A escassez de habitações que empurra tantas pessoas para longe dos centros urbanos, para as construções informais e, em alguns casos, para as ruas demanda soluções que vão além da revisão das regras de zoneamento. Entender as necessidades atuais da sociedade em relação ao morar pode ajudar a repensar os requisitos de tamanho das residências exigidos para oferecer mais unidades a preços acessíveis.
As famílias estão ficando menores no Brasil e o resultado disso são casas com cada vez menos indivíduos, apontam os primeiros dados do Censo Demográfico de 2022 que foram apresentados pelo IBGE em junho de 2023. A média hoje é de 2,79 habitantes por domicílio, índice que era de 3,31 em 2010, quando foi efetuado o último levantamento, detalha reportagem do O Globo. Esse patamar vem em queda desde o Censo de 1980 e está relacionado às novas composições familiares que se formaram nas últimas décadas, com um número maior de cidadãos vivendo sozinhos e de casais sem filhos ou com apenas uma criança.
A realidade, no caso de um País com uma grande extensão territorial e marcado por desigualdades regionais, não é a mesma em todos os estados. Porto Alegre (RS), por exemplo, é a capital com a menor densidade de pessoas por imóvel, uma média de 2,37, e Macapá (AP) possui a maior média, com 3,56 indivíduos por moradia. Essas modificações na configuração familiar e também aquelas aceleradas pela pandemia de coronavírus – como mais cidadãos trabalhando em suas residências ou em esquemas híbridos – precisam ser compreendidas pelos governos e planejadores urbanos para que as medidas de enfrentamento à falta de unidades respondam às demandas reais da população.
Nesse contexto, a edificação de pequenas habitações surge como uma das estratégias para resolver as diferentes necessidades das pessoas em relação a espaço, localização e valores a serem pagos por um imóvel. Esse tipo de domicílio pode ser uma opção para tornar as residências mais acessíveis a famílias de baixa renda, àquelas constituídas por jovens sem filhos e para quem mora sozinho. “Primeiro a gente precisa começar a entender que não existe apenas um tipo de família a ser atendida no Brasil”, assinala o coordenador do Somos Cidade, empresário e fundador e presidente de honra da Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil (Adit), Felipe Cavalcante.
A política habitacional nacional, acrescenta ele, define um requisito muito alto do que é considerado uma casa digna, estabelecendo para os seus programas que as unidades devem ter um tamanho mínimo e contarem com dois quartos, cozinha e sala e os lotes possuírem, pelo menos, 125 metros quadrados. “Ao colocar somente uma alternativa de produto nos projetos sociais, você acaba excluindo todos os outros formatos de famílias, que não precisam de dois dormitórios, por exemplo, e que teriam a oportunidade de escolher um imóvel menor, mas mais acessível e em lugares com mais infraestrutura e bem localizados”, argumenta. Essa alteração nos critérios, além de viabilizar que moradias menores sejam erguidas, permitiria incluir nas iniciativas indivíduos em situação de rua, observa Cavalcante.
Ele pondera ainda que o tamanho das residências não pode ser a única preocupação das ações governamentais nesse setor no Brasil e outros fatores importantes devem ser considerados que são exatamente o bairro onde elas são construídas e o seu valor. “É óbvio que quanto mais distante das melhores regiões a pessoa vive, mais barato serão as habitações e os terrenos e, consequentemente, o tamanho das unidades pode ser maior”, relata. No momento em que as estratégias públicas determinam que um certo tamanho mínimo de imóvel é necessário e que isso vale também para os pontos mais centrais e valorizados dos municípios, o apartamento ou casa ficam mais caros, reforça o coordenador do Somos Cidade.
“Essas variáveis – tamanho, preço e localização – andam de mão dadas e quando o governo opta por moradias maiores em seus programas, ele está empurrando os indivíduos para mais longe e excluindo muitos que gostariam de viver perto do Centro e de opções de lazer, empregos, serviços e próximos ao transporte público, e que escolheriam espaços menores para isso”, salienta Cavalcante. Segundo o empresário, isso já acontece nas classes média e alta e poderia ser algo viável tanto para as famílias de classe média-baixa e baixa como para aqueles que estão em situação de rua.
