Com mais de 50 anos de experiência no desenvolvimento de municípios, o urbanista francês Alain Bertaud é hoje uma das vozes mais questionadoras da forma como as localidades são idealizadas. Em seu livro “Ordem sem Design: Como os Mercados moldam as Cidades”, ele defende o planejamento urbano baseado em indicadores, a acessibilidade à moradia e à mobilidade e a observação das demandas do mercado para a concepção de lugares bem-sucedidos e dinâmicos
Que fatores dificultam o crescimento dos municípios, agravam a falta de habitações e fazem com que muitas pessoas acabem se instalando em regiões onde elas não querem viver? Para o urbanista francês, escritor e pesquisador sênior do Marron Institute of Urban Management e do Stern Urbanization Project, ambos da Universidade de Nova York (NYU), Alain Bertaud, o excesso de regras e restrições imposto pelo planejamento urbano tem um grande impacto sobre o cenário atual das localidades. Em sua percepção, as cidades funcionam melhor e conseguem evoluir naturalmente quando estão livres das amarras de normas como as de uso do solo e se deixam moldar pelas forças do mercado e da movimentação espontânea da população.
Profundo conhecedor do assunto, Bertaud possui mais de cinco décadas de experiência na área de planejamento dos municípios, tendo atuado por 20 anos como urbanista chefe do Banco Mundial, onde aconselhou governos locais e nacionais da China, Europa, Índia, México, Rússia e África do Sul. Além disso, foi consultor em diversas partes do mundo, como Nova York (EUA), Paris (França), Bangkok (Tailândia) e Tlemcen (Argélia). Em 2018, o urbanista lançou a obra “Ordem sem Design: Como os Mercados Moldam as Cidades”, publicação que foi traduzida para o português no começo deste ano pela editora Bookman e contou com o apoio da plataforma Caos Planejado, do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e do Instituto Cidades Responsivas.
No livro, o escritor traz um novo olhar para o desenvolvimento dos municípios e valoriza o mercado como um elemento fundamental para a eficiência das localidades. Em outubro, ele esteve mais uma vez no Brasil para falar sobre distintos pontos abordados em sua mais recente publicação em eventos como o Complan – Seminário sobre Comunidades Planejadas, Loteamentos e Desenvolvimento Urbano, realizado em Atibaia (SP), e em reunião que tratou sobre o papel dos planos diretores, ocorrida em Porto Alegre (RS). “É a obra mais importante de planejamento urbano lançada no Brasil desde ‘Morte e Vida de Grandes Cidades’, de Jane Jacobs (de 1961)”, acrescenta o coordenador do Somos Cidade, empresário e fundador e presidente de honra da Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil (Adit), Felipe Cavalcante.
Conforme ele, o livro deveria ser obrigatório em todas as faculdades de urbanismo e em escolas de gestão pública, assim como para aqueles que trabalham no mercado imobiliário. “Bertaud é conhecido por suas ideias inovadoras sobre planejamento urbano baseado em evidências, enfatizando a relevância de uma abordagem pragmática e orientada pelos mercados”, detalha. A publicação também aponta falhas do modelo de crescimento dos municípios que, segundo o coordenador do Somos Cidade, ignora a realidade e o interesse dos indivíduos, a dinâmica das localidades e as leis de mercado. “Mais um gol de placa do (arquiteto e urbanista e fundador do Caos Planejado) Anthony Ling, grande difusor da obra e visão do Alain Bertaud no Brasil”, complementa.
Em entrevista para o Caos Planejado, Bertaud explicou que “Ordem sem Design” significa que os municípios são autogerados por princípios simples que regulam as relações entre vizinhos próximos, porém têm um conceito geral norteador concebido por um grupo de designers ou por um profissional. A estrutura espacial das grandes localidades é composta, de acordo com ele, pela combinação do desenho estabelecido de cima para baixo (“top down”) pelas administrações públicas e gestores e a ordem espontânea gerada pelos mercados. O urbanista francês afirmou ainda que o objetivo da sua obra é mostrar como o design “top down” pode ser reduzido ao mínimo, dando mais espaço para a ordem natural de expansão das cidades.
