Shabbificação

Uma das áreas mais movimentadas da capital paulista está recuperando o seu espaço urbano com o objetivo de atrair mais residentes, negócios, frequentadores e turistas. Para isso, a administração local tem estimulado o retrofit de prédios, a abertura de novas empresas, entre outras medidas que vêm mostrando acertos e a necessidade de ajustes em algumas das iniciativas em andamento

Todos os dias milhares de pessoas circulam pelo Centro de São Paulo (SP) em direção ao trabalho, comércios e serviços, pontos históricos e culturais ou as suas casas – apenas entre as estações de metrô da Sé e República são registrados mais de 800 mil viajantes diariamente, segundo dados da associação Pró-Centro. De lugar de passagem, a região deve se transformar, nos próximos anos, em um destino de permanência, de habitação e de turismo. Esse é o resultado que a prefeitura municipal espera alcançar com as diferentes ações desencadeadas para revitalizar a área. Com estratégias que aliam o aprimoramento de serviços públicos com incentivos tributários, o governo da cidade busca atrair o capital privado para a reforma de edifícios, a construção de mais moradias e a implementação de novos negócios.

Entre as medidas para reverter o atual cenário de esvaziamento e de insegurança desse território estão o Projeto de Intervenção Urbana (PIU) Central e a chamada Lei do Retrofit, aprovada em 2021. O PIU Central, conforme informações da administração de São Paulo, disponibiliza benefícios fiscais e tributários para impulsionar a restauração de prédios e a instalação de empresas na região. Além disso, conta com regras específicas que permitem edificações maiores e mais vantajosas que as normas gerais da capital autorizam. A expectativa com a iniciativa é que mais 220 mil indivíduos passem a viver no Centro nos próximos dez anos.

Já a Lei do Retrofit fomenta a reforma de prédios antigos, adaptando-os para novos usos e para atender aos critérios modernos de segurança e acessibilidade. As vantagens para quem realizar esse tipo de obra vão de isenção de IPTU por cinco anos à redução de taxas cobradas na localidade. Até julho deste ano, 20 ações nesse sentido tinham sido protocoladas na Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento e três delas foram aprovadas: os edifícios 7 de Abril (antiga sede da Companhia Telefônica Brasileira e da Telesp), que será um condomínio residencial de alto padrão, o Antonio de Queiroz Telles, que receberá estúdios de até 28 metros quadrados, e o Virgínia, que contará com unidades de 26 a 182 metros quadrados, três lojas no térreo voltadas para a gastronomia e o mercado criativo e um restaurante na cobertura.

“Há muitos anos se tenta fazer algo para revitalizar esse espaço de São Paulo, mas enquanto o problema de segurança não for resolvido, a questão dos moradores de rua, da cracolândia e da própria zeladoria, vai ser muito difícil virar essa chave”, analisa o coordenador do Somos Cidade, empresário e fundador e presidente de honra da Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil (Adit), Felipe Cavalcante. Um passo importante para transformar o Centro é facilitar a ocupação por moradia, aponta ele, assim como priorizar a atração da indústria criativa para a área, com negócios de moda, arte, música e tecnologia, por exemplo, o que ajudaria a chamar outros públicos e a classe média.

Para que as estratégias da prefeitura tenham sucesso, argumenta o empresário, a capital paulista não precisa fazer todas as mudanças ao mesmo tempo. “Precisa por toda a energia em um pequeno perímetro para que ali as coisas deem certo e, assim, motivar a iniciativa privada e pública e demonstrar que é possível (recuperar o Centro)”, salienta. Ele acrescenta que, a partir desse primeiro sucesso, a medida vai se irradiando para a vizinhança e “contaminando positivamente” todos os atores desse grande bairro para que as iniciativas funcionem em todo o ambiente.   