Residências menores como um ponto de partida para as pessoas
A edificação de mais habitações acessíveis não seria a única consequência da redução dos requisitos mínimos de tamanho das unidades, adianta o coordenador do Somos Cidade. Isso poderia significar uma diminuição dos imóveis informais no País. Para Cavalcante, o governo federal fecha os olhos para isso, como tem feito nas últimas décadas, levando aqueles que não têm o valor mínimo a ser pago por uma casa a se instalarem em lugares inadequados e insalubres. “As favelas brasileiras se formam porque os indivíduos não conseguem pagar um domicílio em outros bairros e começam com um menor nessas áreas e vão, conforme melhoram de condições financeiras, aumentando e qualificando a moradia”, afirma.
Esse processo de expansão gradual, também chamado de desenvolvimento incremental, foi algo proposto pelo arquiteto Alejandro Aravena e pela equipe do seu escritório Elemental para a comunidade Quinta Monroy, um assentamento precário em Iquique, no Chile, país onde nasceu o profissional. O desafio era erguer residências com valores acessíveis para as 100 famílias que viviam naquela região periférica do município, mantendo a todos em um terreno de 5 mil metros quadrados e fazendo isso com recursos do governo federal de 7,5 mil dólares por núcleo familiar, como ressalta matéria do Somos Cidade.
A solução elaborada, e que contou com a participação dos habitantes do local, foi fornecer as fundações, paredes, escadas, cozinhas e banheiros, o que em geral é o mais difícil e caro para as pessoas, descreve artigo do TheCityFix Brasil. Ao deixar elementos que compõem a metade de um imóvel, o projeto possibilita que as famílias, com o tempo, construam aos poucos e de maneira individualizada o restante da unidade. Além disso, foram criados novos ambientes abertos para as crianças brincarem em frente as suas casas, com mais segurança. Essa medida garantiu ainda que muitas famílias conseguissem alugar quartos extras e, com isso, obter recursos para viver a partir de suas moradias.
Esse trabalho e outros concebidos pelo arquiteto através do Elemental no campo de habitação popular renderam ao profissional o prêmio Pritzker, conhecido como o Nobel da Arquitetura, em 2016. “O que Aravena fez é muito valorizado entre os urbanistas e na academia, mas, na prática, toda vez que há uma sugestão de reduzir o tamanho das residências no Brasil ela é muito combatida pelo setor universitário e por planejadores urbanos”, enfatiza Cavalcante. De acordo com ele, o que acontece na verdade é que esses segmentos não compreendem que a sociedade mudou e que vários indivíduos poderiam ser atendidos com um programa na mesma linha do realizado em Iquique. “E, principalmente, não entendem que cada cidadão deve ter o direito de optar pelo lugar onde quer viver, o tamanho do imóvel e o preço que pode pagar por ele”, sustenta.
Pequenas unidades podem ser também uma alternativa para pessoas em situação de rua
Um em cada mil brasileiros não tem moradia, revela estudo feito pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC). O relatório “População em situação de rua: diagnóstico com base nos dados e informações disponíveis em registro administrativo e sistemas do governo federal”, divulgado em setembro de 2023, inclui perfil dos indivíduos que se encontram nessa condição no País, entre outros pontos relevantes para criar mecanismos para enfrentar esse problema, como políticas de acesso ao emprego e à habitação.
O Cadastro Único para Programas Sociais apurou que havia, em 2022, 236.400 cidadãos vivendo em situação de rua. Desse total, 62% deles estão na região Sudeste – o Distrito Federal tem o maior percentual, de 3 pessoas em cada mil. O levantamento identificou ainda que o perfil dessa população é formado principalmente por homens (87%), adultos (55%) e negros (68%). Em São Paulo (SP), a prefeitura municipal anunciou, em 2022, uma iniciativa para desenvolver uma vila de pequenas residências modulares para receber aqueles que estão sem-teto. O complexo foi inaugurado no final de 2022, no bairro Bom Retiro, na área central da cidade, e possui 350 unidades com capacidade para atender a 1,4 mil indivíduos na primeira etapa do projeto – que prevê outras quatro vilas em distintos terrenos, segundo matéria do Valor.
Cada uma das estruturas tem 18 metros quadrados, cozinha, um quarto e banheiro, conforto térmico e acústico e são feitas com materiais anti-inflamáveis, informa o jornal. A prioridade dos espaços é para famílias em situação de rua há menos de dois anos e com até quatro membros, elas serão acompanhadas por ações de diversas secretarias durante um período de 12 a 18 meses – que é o tempo máximo de permanência no local. Essa estratégia – que é inspirada no modelo Moradia Primeiro, vem sendo adotada em outros países, como Canadá, Finlândia e Estados Unidos, onde vários estados, especialmente a Califórnia, que enfrenta uma grave falta de imóveis, estão edificando vilas com o mesmo propósito.