Um ponto central nas críticas de Bertaud às políticas urbanas contemporâneas e às soluções propostas por elas para qualificar os lugares, como, por exemplo, o design compacto, a redução da utilização de carros, o combate ao espraiamento e o controle da densidade feito por meio do zoneamento, está relacionado com a generalização dessas medidas para todas as situações e municípios, salienta o coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades e doutor em Direito Econômico e Financeiro, Victor Carvalho Pinto, em artigo para o Insper. Ele esclarece que a argumentação principal do urbanista francês está focada no entendimento de que as localidades são, antes de tudo, mercados de trabalho e que, por isso, cabe à gestão pública definir as regras que possibilitarão que os indivíduos alcancem o maior número de empregos através da oferta de residências acessíveis e de mobilidade eficiente.
O papel dos planejadores urbanos e dos dados no desenvolvimento das cidades
Apesar de ser um questionador da forma como os municípios são pensados e de reforçar a relevância de considerar como os mercados agem sobre o ambiente urbano, Alain Bertaud não apoia a ausência de planejamento ou do “design” em todas as ocasiões, relata Anthony Ling no texto de abertura da versão brasileira do livro “Ordem sem Design”. Isso porque o mercado não consegue resolver todos os problemas urbanos que se apresentam. Dessa maneira, mesmo com o crescimento espontâneo das localidades, é preciso de uma infraestrutura para a atender às transformações pelas quais passam as cidades, ponderou Bertaud em entrevista para a Fundação Startup Societies.
Ele analisou ser essencial o equilíbrio entre as responsabilidades de governos municipais e do mercado, a delimitação dos espaços públicos e privados e que, nesse contexto, o papel dos planejadores é entender como as localidades funcionam para então determinar as iniciativas prioritárias a serem efetuadas. Para isso, Bertaud frisou a necessidade de indicadores para medir a eficácia das estratégias urbanas e poder reajustá-las periodicamente. Um exemplo dado pelo especialista está ligado ao tempo que os cidadãos gastam em suas viagens diárias. Baseado em dados sobre como as pessoas fazem seus deslocamentos e em que regiões elas são melhores ou piores atendidas pelos serviços de transporte coletivo, é possível rever políticas e oferecer uma experiência mais qualificada nas cidades. “Tudo pode ser quantificado”, declarou ele durante a entrevista.
Entre os aspectos ressaltados em sua obra, Bertaud observou que os planejadores precisam aprender mais sobre conceitos econômicos para compreender com mais profundidade como os municípios operam e sugeriu que os economistas participem mais ativamente da administração pública, destaca o coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades, Victor Carvalho Pinto, em artigo para o Insper. Bertaud recomendou ainda, ao explorar a dinâmica entre o planejamento centralizado na formação das localidades e o mercado, que o desenvolvimento urbano deveria permitir a flexibilidade no uso do solo para evitar a decadência econômica das áreas.
O especialista agregou que para entender as mudanças pelas quais os indivíduos estão passando é necessário ter indicadores precisos para saber, entre outras informações, o número de imóveis construídos todos os anos em uma cidade, onde essas unidades foram edificadas, quanto custam e o quão perto estão das opções de trabalho. Ele contou, em entrevista para a série de webinares “Urban Manifest”, que é preciso possibilitar a alteração do uso do solo para refletir as demandas das pessoas, como revela matéria do Somos Cidade.
O planejamento urbano dos municípios na percepção de Bertaud, conforme descreve o coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades, deveria ser voltado principalmente para a definição da infraestrutura de mobilidade, a gestão de áreas públicas e a proteção de paisagens naturais e do patrimônio histórico em vez de regular os detalhes o que pode ou não pode ser erguido em terrenos privados. No lugar de planos diretores estáticos, Bertaud propôs uma administração urbana mais dinâmica e que responda às necessidades da população a partir de dados confiáveis. O autor de “Ordem sem Design” defendeu também que as novas regulamentações sejam testadas em pontos específicos antes de serem aplicadas em toda a localidade e chama a atenção para os desafios que o envelhecimento dos indivíduos e a queda na quantidade de moradores em muitos ambientes trarão.