A administração local tem ainda projetos como a requalificação do Triângulo Histórico (23 ruas estão sendo melhoradas em sua mobilidade e acessibilidade desde novembro de 2022) e o Plano Urbanístico AIU do Setor Central, que busca conquistar mais residentes para a região por meio do aperfeiçoamento do espaço urbano, incluindo a arborização de 118 quilômetros de vias, implementação de equipamentos públicos, transporte e outros elementos. A promoção de eventos gratuitos e shows no Vale do Anhangabaú é mais uma maneira de contribuir para a revitalização.

Foi estabelecido também o Comitê Intersecretarial #TodosPeloCentro, que integra os diversos órgãos do município no planejamento, implementação, gestão, monitoramento e avaliação das intervenções executadas. As ações são realizadas a partir de seis eixos prioritários: Atração de Investimentos, Requalificação Urbana e Mobilidade, Habitação, Segurança, Social, e Meio Ambiente, Lazer e Cultura. Complementam as propostas a concessão do uso do Terraço Martinelli para o Grupo Tokyo, que irá oferecer serviços como cafeteria, loja, cinema, museu, restaurante e um observatório.

Superar dificuldades enfrentadas na área central é um dos desafios da revitalização

Um lugar malcuidado gera sentimento de insegurança, por isso a zeladoria é vista pela fundadora da empresa Citas, Isadora Rebouças, como o principal problema do Centro da capital paulista e que está conectado com a questão dos moradores de rua e das pessoas que vivem de recolher resíduos nessa localidade que tem um grande fluxo de cidadãos e material a ser coletado. Ela acredita que a solução para esse assunto não é simples e precisa passar por um viés humano. “Não adianta construir um abrigo no extremo da Zona Leste (do município) e isolar um catador de lixo de sua fonte de renda principal”, enfatiza.

Já para o presidente da associação Pró-Centro e um dos donos do Grupo da Cidade, Marcone Moraes, no momento, a segurança pública é um dos maiores desafios para viabilizar essa recuperação. Ele também lista as dificuldades relacionadas à zeladoria e agrega outro fator que acaba sendo um impeditivo para muitas medidas: a burocracia. “Ela não deixa que as regras para estar no Centro de São Paulo sejam transparentes para um turista, empresário ou trabalhador. Poucos têm clareza sobre como podem empreender na região ou literalmente como frequentá-la”, assinala.

Um exemplo citado por Moraes para explicar esse contexto é o da Lei da Cidade Limpa, que trata das autorizações e proibições de uso de outdoors, placas e pinturas nas fachadas das edificações. Essa norma, de acordo com ele, precisa ser atualizada. “O Shopping Light não pode ter um logo na sua porta por causa disso. Que investidor vai querer montar uma loja ou um negócio onde não pode nem colocar o seu nome na parte externa do prédio, divulgar que está lá”, questiona.

Apesar dos entraves que ainda existem para que a revitalização do Centro da capital se concretize, algumas iniciativas da prefeitura em parceria com o governo estadual têm se revelado positivas. A legislação para incentivar o retrofit das construções é indicada por Isadora como o maior acerto. “Trazer mais gente para morar nesse espaço é a peça-chave para alterar a percepção geral de falta de segurança (que há sobre esse ambiente da localidade). Dar uso para o patrimônio que estava abandonado também”, afirma a fundadora da Citas.

A teoria das janelas quebradas, na qual um prédio ou terreno abandonado que não é cuidado tem mais possibilidades de passar por vandalismo ou se tornar um depósito de lixo, cria um ciclo vicioso em que a falta de restauração leva a mais degradação. O retrofit, defende Isadora, possui força para interromper esse processo e iniciar outro de mais prosperidade. Para ela, quando um edifício que estava vazio é retrofitado ele impacta todo o quarteirão. “É uma loja que estava fechada e ganha um novo ocupante, o dono da padaria que com essa demanda resolve expandir ou reformar o lugar e assim por diante”, complementa.

