Em livro e série de rádio lançados neste ano, o designer inglês Thomas Heatherwick acrescenta mais uma crítica à visão de Le Corbusier: a criação de uma “epidemia” de edifícios enfadonhos que priorizam a função em vez da complexidade visual. O designer quer trazer a emoção de volta às construções e melhorar os espaços urbanos
O movimento modernista continua a impactar a maneira como as pessoas ocupam e circulam pelas localidades atualmente, assim como o seu bem-estar. Apesar do seu auge ter ocorrido entre os anos 1930 e 1960, os princípios difundidos por essa escola, que teve no arquiteto e urbanista franco-suíço Le Corbusier um dos seus nomes mais importantes, ainda influenciam o desenho e as legislações de municípios e trazem dificuldades para o dia a dia de seus habitantes. Cidades voltadas para os carros e a velocidade, separadas por suas atividades e padronizadas são alguns dos problemas apontados pelos críticos do modernismo. A essa lista, o designer inglês Thomas Heatherwick incluiu mais um: o incentivo à edificação de prédios tediosos que resultam em “ambientes urbanos desumanos e sem alma”.
A frase que vem criando polêmica entre defensores e opositores dos conceitos disseminados por Le Corbusier foi dita pelo designer no episódio “O culto à arquitetura moderna”, da série “Construindo alma com Thomas Heatherwick” apresentada pelo profissional na rádio BBC 4, de Londres (Inglaterra), em outubro deste ano, como destaca matéria da revista Dezeen. No programa, ele questiona por que os edifícios modernos que estão presentes na maioria das localidades do mundo parecem tão monótonos e salienta que existe hoje uma “epidemia” de prédios enfadonhos. Para ele, a responsabilidade por essa “era de tédio” é das contribuições de Le Corbusier ao modernismo, como a defesa à austeridade dos empreendimentos e à retirada da parte que “criava a emoção” nas construções.
No episódio, o designer argumenta também que um “culto ao modernismo” tomou conta da arquitetura no século XX, com um foco acentuado na forma que segue a função em detrimento da complexidade visual. As opiniões de Heatherwick divulgadas na série da BBC são ampliadas no livro “Humanize: A Maker’s Guide to Designing Our Cities (Humanize: Um Guia do Criador para Desenhar nossas Cidades)”, publicado pelo profissional em 2023. Na obra, ele analisa que os edifícios chatos afetam a saúde mental dos indivíduos, agravam conflitos e contribuem para piorar o cenário de crise climática, conforme reportagem do jornal The Guardian.
Ele defende que, por não serem prédios apreciados pela população, muitos desses complexos modernistas são demolidos rapidamente e substituídos por versões mais novas, porém não menos “aborrecidas”. Esse processo acaba emitindo uma grande quantidade de gases de efeito estufa, trazendo prejuízos ao meio ambiente e desperdício de recursos materiais e financeiros. O designer enfatiza na entrevista para o The Guardian que os edifícios deveriam ter uma vida muito superior à das construções modernistas, que é, em média, de 40 anos, de acordo com ele. Heatherwick explica ainda que os empreendimentos tediosos são aqueles muito planos, brilhantes, simples, retos e anônimos. Em seu livro, ele afirma que é necessário erguer prédios que “alimentem nossos sentidos”.
Definido como provocativo e divertido pelo The Guardian, “Humanize” reúne inúmeros exemplos de paisagens urbanas esquecíveis espalhadas pelo globo, da Argentina à Rússia, e mostra os projetos considerados pelo profissional como o contraponto aos edifícios modernistas. Entre eles estão a Casa Milà, concebida pelo arquiteto Antoni Gaudí, em Barcelona (Espanha), e o Panteão de Roma (Itália). Mesmo com as críticas feitas ao movimento modernista e especificamente a Le Corbusier, Heatherwick admite que admira alguns dos complexos do arquiteto franco-suíço. Segundo o The Guardian, é a onda de modernismo medíocre que veio depois dele que deprime o designer – as “florestas de torres uniformes de aço e vidro que podem ser encontradas em quase toda parte”.
O entusiasmo com as construções antigas, no entanto, não é motivo para que Heatherwick apoie o retorno a uma arquitetura clássica ou a cópias, complementa artigo da revista Curbed. O desejo do profissional é de que sejam introduzidos novos tipos de ornamentação e de elementos aos empreendimentos. O designer frisa que um “prédio deve ser capaz de prender sua atenção pelo tempo que for necessário para passar por ele”, ou seja deve ser interessante para as pessoas a partir de diferentes pontos de vista: a um quarteirão de distância, do outro lado da rua e em frente à porta de entrada, descreve o texto da Curbed. Dessa forma, mais detalhes do projeto vão sendo revelados e chamam a atenção dos pedestres e qualificam as regiões.
Favorável aos edifícios desenvolvidos em escala humana, o profissional é responsável por diversos complexos que não seguem esse parâmetro e que acabam sendo muito parecidos com os empreendimentos modernistas tão atacados por ele, como observa o The Guardian e a Curbed. À frente do Heatherwick Studio, o designer elaborou prédios como as sedes do Google no Vale do Silício (EUA) e em King’s Cross, em Londres, essa projetada em parceria com o escritório de arquitetura Bjarke Ingels Group (BIG), o parque Little Island e a estrutura escultural Vessel, no complexo imobiliário Hudson Yards, ambos em Nova York.
