Diferentes municípios pelo mundo estão revisando suas leis de zoneamento para permitir a edificação de imóveis de distintos tamanhos em comunidades onde antes eram autorizadas apenas residências únicas. Além de possibilitar que famílias com rendas e configurações variadas se estabeleçam em bairros com infraestrutura, a medida impede o espraiamento das localidades e preserva áreas verdes
A falta de habitação para atender à demanda de pessoas procurando um lugar para viver perto de opções de trabalho, lazer e serviços é uma realidade que cidades de diferentes portes enfrentam há muitos anos. Para se ter uma ideia do cenário, no Brasil a estimativa é que faltam 5,8 milhões de unidades. Com exceções registradas em alguns municípios e estados que estão alterando sua visão sobre desenvolvimento urbano e suas regras de uso e ocupação do solo, grande parte das localidades ainda têm que lidar com obstáculos que dificultam a construção de mais moradias. Nesse contexto, a densidade suave (gentle density) vem se popularizando como uma alternativa para elevar a quantidade e a diversidade de imóveis em comunidades unifamiliares existentes.
Essa estratégia de planejamento das cidades incentiva a edificação de casas geminadas, duplex, triplex ou de pequenos prédios em terrenos onde já há uma residência. Dessa forma, a utilização do solo é potencializada ao mesmo tempo em que mais habitações são disponibilizadas nos bairros, e isso sem modificar as suas características e ambiente, explica a diretora executiva da organização canadense sem fins lucrativos Small Housing BC, Tamara White, em entrevista para a Urban Logiq. Ela acrescenta também que essa abordagem, por ocorrer gradualmente ao longo do tempo, oportuniza que as regiões se adaptem às mudanças e evoluam sem problemas.
Especialista em desenvolvimento comunitário e planejadora de moradias populares, Tamara afirma que a densidade suave é uma forma familiar de repovoar os bairros que sofreram um declínio populacional nas últimas décadas. Entre as vantagens dessa ação, ela ressalta que contar com imóveis menores em um mesmo lote pode levar a uma diminuição de seus preços, tornando essas residências mais acessíveis para um número maior de indivíduos. Com isso, famílias com rendas e configurações distintas podem viver em áreas com mais comodidades, parques, escolas e comércios, lugares que de outra maneira não poderiam pagar.
Assim como viabiliza o acesso de mais pessoas à moradia, auxiliando a reduzir o déficit habitacional, a densidade suave traz benefícios sustentáveis, como evitar a expansão dos limites dos municípios ou construir uma única autoestrada suburbana, reforça artigo do Strong Towns. Ao estimular a criação de comunidades compactas, esse tipo de desenvolvimento contribuiria para diminuir a utilização dos carros e, consequentemente, a necessidade de edificar inúmeras vagas de estacionamento, faixas de conversão, pontos de proteção paisagísticos e obras para a retenção de águas pluviais para compensar o asfalto que seria preciso implementar para atender aos novos bairros afastados dos centros urbanos.
Ao aproximar residências, oferta de emprego e entretenimento e fomentar outros meios de deslocamento, como calçadas, ciclovias e transporte público melhorados, as emissões de gases de efeito estufa também são mitigadas, pois há opções para a realização dos trajetos sem os automóveis privados. Essa forma de planejamento colabora ainda para a conservação de ambientes naturais ao reduzir o espraiamento das localidades. Outro aspecto salientado pelo Strong Towns é que os imóveis pequenos custam menos para serem erguidos do que os arranha-céus com garagens e não possuem as mesmas exigências e complexidade estruturais e de engenharia, o que permite que mais desenvolvedores imobiliários participem da reformulação dos espaços.
Essa maneira de idealizar as cidades foi chamada de Missing Middle Housing (Casas Médias Desaparecidas) pelo arquiteto e urbanista Daniel Parolek, fundador da Opticos Design, e abrange uma multiplicidade de unidades que podem ser incorporadas a bairros com infraestrutura qualificada, mantendo suas escalas e estilos. Essa variedade de moradias possibilitaria também a interação entre gerações, uma vez que poderiam ser erguidos pequenos apartamentos adaptados para idosos no mesmo terreno em que existe uma habitação para uma família com crianças. Para a diretora executiva da Small Housing BC, a densidade suave cria um forte sentimento de comunidade entre vizinhos e resulta em uma vida urbana mais inclusiva, sustentável e acessível.
Qual o impacto da densidade suave na oferta de residências nos municípios?
Vista como uma alternativa para modificar a forma tradicional como as localidades são desenhadas nos Estados Unidos (conhecidas pelos seus subúrbios e grande terrenos com um único imóvel), a densidade suave vem sendo adotada por um número cada vez maior de cidades e estados, como aponta artigo do Strong Towns. Pesquisa elaborada pela empresa do mercado imobiliário Zillow em 17 regiões metropolitanas daquele país demonstra que autorizar a edificação de duas casas em vez de uma em 10% dos lotes unifamiliares significaria cerca de 3,3 milhões de unidades a mais no estoque habitacional – um incremento de aproximadamente 27% em comparação aos níveis atuais. Moradias essas que se somam às aproximadamente 10 milhões que devem ser erguidas até 2040.
Conforme o Strong Towns, as residências unifamiliares representam 60% do parque de imóveis dos Estados Unidos e ocupam mais de 80% das terras na maioria dos municípios. Na área da baía de São Francisco (Califórnia), um dos lugares analisados pelo estudo da Zillow, se somente um em cada dez terrenos que hoje possuem uma casa unifamiliar fosse remodelado ou liberado para construir duas unidades, o estoque de habitacional dessa localidade poderia crescer 18,4% nas próximas duas décadas, ou seja, mais 200 mil moradias, além das já previstas para esse período.