A Citas tem atualmente dois prédios em obras e outro iniciando as locações, o Citas República, na área central do município. A fundadora ressalta que o diferencial da empresa é desenvolver edificações apenas para o aluguel, com foco em contratos longos. Isso faz com que a Citas tenha um extenso relacionamento com a cidade também, pois necessita que o entorno da construção esteja sempre bem, seguro e para tanto cuida mais da calçada e da limpeza da rua, entre outras ações.

Mesmo sendo um marco, na opinião de Isadora a nova regulamentação sobre retrofit necessita de ajustes. “Um ponto crucial da lei, mas que ninguém sabe ainda como vai funcionar, é a remissão de créditos do IPTU. A norma diz que existirá a emissão de créditos quando foi aprovado o habite-se do projeto requalificado. No entanto, a secretaria da Fazenda entende que somente parte do débito em aberto será realmente perdoado”, descreve. Outras estratégias, como a instalação de estátuas e uma parte da rota das calçadas que estão sendo melhoradas, tiveram críticas pela falta de planejamento e por isso, na percepção da fundadora da Citas, “bateram na trave”.

Já a Operação Delegada, que permite que policiais militares reforcem o policiamento de São Paulo durante suas folgas, é uma das propostas que está auxiliando na recuperação do Centro, trazendo mais segurança para a capital, destaca Moraes. Ele pondera ainda que adequações são importantes e que o governo local começou a fazer isso, formando um conselho para organizar a atuação dos grupos da Operação Delegada. O presidente do Pró-Centro considera que o município está vivendo agora uma “janela de oportunidade rara”. Ele recorda que nos 30 anos que frequenta essa região nunca tinha visto as administrações estadual e da cidade atuarem de maneira tão integrada para revitalizar esse território.

“É uma ação conjunta em que 80% do trabalho deles está centrado em entender a burocracia para tentar superá-la”, analisa. Moraes frisa que as leis de zoneamento e as que determinam o desenvolvimento do Centro são extremamente complexas e quase impeditivas para qualquer empreendimento. “Ainda mais quando há um arroubo do Judiciário, que vem tomando as rédeas de quase tudo no País”, critica. A judicialização da maioria das medidas e o excesso de burocracia são, para ele, as principais barreiras para que São Paulo e outras localidades consigam revitalizar seus centros.

Isadora concorda que a burocracia é hoje um dos maiores obstáculos no Brasil para que novas iniciativas nesse segmento sejam concretizadas. “Precisa ser muito corajoso e talvez até meio louco para batalhar por propostas como essas de recuperação com todas as dificuldades legais”, desabafa. Ela lembra que a Citas possui um projeto assinado com os vendedores em 2021 que até agora não foi aprovado pela prefeitura. “É muito doido como a burocracia nacional simplesmente não funciona, as coisas não andam. Essa incerteza afasta o capital privado”, comenta.

Simplificação dos processos e mais participação comunitária

Apesar de ser contra o termo “revitalização do centro” por achar que essa área da capital já possui vitalidade e a maior infraestrutura de cultura e de lazer do município, a fundadora da Citas, Isadora Rebouças, reflete que ainda há muita coisa a ser feita para qualificar esse espaço. Uma delas é simplificar e desburocratizar a abertura de um negócio, alvará de funcionamento, benefício de ISS ou do IPTU. A operacionalidade dos incentivos tributários e fiscais não pode ser incerta e difícil, segundo ela. A oferta de atividades que se equilibrem na utilização dos ambientes públicos é mais um ponto assinalado por Isadora, ocupando as ruas e os prédios em todos os horários e dias com funções distintas: comerciais, de lazer e de habitação.

Ela observa também que é preciso modificar a visão que muitos têm desse território da cidade. “As notícias ruins que transbordam na mídia hoje são exclusivas de dois ou três quarteirões de um lugar enorme. Quando a notícia é ruim, ela é no Centro, mesmo que tenha acontecido na (Avenida) Paulista”, argumenta. A fundadora da Citas avalia ainda que em uma região onde é permitido o uso residencial e comercial seria mais dinâmico se a utilização fosse mudada conforme a demanda.

