na educação ou no setor de moradia, enfrenta uma “agressiva” resistência de grupos que perdem a curto prazo para que a coletividade ganhe mais adiante. Esse contexto, pondera Schüler, leva a uma democracia que vai exigir muito mais capacidade de liderança daqueles que desejam o melhor para todos. 

No entanto, não é apenas na esfera federal que a vetocracia se manifesta, ela acontece nas administrações estaduais e locais, ressalta o jornalista e comentarista político Ezra Klein em artigo do Vox, site de notícias fundado por ele. Klein salienta que a estrutura norte-americana de “freios e contrapesos requer níveis incomuns e até extraordinários de consenso para aprovar a legislação”. O jornalista comenta que é preciso primeiro um acordo na Câmara, depois no Senado, na Casa Branca e, segundo ele, cada vez mais, na Suprema Corte. A consequência disso, relata, é um “sistema tendencioso para a inação”. 

A fragmentação do poder, que conta ainda com uma série de comissões do Congresso nacional pelas quais os projetos devem passar para serem aprovados, faz com que muitas medidas governamentais ou complexos imobiliários não saiam do papel. O fundador do Vox assinala que o pior de uma democracia representativa é quando ela representa apenas a vontade daqueles que sabem que devem comparecer às reuniões de suas cidades – atividades que a maioria dos indivíduos não ouviu falar. Essa situação acaba entregando o poder a interesses especiais e aos Nimbys (Não no Meu Jardim, em tradução da sigla em inglês), destaca ele em seu artigo.

Para alterar esse cenário, Klein defende a construção de instituições políticas com “viés de ação e de ambição, em vez de inação”. Porém, reforça ele, isso demanda um árduo trabalho de reforma da estrutura existente. Uma solução para reduzir as dificuldades que existem devido à vetocracia seria, no âmbito federal, simplificar o sistema de comitês, democratizar as eleições e garantir que as maiorias possam implementar suas agendas quando saírem vencedoras nos pleitos. 

Crise habitacional, paralisação de propostas e a relação com a vetocracia

O poder de veto excessivo interrompe o progresso, pontua o pesquisador sênior do The Center for Growth and Opportunity da Universidade Estadual de Utah (EUA), William Rinehart, em artigo publicado pelo centro de estudos sobre os custos da vetocracia. A escassez de imóveis residenciais na Califórnia é um dos mais significativos exemplos dos impactos desse sistema político, conforme ele. Com poucas unidades disponíveis e uma grande demanda, houve um aumento representativo dos preços das moradias. No começo de 2023, de acordo com levantamento da revista The Atlantic, o valor médio de uma casa californiana típica era de mais de 728 mil dólares e o aluguel de um apartamento médio estava em 3.313 dólares em São Francisco e 2.781 em Los Angeles. 

A facilidade com que as pessoas podem parar um desenvolvimento imobiliário é, para Rinehart, uma das maiores causas para a oferta limitada de habitações. O pesquisador conta que em São Francisco existe um grupo de cerca de seis pessoas que se opõem a grande parte dos novos empreendimentos no município, sejam eles comerciais ou residenciais, usando para isso brechas e processos de revisão para atrasar a aprovação dos complexos por meses ou anos. 

Os casos de vetocracia, enfatiza Rinehart, não se limitam aos imóveis, eles ocorrem também em iniciativas de transporte público e foram registrados até mesmo na época da pandemia de coronavírus, quando lugares como São Francisco tentaram fechar algumas ruas para os carros e permitir que bares, cafés e restaurantes ocupassem as calçadas. Mesmo nesse ambiente de restrições da Covid-19 foram recebidos pelo governo municipal recursos para interromper essa intervenção. O pesquisador revela que cada um desses apelos custou cerca de 100 horas de trabalho e em torno de 10 mil dólares para a prefeitura. 

O jornalista e fundador do Vox, Ezra Klein, concorda com o pesquisador sênior do The Center for Growth and Opportunity sobre a incapacidade da Califórnia de efetuar novos projetos, como os de instalar ferrovias de alta velocidade, mesmo que estejam liberados dezenas de bilhões de dólares em subsídios federais para isso. Apesar dos dois centrarem suas análises nesse estado, ambos observam que essa é uma situação que se repete em inúmeras localidades norte-americanas e de outros países, que não conseguem concretizar sistemas de transporte coletivo com qualidade e outras melhorias no espaço urbano. 

Rinehart descreve ainda que enquanto a burocracia, as permissões, licenças e outras limitações regulam a conduta – e precisam ser julgadas por seus próprios méritos –, a vetocracia é sobre atrasos desnecessários criados por pontos de vetos excessivos nas instituições. “Existem muitos atores envolvidos na permissão (de um programa ou desenvolvimento) e basta um deles para desacelerar tudo. A vetocracia é sobre o acréscimo demasiado de vozes que atrasam os processos normais. Claro, a voz é importante para uma democracia saudável, mas vetos demais significam que o trabalho diminui”, afirma. Ele conclui que a reversão dessa forma de atuação do sistema político refletiria em mais moradias, iniciativas de energia limpa e de transporte e em cidades melhores. 

Uma realidade que ultrapassa as fronteiras dos Estados Unidos

A dificuldade para erguer mais habitações, novos empreendimentos e concretizar medidas para qualificar os ambientes urbanos e a mobilidade devido à constituição do sistema político e à possibilidade de vetar essas ações em diversas esferas ocorre em várias nações. Canadá, Alemanha, Austrália e Reino Unido são alguns dos lugares citados pelo pesquisador sênior do The Center for Growth and Opportunity da Universidade Estadual de Utah, William Rinehart, que enfrentam esse contexto.

A Inglaterra atualmente possui 434 casas para cada 1 mil residentes, enquanto a França tem 590 unidades por 1 mil moradores (dados de 2022), informa artigo do The Economist, que agrega também que os municípios ingleses não conseguem se expandir para fora e frequentemente são impedidos de se verticalizar. O fracasso em produzir habitações suficientes é, segundo a publicação, um fato comum em toda a Grã-Bretanha. Porém, o problema de estagnação não se limita a esse segmento, abrangendo outras áreas estruturantes, como reservatórios, usinas de energia nuclear e ferrovias de alta velocidade. 

O último reservatório edificado nessa grande região que envolve a Inglaterra, Escócia e País de Gales foi em 1991, exemplifica o The Economist. O resultado dessa conjuntura, aponta a matéria, é frustração da população e crescimento econômico mais lento. O artigo lembra ainda que nunca foi fácil construir na Grã-Bretanha e que muitas vezes isso é muito complexo, pois ela virou uma vetocracia, na qual muitos cidadãos e agências têm o poder de impedir qualquer atividade imobiliária. As decisões sobre a aprovação de novas propostas, salienta o The Economist, são tomadas por políticos que contam com os votos de Nimbys, de Notes (“Not over there, either”, “Também não ali”, em tradução livre do inglês) e de Bananas (“Build absolutely nothing anywhere near anything”, “Não Erguer Nada perto de Qualquer Coisa”).

O caminho indicado pelo artigo para modificar esse cenário seria a transformação do sistema de planejamento pelo governo, com uma revisão das regras em vigência. No entanto, pequenas mudanças já seriam bem-vindas e poderiam fazer a diferença como o incentivo para que localidades vizinhas atuem em conjunto em planos de longo prazo para o seu desenvolvimento. A publicação detalha ainda que para que a Grã-Bretanha alcance as metas estipuladas para ser neutra em emissões de gases de efeito estufa até 2050 será preciso repensar as normas de idealização das cidades.

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