Em Los Angeles (Califórnia), se um em cada cinco lotes unifamiliares fosse permitido ter duas residências, o parque de imóveis da cidade poderia ter mais 775 mil unidades, segundo dados da Zillow. Foi apurado ainda que se a revisão das normas autorizasse a edificação de quatro moradias em vez de duas nesses mesmos terrenos, o incremento poderia chegar a mais de 2,3 milhões de habitações – um aumento de 53,4% em relação ao índice de agora.
A escassez de residências aliada à maior demanda por imóveis em grandes municípios, como os que ficam na Costa Oeste dos Estados Unidos, diminuem a acessibilidade às unidades e elevam os preços. O valor médio das casas na região Metropolitana de Los Angeles teve uma alta de 102,9% nos últimos 20 anos, revela o levantamento. Nas comunidades perto do metrô de São Francisco, por exemplo, o incremento nos preços foi de 91,8% e em Seattle (Washington) de 64,6%. Em contraponto, nas zonas metropolitanas do Sul do país, onde é mais fácil erguer novas moradias, houve um grande crescimento populacional sem que a valorização das habitações acompanhasse esse aumento na mesma medida. Em Houston (Texas), o valor das residências teve uma elevação de 10,4% e em Atlanta (Geórgia) de 11,2%, no mesmo período, de acordo com a pesquisa.
Barreiras que impedem as localidades adotarem a densidade suave
Os Estados Unidos não são o único país a ver crescer a quantidade de municípios que estão implementando políticas que ajudam a aumentar um pouco a densidade de seus bairros unifamiliares para disponibilizar mais residências. Reino Unido, Canadá e Austrália também estão investindo nessa estratégia. O estado australiano de Queensland é um exemplo de governo que aposta na densidade suave para acomodar o incremento da sua população. Para conceber as alterações no zoneamento e incentivar a construção de mais imóveis, Queensland foi em busca de mais informações sobre experiências efetuadas em nações europeias, como Dinamarca e Suécia.
O ponto em comum observado nesse estudo foi que tudo começa com uma nova maneira de abordar a questão da crise de acessibilidade às moradias, com a oferta de diversos tipos de habitações, além das casas unifamiliares e dos grandes prédios de apartamentos. Ainda conforme artigo da administração de Queensland, a criação de diferentes unidades atende às necessidades atuais dos residentes e acompanha as transformações que ocorrem ao longo da vida das pessoas. Outro fator assinalado pelo governo é que manter as comunidades unidas e oportunizar que os indivíduos envelheçam no ambiente onde sempre moraram trazem vantagens sociais, como o estabelecimento de vínculos com os vizinhos e a união de esforços para solicitar investimentos em parques, espaços culturais e centros comunitários.
No entanto, alguns obstáculos devem ser vencidos para que mais cidades autorizem esse tipo de edificação nos bairros já instituídos. Um deles é a simplificação das leis de zoneamento, enfatiza a diretora executiva da organização canadense sem fins lucrativos Small Housing BC, Tamara White, em entrevista para a Urban Logiq. Segundo ela, a crise habitacional tem levado proprietários de imóveis, funcionários municipais, conselheiros e administradores locais e estaduais a verem a densidade suave como uma solução viável para reverter esse panorama.
Entre as mudanças que precisam ser feitas nas regras, opina a diretora executiva, estão a redução dos requisitos de estacionamento, minimização de contratempos, revisão dos processos de aprovação e elevação da altura permitida das construções. Com essas modificações, Tamara acredita que o desenvolvimento urbano será agilizado. Para assegurar que mais unidades sejam erguidas, ela defende também que haja colaboração entre empreendedores de grande e pequena escala para que o objetivo de oferecer mais casas seja alcançado.
A crença que a edificação de mais residências em uma comunidade unifamiliar já estabelecida irá diminuir o valor das moradias é mais um dos desafios a serem enfrentados para que a densidade suave se dissemine, relata matéria da MassLandlords, companhia de Massachusetts (EUA) que auxilia donos de habitações a alugarem seus imóveis. Ao contrário do que pensa boa parte dos residentes desses bairros, há um aumento nos preços das unidades já existentes quando novas moradias são introduzidas, como mostra uma série de levantamentos apurados pela reportagem.
Entre os motivos para esse incremento está o acréscimo de melhorias no espaço devido à elevação da densidade, como calçadas, quarteirões mais curtos e a instalação de lojas, cafés, restaurantes e serviços, que facilitam e qualificam o dia a dia das pessoas. Outra pesquisa destacada pela MassLandlords feita na área Metropolitana de Dallas-Fort Worth (Texas) indica outros benefícios da densidade suave, como os menores custos com infraestrutura, menos trânsito já que há alternativa para caminhar ou pedalar, escolas mais eficientes e com boa relação custo-benefício e um ambiente propício para a abertura de novos negócios.
A reportagem ressalta ainda que as taxas de aluguel em bairros que reduzem as suas restrições de zoneamento, como tamanho mínimo dos lotes, o máximo das habitações e altura dos prédios, tendem a diminuir o valor das locações multifamiliares e individuais. Isso ocorre porque sem essas barreiras mais residências são construídas, elevando a disponibilidade de unidades no mercado, tornando essas comunidades e as cidades locais mais democráticos.
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