Por sua vez, o presidente do Pró-Centro, Marcone Moraes, salienta que toda a intenção de valorizar a região central é sempre relevante, não importa se for um programa estruturado ou somente a ideia de abrir um diálogo permanente com quem vive e frequenta essa área para entender e aprimorar o que ocorre naquele espaço urbano. Ele defende também que se fomente uma maior participação das pessoas na vida comunitária. “Esse é o objetivo da nossa associação, aproximar a população dos poderes executivo, legislativo e judiciário, para que os indivíduos compreendam o que é essa complexidade de regulamentações e de leis e consigam encontrar um caminho para realizar seus empreendimentos”, esclarece.

Moraes reforça que um dos desafios é superar a relação institucional e partir para uma pessoal ou interpessoal, que faz com que se enxergue aqueles que atuam nas instituições como pessoas e vice-versa. E isso, em sua visão, só será possível através da interação entre todos e do restabelecimento do sentimento de comunidade e dos ambientes de convivência. Esse movimento associado ao tripé zeladoria, segurança e simplificação da burocracia contribuirão para a revitalização do Centro da cidade e de outros locais.

Experiências de revitalização bem e malsucedidas pelo mundo

Uma boa referência de recuperação de regiões centrais dada por Isadora Rebouças, fundadora da Citas, é a de Barcelona (Espanha). “A transformação do bairro El Raval foi focada na renovação de lugares públicos, requalificação de edifícios históricos e promoção da diversidade cultural”, detalha. Ela acrescenta que foram criadas praças, parques e áreas de lazer ao mesmo tempo em que houve um investimento em educação e cultura, o que acabou atraindo moradores e turistas, ajudando na revitalização.

O High Line Park, em Nova York (EUA), que reutilizou uma antiga linha ferroviária elevada de Manhattan para idealizar um novo espaço verde e de diversão na metrópole, é outra estratégia com bons resultados apontada por Isadora. O resultado obtido pela ação, descreve ela, foi uma maior movimentação de turistas, melhora na qualidade de vida no entorno e recuperação de bairros próximos. A esses exemplos o presidente do Pró-Centro, Marcone Moraes, agrega o de Portugal que desencadeou a revitalização desses ambientes em vários municípios. Para ele, o ponto em comum nessas cidades foi tratar a zeladoria com seriedade e, consequentemente, a segurança pública e a simplificação dos processos para que os indivíduos possam estar nas regiões centrais empreendendo, vivendo e visitando.

Por outro lado, Detroit (Michigan, EUA) e o Porto Maravilha no Rio de Janeiro (RJ) são histórias que não alcançaram o retorno aguardado, indica Isadora. Ela lembra que o Renaissance Center foi um megaempreendimento concebido para dar nova vida ao Centro da localidade norte-americana nos anos 1970. “Embora tenha adicionado arranha-céus e instalações corporativas, a medida não conseguiu integrar-se à vida urbana existente e não resultou em uma recuperação significativa do território circundante.”

Outro caso que para Isadora “(ainda) não deu certo”, mas que tem potencial para isso, é o Porto Maravilha do Rio de Janeiro. “A operação urbana é um mecanismo bom de incentivo, mas ter todos os CEPACS (Certificados de Potencial Adicional de Construção) arrematados pela Caixa Econômica Federal foi um fiasco”, afirma. Além disso, ela assinala que as negociações eram complicadas, os títulos ficaram caros e, quando o mercado não retornou da forma esperada, não houve agilidade para mudar de rota. “O foco inicial predominante em prédios comerciais também foi um erro, criando uma área fantasma.” Contudo, ela pontua que a iniciativa tem chance de funcionar agora, 10 anos depois, com os benefícios e vantagens para empreendimentos residenciais.

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