Shabbificação

A edificação de mais residências a preço de mercado e o seu efeito no deslocamento de pessoas e no valor dos imóveis para locação têm sido investigados por diferentes pesquisas. A medida é vista por grupos como uma solução para a crise habitacional e por outros como um fator para a gentrificação. Levantamentos recentes mostram queda nos preços das unidades e uma movimentação de moradores de todos os níveis de rendimento

Nos seis primeiros meses deste ano, o Brasil registrou um aumento de 9,24% no valor do aluguel, conforme o índice FipeZap de locação de residências. Esse percentual é o triplo da inflação apurada pelo Índice de Preços ao Consumidor-Amplo (IPCA), calculado pelo IBGE, que teve uma elevação de 2,87% entre janeiro e junho de 2023, segundo matéria do jornal Valor Econômico. Os dados foram identificados a partir de anúncios de imóveis na internet em 25 cidades do País.

Entre os motivos observados por especialistas para esse incremento está a alta taxa dos juros nacionais que fez o custo do crédito imobiliário subir e o acesso aos financiamentos diminuir. Com isso, há uma procura maior por unidades para o aluguel do que para a compra, aumentando a demanda e, consequentemente, os valores. Outra razão que pode estar por trás desse cenário é a escassez de oferta de habitações nos municípios. Estudo realizado antes da pandemia de coronavírus pela Fundação João Pinheiro, em parceria com o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, revelou que faltavam no Brasil mais de 5,8 milhões de moradias. A construção de novas residências a preços de mercado é uma das ações que vem sendo defendida por diversas administrações públicas e agentes ligados a esse setor para reverter essa situação.

No entanto, a iniciativa apresenta resistência de grupos que a veem como um risco para a gentrificação das comunidades, com o deslocamento de indivíduos e de famílias de menor renda para regiões com menos infraestrutura e mais distantes das oportunidades de trabalho e de lazer. Novas pesquisas têm aprofundado esse tema e trazido mais informações para embasar os debates. O levantamento “Analyzing the Impacts of Housing Production and Tenant Protections on Residential Mobility in the San Francisco Bay Area (Analisando os Impactos da Produção Habitacional e Proteções ao Inquilino sobre Mobilidade Residencial na Área da Baía de São Francisco)”, publicado em 2022, verificou que a edificação de novas unidades a taxas de mercado em um bairro resultou na mudança de mais pessoas em todos os níveis socioeconômicos nessa localidade da Califórnia (EUA) – que deve ter um déficit de 1,5 milhão de imóveis até 2025.

Os profissionais do Institute of Governmental Studies e do The Urban Displacement Project, ambos departamentos de estudos da Universidade da Califórnia em Berkeley, e do Changing Cities Research Lab, da Universidade de Stanford, descobriram também que ocorre um ligeiro crescimento no número de indivíduos de todos os padrões de renda entrando e saindo de uma comunidade quando mais moradias a preço de mercado são erguidas. Eles avaliaram ainda que o deslocamento de grupos socioeconômicos muito baixos a moderados não é tão elevado como normalmente se imagina, ficando entre 0,5% e 2% acima dos parâmetros usuais.

Apesar da consciência sobre a crise habitacional na Baía de São Francisco, panorama percebido por 84% dos seus residentes, a maioria dos moradores desse lugar – incluindo inquilinos – é contra mais imóveis em seus bairros. Porém, não se importam que isso aconteça em outras partes da cidade. Essa realidade foi investigada pela economista e pesquisadora do US Census Bureau, no Center for Economic Studies, Kate Pennington, no levantamento “Does Building New Housing Cause Displacement?: The Supply and Demand Effects of Construction in San Francisco (A Construção de Novas Habitações Causa Deslocamento? Os Efeitos da Oferta e da Demanda da Construção em São Francisco)”, divulgado em 2021.

Essa postura contribui para a redução na disponibilidade de unidades e no incremento dos valores médios dos aluguéis, salienta Kate. A locação de um apartamento de um dormitório no município teve, por exemplo, uma alta de 97%, entre 2003 e 2017, passando de 1.307 dólares para 2.573, como destaca reportagem do Somos Cidade. A economista apurou também que o preço do aluguel tem uma queda de cerca de 1,2% a 2,3% para pessoas que vivem a 500 metros de um novo empreendimento e que o deslocamento de indivíduos para outros lugares diminui, em média, em 17,14% para quem reside a 500 metros de um prédio edificado recentemente. A partir das informações obtidas, Kate assinala que a construção de moradias a valores de mercado beneficia inquilinos, reduzindo os preços dos imóveis, os despejos e os receios de mudança para áreas mais pobres das localidades.

Nesse contexto, os estudos sobre filtragem também vêm atraindo mais interesse e pesquisas. Os levantamentos atuais sobre o assunto se aprofundam sobre a movimentação que é desencadeada em um bairro quando um complexo a preço de mercado é desenvolvido, atraindo um público de alta renda. Com a saída desses residentes para o novo endereço, suas casas ficam mais em conta para indivíduos com rendimentos menores, levando a essa rotatividade entre as unidades, gerando um efeito cascata. Em conjunto com essa alteração, há o envelhecimento das propriedades que é outra das causas que faz com que as pessoas troquem suas moradias por outras mais modernas, abrindo espaço para cidadãos de distintas faixas de renda se mudarem.