No entanto, os lugares implementados em algumas regiões daquele país são compostos por domicílios minúsculos (tiny homes, em inglês), como as de São Francisco (Califórnia), que possuem cerca de seis metros quadrados, como mostra reportagem do Vox, e ficam na 33 Gough Street, no Centro do município. Esse espaço conta com aquecimento, eletricidade, cama de solteiro, mesa, cadeira e uma série de normas a serem seguidas por seus moradores – que são atualmente em torno de 70. Eles recebem três refeições diárias e são atendidos por serviços de apoio e de assistência médica, mas não têm banheiro individual, não podem receber visitas externas e não podem tomar banho depois das 14h.
Os defensores dessas habitações, agrega o Vox, frisam a possibilidade de contornar as leis restritivas de zoneamento para instalar esses condomínios e oferecer mais abrigos para indivíduos em situação de rua e de instalar essas residências em terrenos “emprestados” em vez de comprados – utilizando lotes adquiridos por desenvolvedores enquanto eles não iniciam os seus empreendimentos. Além disso, eles destacam que essas estruturas funcionam como uma ferramenta para lidar com a escassez de unidades e podem ser um local temporário para as pessoas se reerguerem. San José (Califórnia) também está instalando vilas de imóveis minúsculos há aproximadamente quatro anos, conforme o Vox. São cerca de 500 unidades distribuídas por seis áreas da cidade e outras centenas estão sendo idealizadas.
Entre as críticas feitas a essa solução para enfrentar a questão dos indivíduos sem-teto estão a preocupação com a baixa qualidade dos materiais empregados na produção das tyne houses, o tamanho – que varia de 5,5 metros a em torno de 14 metros quadrados, em média – e a retirada do foco na construção de mais domicílios permanentes, com a diminuição dos investimentos em políticas habitacionais de longo prazo. Outro fator questionado é por que os recursos não são usados para pagar aluguel em casas já existentes, o que oportunizaria que os cidadãos em situação de rua vivessem em distintos bairros, se adaptassem à vizinhança e não fossem criados guetos em pontos longe dos bairros centrais dos municípios.
Mas, as moradias minúsculas ou pequenas podem ser ainda uma opção para repor o estoque de habitações acessíveis, como aponta matéria do USA Today. Em Nashville (Tennessee), a organização sem fins lucrativos Affordable Housing Resources planejou uma vila com 13 residências modulares perto do Centro (em versões maiores, com pouco mais de 41 metros quadrados), que foram alugadas por cerca de 1 mil dólares ao mês (dados de 2019), quando a média de preço de um estúdio naquela região era de 1.545 dólares mensal. A meta da entidade é, com medidas como essa, começar a substituir as unidades acessíveis que a cidade está perdendo.
O USA Today lembra ainda que os imóveis minúsculos estão sendo criados em lugares densamente povoados dos Estados Unidos para responder também à demanda de jovens profissionais e solteiros que priorizam viver em comunidades modernas e caminháveis em vez de domicílios espaçosos. E agrega que os apartamentos com menos de 37 metros quadrados são comuns e populares em Nova York, São Francisco, Austin (Texas) e Chicago (Illinois).
Apesar de não ser um estilo de vida para todos, as tiny houses (como não há uma metragem padrão, muitas moradias pequenas também são chamadas de minúsculas em alguns meios de comunicação e por algumas organizações) têm sido uma alternativa para aqueles que buscam um modo de vida mais sustentável, como assinala matéria do TED Ideias. Esse mercado de habitações (que têm em média 37 metros quadrados) deve crescer 3,3 bilhões de dólares no mundo até 2025, sendo que mais da metade dessa expansão deve ocorrer na América do Norte, informa a reportagem.
Um dos maiores benefícios ambientais dessa maneira de viver, relata o TED Ideias, é a que essas residências precisam de menos materiais para sua edificação e energia para serem mantidas em comparação com os imóveis unifamiliares tradicionais, assim como são mais acessíveis financeiramente e poderem ser erguidas em um terreno ou sobre rodas. O vice-presidente da Associação Tiny House Industry e coapresentador do programa Tiny Home Nation na Netflix, Zack Giffim, comentou na entrevista ao TED Ideias que “quando economistas falam sobre a crise imobiliária, eles apontam para o fato de não termos construído casas suficientes para dar resposta à procura. Mas, ninguém nunca pergunta se estamos erguendo os tipos de unidades que realmente precisamos”.
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