Cidades como mercados de trabalho: a importância da mobilidade e da habitação
Que motivos levam as pessoas a se mudarem para um determinado município? O urbanista francês Alain Bertaud acredita que são as vantagens que essas localidades oferecem, o que as diferencia das demais, itens que podem ser as belezas naturais do espaço, o clima ou as escolas de ponta. Mas, o que mais atrai os indivíduos são a acessibilidade às residências e ao transporte coletivo, afirmou o escritor em entrevista para a Fundação Startup Societies. E, em razão disso, as gestões das cidades devem centrar suas forças de planejamento urbano na criação de mecanismos que assegurem esses elementos.
Bertaud pontuou ainda que quanto maior for o mercado de trabalho de um município, mais eficiente ele é, como recorda o coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades, Victor Carvalho Pinto. Em seu artigo para o Inser, Pinto enfatiza que o autor critica em seu livro “Ordem sem Design” as propostas de descentralização da urbanização através do planejamento regional e de estabelecer mercados de empregos por bairro. Para Bertaud, a administração do crescimento urbano deve ser feita por meio de uma política de mobilidade, que possibilite que toda a população se beneficie de um grande mercado de trabalho. Como os deslocamentos estarão sempre presente nas localidades, o especialista vê na qualificação do transporte público o caminho para tornar o acesso ao emprego viável sem que isso traga reflexos no aumento do uso dos automóveis particulares.
Bertaud argumentou na sua obra, segundo Pinto, que o espraiamento das cidades pode ser evitado por meio do fim dos subsídios à utilização dos veículos individuais e não pelo zoneamento e que os carros devem ser taxados para arcar com os custos da infraestrutura viária e dos seus impactos ambientais. Panorama que pode ser modificado com a cobrança de tarifas de congestionamentos e de preços dinâmicos pelos estacionamentos nas ruas, por exemplo. A conexão entre mobilidade e moradia é outro ponto fundamental abordado pelo urbanista francês, que assinala a necessidade de oferecer imóveis acessíveis para as pessoas de baixa renda. O escritor alertou que a falta de elasticidade pode resultar em preços de unidades mais altos ou informalidade.
Entre as medidas indicadas por Bertaud para garantir o acesso às habitações está a de proporcionar liberdade para que o mercado atenda às demandas específicas dos consumidores, eliminação de padrões mínimos exigidos para as residências e da permissão para que sejam edificadas moradias de vários tipos e com maior possibilidade de adaptação. No entanto, para que isso seja possível, ele frisa em seu livro que as regulamentações precisam ser revisadas e atualizadas de maneira recorrente e baseadas em indicadores. Já em relação aos investimentos públicos, o escritor detalha que eles deveriam ser destinados para a urbanização de favelas e vouchers de habitação, oportunizando que o beneficiário escolha onde viver em vez de construir conjuntos residenciais que impõem uma estratégia única de atendimento a todos.
Tanto o coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades como o fundador do Caos Planejado, Anthony Ling, apontam que, apesar de nunca ter trabalhado no Brasil, as questões abordadas por Bertaud em sua obra também fazem parte da realidade dos municípios do País. Entre elas estão as normas urbanísticas antigas e utópicas, sobrepostas e sem monitoramento de resultados, que impedem que o mercado responda às necessidades das pessoas nas regiões com infraestrutura e que os usos dos imóveis sejam alterados de acordo com as novas demandas, planos diretores desconectados da administração pública e ausência de indicadores e desconsideração dos efeitos econômicos na tomada de decisões.
“Em tempos de importância da defesa da ciência e da proposição de políticas públicas baseadas na análise de dados e evidências, ‘Ordem sem Design’ surge como um farol aos entusiastas que buscam se aprofundar nesta abordagem”, escreveu Ling na abertura da edição brasileira do livro de Bertaud. Ele complementa que a obra deve ser lida como uma relevante “quebra de paradigma e um empurrão convincente para que urbanistas utilizem das ferramentas da economia urbana no planejamento e gestão das nossas cidades”.
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