Shabbificação

Adensar regiões perto de estações de transporte público e com uma diversidade de serviços e comércio é um dos caminhos apontados para aumentar a oferta de habitação e evitar o espraiamento das cidades. No entanto, a medida encontra resistência de residentes de comunidades com essas características, que temem a mudança no seu modo de vida e buscam no tombamento a saída para impedir novos empreendimentos, como está ocorrendo atualmente em Pinheiros, na capital paulista

Um conjunto com mais de 600 imóveis no bairro nobre de Pinheiros, na zona Oeste de São Paulo, foi incluído em um processo de tombamento que está em análise, desde outubro deste ano, pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da localidade (Conpresp). Enquanto o estudo que irá determinar se as edificações guardam particularidades relevantes do passado da cidade é elaborado, ficam provisoriamente proibidas quaisquer intervenções nessas casas, prédios e lugares, paralisando as obras que estavam previstas para serem executadas nessa parte da capital paulista, como ressalta matéria da Folha de São Paulo.

As construções, que se espalham por mais de 40 quadras, estão em uma área que vem se modificando rapidamente através da conclusão de prédios altos, que são permitidos pelas regras do Plano Diretor. Pelo zoneamento do município, edifícios maiores podem ser erguidos nos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana, ou seja, em pontos próximos a estações de metrô ou de corredores de ônibus, como é o caso de Pinheiros, que conta hoje com três estações de metrô, várias ciclovias e corredores de ônibus implementados em distintas avenidas. Entre as propriedades listadas para serem tombadas estão sobrados, vilas inteiras, igrejas, a praça Benedito Calixto e a escadaria das Bailarinas (com obra do artista Kobra) e a escadaria em homenagem a Marielle Franco, por exemplo.

O levantamento do Conpresp irá avaliar os reflexos do tombamento definitivo dessas construções no desenvolvimento da região, ponderando também a questão da preservação do patrimônio histórico e cultural. Movimento semelhante, recorda reportagem do O Globo, foi realizado no bairro Paraíso, na zona Sul de São Paulo, que desde maio tem uma série de moradias protegidas de demolições e de novas edificações até que o pedido de tombamento dessas unidades seja averiguado pelo Conselho.

A conjuntura em relação aos imóveis em Pinheiros trouxe, segundo matéria do Brazil Journal, insegurança jurídica para o setor imobiliário e futuros investimentos e pode significar o comprometimento de, pelo menos, R$ 1 bilhão de valor geral de vendas (VGV), tomando por base todos os projetos que podem ser congelados se o processo de tombamento for aprovado. A reportagem assinala ainda que o ciclo de desenvolvimento de um complexo considera um prazo de até 12 meses para a sua liberação. Após esse período, o empreendimento já começa a sofrer impactos.

A solicitação para a preservação dos sobrados, vilas e outras estruturas foi efetuada por associações de bairro, que entre os motivos para a ação citam a importância histórica do local onde as construções se encontram e a preocupação com a transformação da comunidade, relata a Folha de São Paulo. Situações como a vivida no momento em Pinheiros geram conflitos entre residentes que se engajam na manutenção de características e identidade dos seus bairros e incorporadores que procuram áreas com infraestrutura qualificada para erguer mais edifícios junto a opções de transporte coletivo, serviços e alternativas de lazer, adensando os bairros, aprimorando a mobilidade e evitando a ampliação da capital paulista para longe dos centros urbanos.

Para o coordenador do Somos Cidade, empresário e fundador e presidente de honra da Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil (Adit), Felipe Cavalcante, muitas pessoas usam equivocadamente o procedimento de tombamento e de preservação ambiental para defender a manutenção do seu modo de vida e para tentar paralisar o crescimento dos municípios e a expansão urbana. “Esse mecanismo não deve ser desvirtuado para proteger os interesses de privilegiados, que não querem que mais indivíduos vivam em espaços com estrutura eficiente”, enfatiza. Ele argumenta também que se essas habitações em Pinheiros tivessem valor cultural ou histórico, elas já teriam sido tombadas pelo governo da localidade. O empresário salienta ainda que essa estratégia não é algo novo, ela é adotada em diferentes países pelos grupos de Nimby (do inglês, Não No Meu Jardim).

