A falta de imóveis e os elevados preços das unidades têm levado os grupos de Yimby (Sim no Meu Jardim) a conquistarem vitórias junto aos governos locais e estaduais, que estão alterando normas que impediam a edificação de mais habitações. Consideradas como um dos maiores empecilhos para que mais residências sejam erguidas, as regras de zoneamento estão sendo revistas em diversos municípios.
Uma conta que não fecha há décadas. A construção de moradias na maioria das cidades no mundo não acompanha a demanda crescente da população. Estimativas nos Estados Unidos apontam que esse déficit pode chegar a 5,5 milhões de imóveis necessários para garantir unidades acessíveis para todos, conforme matéria do site de notícias Vox. Dados indicam ainda que cerca de 11 milhões de famílias norte-americanas gastam mais de 50% de seus rendimentos com aluguel – quando o ideal calculado é de até 30%. No Brasil, a situação não é diferente, com uma escassez de habitações que alcança a marca de 5,8 milhões de residências, segundo estudo realizado antes da pandemia de coronavírus.
O que muda entre essas duas nações são os avanços que os Estados Unidos vêm registrando nos últimos anos, especialmente em 2023, na modificação das leis de zoneamento, o principal obstáculo, de acordo com pesquisadores e especialistas no assunto, para a edificação de mais moradias. Naquele país, é ilegal erguer apartamentos em mais de 70% dos terrenos destinados à habitação em praticamente todas as grandes localidades, informa o Vox. Cenário esse que fica mais complicado quando se somam outras barreiras regulatórias, como requisitos mínimos de estacionamento, tamanhos mínimos de lotes e limites de altura.
O zoneamento unifamiliar é uma longa tradição norte-americana – em que somente uma casa pode ser construída em determinadas áreas dos municípios – condição essa que é defendida pelo movimento Nimby (Não no Meu Jardim, em tradução da sigla em inglês), que são grupos formados por residentes que costumam se opor a qualquer tipo de empreendimento em seus bairros. No entanto, esse panorama tem apresentado alterações, com a expansão do Yimby (Sim no Meu Jardim), que vem ganhando novos adeptos e transformando a percepção que muitos planejadores urbanos e tomadores de decisão possuem sobre as restrições de zoneamento.
Os debates sobre o uso e a ocupação do solo nos Estados Unidos viraram nacionais neste ano devido ao trabalho efetuado pelos integrantes de Yimbys em prol da moradia, argumentam o diretor de pesquisa do Califórnia Yimby, M. Nolan Gray, e o diretor do Projeto Urbanidade no Mercatus Center da Universidade George Mason, Salim Furth, em artigo publicado na Bloomberg. Entre as conquistas obtidas pelo movimento, eles ressaltam o fato de mais de 200 projetos de lei de habitação terem sido elaborados em, pelo menos, 23 estados daquela nação, como apurado em novo relatório do Mercatus Center.
Entre os exemplos citados por Furth e Gray – que é também autor do livro “Arbitrary Lines: How Zoning Broke the American City and How to Fix It (Linhas Arbitrárias: Como o Zoneamento Quebrou a Cidade Americana e como Corrigi-lo)”, de 2022, estão o do governador da Califórnia, Gavin Newsom, que assinou 56 projetos de lei voltados para enfrentar o déficit de imóveis no estado e o de Montana, onde os legisladores ampliaram as reformas nas normas existentes, legalizando a edificação de unidades habitacionais acessórias (ADUs) em quintais e apartamentos em regiões comerciais.
As mudanças nas leis reunidas pelos autores passam ainda por redução dos tamanhos mínimos dos lotes, autorização para a construção de duplexes e quadruplexes e limites para os requisitos de estacionamento, como ocorreu em Vermont, e aumento dos incentivos para que desenvolvedores ergam residências de renda mista, em Rhode Island. Na Flórida, salientam os pesquisadores, os legisladores aprovaram o Live Local Act – uma política de moradias para incrementar a disponibilidade de imóveis a preços acessíveis para os trabalhadores do estado que querem viver nas comunidades que atendem. A iniciativa, explicam Gray e Furth, autoriza unidades de renda mista – edificadas com a maior densidade permitida em cada localidade – em todas as zonas comerciais e industriais, desde que algumas dessas propriedades sejam reservadas para os trabalhadores.
As vitórias do movimento Yimby em 2023 abrangeram também Arkansas, Maine, Nova Jersey, Carolina do Norte, Ohio, Oregon, Washington e Wisconsin, relatam os autores. Porém, não foram adiante em lugares como o estado de Nova York, Colorado e Arizona. No entanto, no município de Nova York a estratégia “Cidade do Sim”, que busca o fim das proibições à construção de apartamentos em todo o seu território, vem avançando. Para os pesquisadores, o que as distintas ações encabeçadas pelos grupos Yimby revelam é que chegou o momento de revisar o zoneamento.
Administração de Joe Biden propõe medidas para elevar oferta de habitações nos EUA e reformar regras de zoneamento
Assim como alguns estados e localidades norte-americanos colocaram em prática modificações em suas normas de uso e ocupação do solo, o governo federal daquele país está definindo programas e estímulos para que mais municípios alterem suas leis e impulsionem a edificação de uma quantidade maior de residências, atingindo todas as faixas de renda. O plano da atual gestão, conforme a reportagem da Vox, envolve a implementação de ferramentas de financiamento para erguer e preservar moradias, para qualificar os modelos de concessão de recursos federais já criados e para dar incentivos às comunidades que diminuírem os seus obstáculos à construção de mais imóveis.