O desafio da mobilidade nos municípios inspirados na visão de Le Corbusier
Além dos questionamentos que faz às construções modernistas em seu programa na Rádio BBC e no livro, Thomas Heatherwick quer estudar em parceria com pesquisadores os efeitos dos edifícios que seguem os conceitos desse movimento e de outros na saúde dos cidadãos, adianta o The Guardian. Para levantar dados para essa investigação, o profissional lançou ainda uma campanha de humanização com prazo de dez anos. Sua proposta é que os residentes enviem fotografias dos empreendimentos mais monótonos de seus bairros para serem avaliados por um software que mede a complexidade visual de design a partir da perspectiva do pedestre, uma ferramenta chamada de “tediômetro” (tradução livre da palavra boringometer).
Os reflexos no bem-estar das pessoas não se limitam aos prédios que as cercam ou ao espaço urbano. As localidades influenciadas pelas ideias modernistas têm na mobilidade uma de suas principais dificuldades a serem resolvidas. Pensadas para o rápido deslocamento de veículos, as cidades que seguem esses princípios – como Brasília, um dos principais exemplos da aplicação das propostas desse movimento – colocam os automóveis no centro das decisões de planejamento, tornando mais difícil a locomoção dos indivíduos a pé, de bicicleta ou com o transporte público. Com o crescimento populacional e o espraiamento dos municípios, muitos lugares priorizaram a implementação de largas pistas para que os carros pudessem andar com velocidade entre as longas distâncias que separam as várias centralidades urbanas.
A frase “uma cidade construída para a velocidade é uma cidade construída para o sucesso” é atribuída a Le Corbusier e resume um dos processos sociais mais relevantes vividos pelas localidades do século XX, pondera o doutorando em Sociologia Urbana da Universidade Complutense de Madri, José Ariza de la Cruz, em artigo para a plataforma The Conversation. Isso porque a mobilidade é, conforme Cruz, um aspecto central do tecido urbano, que impacta não só na área onde as pessoas decidem morar e no tempo que levam para chegar aos seus destinos, mas também nas interações sociais, que se multiplicam nos contatos diários, porém são mais efêmeras – repercutindo em mais esse ponto da vida dos indivíduos.
O artigo recorda que, para mais estradas serem instaladas, muitos habitantes foram retirados de suas casas e comunidades foram cortadas em duas, afetando o convívio social e os negócios. Um exemplo dado por Cruz, e que se aplica ao Brasil, são as autopistas dos Estados Unidos que ligam os subúrbios e os centros. De acordo com o doutorando, naquele país, a maioria dos bairros atingidos era composta por residentes negros, o que acentuou as desigualdades. Essa maneira de ver os municípios e de privilegiar os veículos e a velocidade vêm sendo reavaliada no século XXI, especialmente devido as suas consequências para as mudanças climáticas e para recuperar o senso de comunidade, argumenta Cruz.
Cidade idealizada por Le Corbusier era padronizada e dividida por funções
A separação das localidades por atividades, afastando moradia, trabalho, serviços, comércio, educação e lazer, é mais um fator que prejudica a circulação dos indivíduos entre os bairros de um município e a diversidade e tira o dinamismo dos ambientes. A busca excessiva de Le Corbusier por ordem traz problemas até hoje para a rotina das pessoas, que permanecem dependentes de seus automóveis para realizarem muitos de seus trajetos e gastam mais tempo e dinheiro para concretizar suas tarefas diárias.
As propostas do arquiteto franco-suíço de como uma localidade deveria ser e funcionar foram traduzidas em sua Cidade Radiante (Ville Radieuse), um projeto que nunca saiu do papel, apesar de seus conceitos terem sido adotados com entusiasmo pelo planejamento modernista e seus admiradores, como relata reportagem do Somos Cidade. Entre as alternativas para reverter os efeitos causados por essa forma de desenhar os municípios estão a modificação nas regulamentações de zoneamento, permitindo o uso misto em vez da divisão rígida por função, e o estímulo às fachadas ativas em contraponto ao pilotis livres e recuos dos complexos modernistas que deixam os edifícios afastados das ruas e da vida urbana. Investimentos no aprimoramento dos sistemas de transporte coletivo e das calçadas e ciclovias, para fomentar as caminhadas e a utilização de bicicletas, e a qualificação das conexões entre os distintos modais são outras soluções que podem melhorar a experiência nos espaços urbanos.
Com um layout geométrico e simétrico, a Ville Radieuse foi mencionada pela primeira vez em1924 e teve todos os seus detalhes apresentados em livro publicado em 1933 e que levava o mesmo nome do empreendimento concebido pelo arquiteto franco-suíço. Os desenhos originais da Cidade Radiante podem ser vistos no site da Fundação Le Corbusier. A ideia era que a obra fosse uma referência para que localidades europeias destruídas pela primeira guerra mundial pudessem aplicar os seus conceitos e reconstruir suas áreas. Assim, os municípios contariam com prédios idênticos e com alta densidade, erguidos em amplas regiões verdes e organizados em uma grade cartesiana.
A forma perfeita almejada pelo arquiteto era alcançada através da repetição do design elaborado por ele, constituindo um padrão que burocratizava a vida em comunidade. Até mesmo a parte interna dos edifícios – que teriam fachadas lisas, envidraçadas e sem sacadas ou galerias – foi planejada por ele, que descreveu como os apartamentos residenciais deveriam ser uniformizados, com unidades com salas iguais fossem os imóveis para duas ou quatro pessoas viverem e cozinhas do mesmo tamanho em um estúdio ou em uma habitação para uma família com quatro ou mais indivíduos.
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