“Os integrantes de associações de moradores são, muitas vezes, pessoas de classe média e alta que têm contatos com a imprensa, o Ministério Público e a Justiça e se mobilizam para lutar contra o adensamento das cidades. Eles tentam barrar novos complexos na Justiça ou via Plano Diretor e, como não conseguiram, agora estão tentando via tombamento (em Pinheiros)”, descreve Cavalcante. As construtoras e incorporadoras afetadas pela iniciativa estão se organizando para impedir o tombamento das mais de 600 propriedades, adianta o Brazil Journal. Uma dessas empresas, inclusive, contratou o escritório Bicalho Navarro Advogados para tratar do assunto.

“Muitas associações (de moradores) não gostaram do Plano Diretor e do fato de Pinheiros estar se verticalizando, e estão utilizando o tombamento para interferir na decisão de uso e ocupação do solo”, declarou ao Brazil Journal o sócio da Bicalho Navarro Advogados, Rodrigo Passaretti, que é especializado em direito Ambiental e Urbanístico. Companhias e cidadãos que tenham relação ou interesse nas regiões que estão sendo apreciadas pelo Conpresp podem se manifestar no processo para apresentar razões contra e a favor da proteção dos imóveis, acrescenta O Globo.

O papel dos Nimbys nas medidas que tentam impedir a edificação de novos prédios

Bastante atuantes nos Estados Unidos, os grupos de Nimby contam com uma forma de atuação que se assemelha a das associações de moradores. O termo, que é empregado para definir um conjunto de pessoas que se opõe à construção de mais empreendimentos residenciais em suas áreas, foi utilizado em documentação encaminhada por uma das empresas atingidas pelo pedido de proteção do bairro Paraíso, conforme a reportagem do O Globo, que havia comprado uma das vilas presentes na comunidade (Vila Liscio) antes dela ter sido anexada ao processo de tombamento de mais 300 unidades na localidade.
Em documentos enviados, entre agosto e setembro deste ano, para o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da capital paulista (Conpresp) e obtidos pelo jornal, a companhia mostra pareceres de arquitetos e frisa que o procedimento de proteção tem um “claro propósito de impedir a política de desenvolvimento proposta para a região, intentado por interessados que buscam a defesa de interesses egoísticos tipicamente caracterizados como Nimby”. Em nota, a empresa diz que comprou as casas em 2022 “totalmente livres e sem qualquer impedimento” e que, assim que teve início o estudo do Conpresp, suspendeu as obras no lugar. Destaca também que não há motivo para o tombamento das habitações.

Entre os fatores que têm ajudado na repercussão das ações dos Nimbys e resultado no atraso ou cancelamento de novos complexos residenciais está a falta de conhecimento da população em geral sobre as reuniões – as audiências públicas – que debatem o futuro dos bairros e o baixo envolvimento dos moradores que não são afetados diretamente pelos empreendimentos em discussão, como indica matéria do Somos Cidade. A Califórnia (EUA), que enfrenta uma grave escassez de moradias, é uma das muitas regiões pelo mundo que precisam lidar com a forte articulação desses grupos contra as alterações nas leis de zoneamento e a edificação de mais imóveis em suas comunidades.

Isso começou a mudar na localidade californiana de São Francisco quando o desenvolvedor de software, Robert Fruchtman, passou a documentar os encontros sobre os rumos dos municípios e transmiti-los ao vivo em seu perfil no X (antigo Twitter). Voluntário de um YIMBY (Sim no Meu Quintal – grupos antagônicos aos Nimbys) da cidade, ele já acompanhou dezenas de reuniões, envolvendo desde projetos habitacionais de maior porte até a instalação de pequenos negócios em quadras de bairros onde já havia estabelecimentos. O interesse de Fruchtman pela questão surgiu de sua própria experiência ao se mudar para São Francisco por causa de um emprego no Vale do Silício e a dificuldade que teve para encontrar um apartamento para se instalar.