O grande poder de decisão das cidades quando o tema é a edificação de novas unidades é destacado pelo Vox como um dos principais problemas a serem enfrentados pelo governo dos EUA para aumentar o número de propriedades disponíveis. Por isso, afirma a matéria, os legisladores federais optam, na maioria dos casos, por políticas que fomentem as localidades a promoverem mudanças em seus zoneamentos, em vez de retirar dinheiro daqueles que não as concretizam.
Em 2021, no primeiro ano da administração de Biden, foi proposto um projeto de subsídios que recompensaria os municípios que reduzissem suas regras de zoneamento, com a previsão de recursos de 1,75 bilhão de dólares, mas a iniciativa acabou cortada na versão da norma no Senado, assinala o Vox. No ano passado, o governo federal tentou novamente emplacar a estratégia, com uma verba de 10 bilhões de dólares, para recompensar estados e cidades que removessem empecilhos para que mais casas fossem erguidas. Porém, o pacote de gastos aprovado pelo Congresso, em dezembro de 2022, e que incluía o primeiro programa de incentivos para a revisão das restrições de zoneamento – apelidado de subsídio Yimby, segundo a reportagem –, foi de 85 milhões de dólares.
Em julho deste ano, a gestão Biden lançou novas ações para incrementar a construção de habitações nos Estados Unidos, como detalha material da Casa Branca. Os impactos dos impedimentos à edificação de novas residências vão desde a continuidade de padrões históricos de segregação até a maior dificuldade para que as pessoas acessem melhores oportunidades de emprego e a elevação dos custos de energia e dos riscos climáticos. Por isso, a importância de criar mecanismos que estimulem mais localidades a removerem as restrições para que mais moradias sejam erguidas. Uma das medidas conta com um financiamento para os municípios identificarem e retirarem as barreiras à produção e preservação de imóveis a preços acessíveis. Os recursos podem ser utilizados para atividades de planejamento e para políticas de rezoneamento para liberar uma maior densidade para unidades multifamiliares e de uso misto e ainda para obras de infraestrutura.
As iniciativas anunciadas abrangem também o crescimento habitacional junto ao transporte, aproximando esses dois elementos e aprimorando o acesso da população aos seus destinos diários. Além disso, o pacote divulgado pela Casa Branca prevê verbas para tornar as residências mais eficientes energeticamente e mais preparadas para resistir às alterações climáticas. O financiamento de moradias acessórias foi mais um ponto abordado no plano do governo federal, assim como o desenvolvimento de instrumentos para apoiar e impulsionar a conversão de imóveis comerciais em apartamentos.
Por que repensar o zoneamento urbano é fundamental para a construção de mais casas?
Em artigo para o Strong Towns, o diretor de pesquisa do Califórnia Yimby e planejador urbano, M. Nolan Gray, enfatiza que as leis de zoneamento devem ser eliminadas. Para ele, “enquanto encorajarmos os americanos a pensarem em suas residências como um investimento e permitirmos que cada pequeno subúrbio incorpore e determine o que pode e não pode ser edificado, o zoneamento servirá sempre para perpetuar a escassez, estagnação e segregação. Não podemos sair dessa situação; o objetivo a longo prazo deve ser a abolição do zoneamento”.
Ele pondera também que essas normas não são boas para assegurar a compatibilidade do uso da terra entre vizinhos, muitas vezes funcionando apenas para transferir os reflexos que podem ser causados por um novo empreendimento em um bairro – como barulho ou aumento do trânsito – para comunidades mais pobres e com menos força política. Gray refere-se aqui às manifestações realizadas por grupos de Nimby para impedir a implementação de mais moradias em suas áreas. Ele frisa que para o bem das cidades e de quem vive nelas, é a hora de rever a maneira como o solo é regulamentado nos Estados Unidos.
As leis que moldaram a forma como a maioria das localidades norte-americanas é planejada, com seus subúrbios e propriedades únicas ocupando grandes terrenos, têm suas raízes na década de 1910, como destaca reportagem da CNN. Entre os motivos que basearam o estabelecimento dessas normas estavam, na época, a necessidade de instalar as fábricas longe dos imóveis. Essa visão de desenho urbano manteve-se mesmo quando essas indústrias deram lugar à economia focada em serviços e o progresso da tecnologia ajudou na diminuição dos efeitos ambientais e sonoros decorrentes dos sistemas produtivos. Assim, os municípios foram divididos em zonas industriais, comerciais, para os prédios serem erguidos e outras para casas unifamiliares.
Essas regulamentações rígidas, de acordo com a CNN, acabaram influenciando o limite de oferta de unidades habitacionais, elevaram artificialmente os preços das residências, tornaram mais difícil o sonho da moradia própria para as gerações futuras e impediram que famílias se mudassem para bairros com infraestrutura qualificada e melhores oportunidades de emprego e de lazer. O resultado é que os imóveis estão mais caros hoje do que nos últimos 30 anos, mesmo quando ajustados à inflação, e a construção de propriedades não acompanhou a demanda por eles, reforça a publicação.
Um levantamento feito em São Francisco (Califórnia), em 2021, descobriu que o chamado “imposto de zoneamento”, o valor que os preços dos terrenos são artificialmente inflacionados devido às leis restritivas de zoneamento, foi estimado em mais de 400 mil dólares por casa. Em Los Angeles (Califórnia), Nova York e Seattle (Washington), esse tributo ficou em cerca de 200 mil dólares. Já em Chicago (Illinois), Filadélfia (Pensilvânia) e Portland (Oregon) esse valor foi de 80 mil dólares. A pesquisadora sênior da Brookings Metro, que estuda economia urbana e política habitacional, Jenny Schuetz, disse à CNN que está cada vez mais complexo edificar coisas, especialmente em regiões de alta renda que “querem ter muito controle sobre o desenvolvimento”. Por isso, o zoneamento ficou mais complicado e restritivo e sua reforma é essencial, como apontam diferentes especialistas e pesquisadores urbanos.
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