Combinação de estratégias é o caminho para a redução da crise habitacional

Além da construção de novos imóveis para aumentar a disponibilidade de unidades nas cidades, outras medidas vêm sendo implementadas pelas gestões públicas para enfrentar o déficit de residências e garantir a maior acessibilidade à moradia e diminuir o valor das locações. A flexibilização das normas de zoneamento é uma dessas soluções que tem sido utilizada pelos municípios para conter a elevação dos aluguéis. Estudo elaborado pela organização sem fins lucrativos Pew Charitable Trusts, que atua com a produção de conhecimento para promover o desenvolvimento de localidades, reforça que o valor das locações sobe quando mais pessoas necessitam de habitação em relação à quantidade de propriedades ofertadas. De acordo com a entidade, políticas restritivas de zoneamento tornam mais difícil e cara a edificação de novos imóveis e incrementam o preço dos aluguéis.

A organização pesquisou os reflexos da flexibilização das regras de zoneamento em Minneapolis (Minnesota), Nova Rochelle (Nova York), Portland (Oregon) e Tysons Corner (Virginia), cidades que modificaram suas normas para possibilitar que mais residências fossem erguidas. O levantamento identificou que o acréscimo de unidades, a maioria delas a taxas de mercado, amenizou o aumento dos valores das locações tanto na proximidade do empreendimento como na região, reduzindo a concorrência entre inquilinos por moradia disponível e, devido a isso, as pressões de deslocamento.

Entre fevereiro de 2017 e fevereiro 2023, os preços dos aluguéis nesses quatro municípios tiveram uma elevação de 1% em Minneapolis, 2% em Portland, 4% em Tysons Corner e de 7% em Nova Rochelle. No mesmo período, a média de incremento nos Estados Unidos foi de 31%. Mesmo sendo lugares com alta demanda, as locações não apresentaram um crescimento acentuado nos reajustes. O motivo, para a Pew Charitable Trusts, está relacionado ao fato de leis menos restritivas de zoneamento possibilitarem que mais habitações fossem adicionadas ao estoque de maneira ágil, o que impacta positivamente no valor dos aluguéis. Ainda conforme o estudo da entidade, localidades nas mesmas áreas metropolitanas que não permitiram a construção de tantos imóveis tiveram uma alta mais rápida dos preços das locações.

A economista e pesquisadora do US Census Bureau, no Center for Economic Studies, Kate Pennington, acrescenta que a edificação de mais residências a taxas de mercado e de unidades com valores acessíveis são ações complementares que devem ser incentivadas pelos gestores das cidades para diminuir os reflexos da escassez de moradias e os elevados preços cobrados por elas. Já os profissionais do Institute of Governmental Studies, do The Urban Displacement Project e do Changing Cities Research Lab apontam em seu estudo que para enfrentar a crise de acessibilidade à habitação e reduzir os deslocamentos é necessário adotar iniciativas mais ousadas, como residências sociais: oferta de imóveis de locação ou para venda a preços acessíveis para pessoas com rendas moderadas e baixas, que seriam geridos por uma entidade pública ou sem fins lucrativos. A necessidade de investimentos para o segmento também foi assinalada no trabalho.

Nova York quer erguer 100 mil moradias acabando com as restrições de zoneamento

Com mais da metade dos habitantes de Nova York sobrecarregados com seus aluguéis – o preço médio em Manhattan, em agosto deste ano, foi de 4,4 mil dólares, aproximadamente 26% acima dos níveis pré-pandêmicos –, o prefeito do município, Eric Adams, defende a eliminação das regras de zoneamento que dificultam a construção de mais unidades como uma das estratégias para mitigar essa situação. Chamada de “Cidade do Sim”, a proposta apresentada em setembro deste ano pela administração pública prevê a edificação de 100 mil novas residências nos próximos 15 anos, detalha matéria da Bloomberg. A medida poderia, segundo a publicação, colaborar para reequilibrar a balança entre imóveis e empregos na localidade – na última década, Nova York criou 800 mil vagas de trabalho, mas somente em torno de 200 mil moradias.

As alterações indicadas por Adams podem levar novos desenvolvimentos imobiliários a quase todas as regiões da Big Apple e abrangem, de acordo com a reportagem do The New York Times, a permissão para a erguer prédios de até cinco andares em cima de lojas de comércio e de serviços, como lavanderias, instaladas em edifícios de só um andar e que ficam em bairros fora de Manhattan. Esse tipo de empreendimento não tem sido efetuado devido às exigências das leis que estabelecem limites de altura e obrigam os complexos residenciais a contarem com pátios e determinados tipos de telhado. O jornal relata ainda que as normas que limitam que mais imóveis sejam construídos em torno de estações de transporte coletivo seriam retiradas.

Facilitar para os proprietários de imóveis unifamiliares ou bifamiliares a transformação de seus porões, sótãos e garagens em apartamentos para aluguel ou para receber familiares é mais uma das sugestões do projeto da prefeitura. O fim de requisitos de estacionamento em algumas edificações, a agilização para modificar escritórios e torná-los apartamentos e a permissão para erguer prédios maiores em Manhattan e em outras áreas com densidade mais elevada, desde que fossem incluídas casas a preços acessíveis, são outras soluções do “Cidade do Sim”, citadas pelo The New York Times.

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