Conhecimento de como as localidades funcionam e as propostas são aprovadas é uma das vantagens que os Nimbys têm para conseguir barrar os complexos aos quais se opõem. Além disso, a mobilização é outra ferramenta bem empregada por esses grupos, com atos públicos e a presença nas redes sociais e na mídia tradicional. O apoio e a eleição de vereadores identificados com a causa são outras estratégias colocadas em prática, como evidencia reportagem da Curbed. Um exemplo dessa atuação vem da área da Baía de São Francisco, onde recentemente Nimbys iniciaram uma batalha contra a instalação de uma pista para pedestres e ciclistas na ponte que liga Richmond a San Rafael, de acordo artigo do Streetsblog.

Aqueles que se posicionam contrários à iniciativa afirmam que a retirada de uma faixa para os veículos está elevando o congestionamento na ponte e, com isso, a poluição ambiental. Porém, dados da Comissão Metropolitana de Transportes demonstram que não há evidências disso. No entanto, as informações reais sobre os engarrafamentos acabaram sendo preteridas diante de uma campanha de desinformação, indica um dos participantes da reunião pública sobre o projeto ao Streetsblog. O entrevistado comentou que foram publicados anúncios em jornais da região sobre o assunto e enviadas correspondências para os residentes de Richmond com explicações equivocadas para os congestionamentos, influenciando a opinião dos moradores.

Manifestações, abaixo-assinados e a ocupação dos canais digitais e offline são mais táticas usadas pelos Nimbys, assim como o contato junto aos órgãos que determinam o futuro desses empreendimentos. No Brasil, muitos desses casos acabam no Ministério Público ou na Justiça. A escolha do lugar onde seria implementada a estação de metrô Angélica e a criação do Parque das Flores são alguns exemplos em São Paulo (SP) de como os grupos de Nimby agem, segundo artigo do Caos Planejado.

Construções que contam com características para serem tombadas

Apesar de ser um termo bastante empregado, exatamente o que significa tombar um imóvel e quais as normas que orientam esse processo? A prefeitura de São Paulo possui em seu site mais informações sobre o tema e esclarece essa e outras dúvidas que surgem quando o assunto é preservação de bens materiais na capital paulista. Conforme a administração municipal, o tombamento é um conjunto de medidas elaboradas pelo poder público com o objetivo de manter, através de uma legislação específica, propriedades, itens ou espaços de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e afetivo para a população. Através dessa ferramenta, eles não podem ser destruídos ou descaracterizados.

Entre os elementos que podem ser tombados estão: fotografias, livros, mobiliário, utensílios, obras de arte, prédios, ruas, praças, regiões, cidades e florestas, por exemplo. Contudo, esse critério é aplicado apenas para bens materiais de interesse para a conservação da memória coletiva. A prefeitura relata ainda que o tombamento não é igual à desapropriação, pois ele não altera a propriedade de um item – seja móvel ou imóvel –, ele proíbe que esse bem venha a ser destruído ou perca as suas particularidades. Sobre o que representa o “entorno” de uma habitação preservada, o órgão detalha que é uma área localizada na vizinhança da edificação que é estabelecida pela entidade responsável pelo tombamento para evitar que o imóvel seja obstruído por novos elementos ou tenha a sua visibilidade reduzida.

A administração de São Paulo descreve também que qualquer pessoa física ou jurídica, proprietária ou não, pode solicitar a preservação de bens culturais. Esse processo começa com o pedido de um cidadão ou do Departamento do Patrimônio Histórico da capital paulista, que passará por uma avaliação técnica preliminar e depois vai para a deliberação do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da capital paulista (Conpresp). Se for aprovada a abertura do procedimento, o dono do bem é notificado e a resolução será publicada no Diário Oficial da cidade. Com o início do processo, o imóvel em exame fica provisoriamente protegido – cenário em que são proibidas as demolições e as reformas sem prévia autorização do Conpresp até a deliberação final pela preservação ou não. O tombamento é efetivado por ato do Secretário Municipal da Cultura com publicação no Diário Oficial, o qual pode ser contestado, no prazo de 15 dias, junto ao Conselho. Devido à complexidade e aos critérios analisados nesses procedimentos, não há um prazo delimitado para a conclusão dos estudos de tombamentos.

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