As ideias do arquiteto e urbanista dinamarquês sobre como devem ser os ambientes urbanos já foram colocadas em prática em mais de 200 localidades pelo mundo, inclusive no Brasil. Inspirado por nomes como Jane Jacobs e um crítico do modernismo, Gehl defende que os lugares precisam ser elaborados a partir de dados sobre como os indivíduos utilizam os municípios e pensados para serem experimentados no ritmo de um passeio e não na velocidade dos carros.
Os espaços públicos devem ser como uma boa festa, de onde ninguém quer ir embora correndo. Essa é uma das muitas maneiras como o arquiteto e urbanista Jan Gehl já descreveu as cidades que funcionam bem para todos os seus moradores, independentemente da idade ou renda. São aquelas localidades com áreas bonitas e com comodidades que fazem as pessoas ficarem nelas mais tempo que o previsto, aproveitando e contemplando os ambientes sem pressa. Os municípios habitáveis para o profissional nascido em Copenhagen (Dinamarca), em 1936, são densos, caminháveis, vibrantes, seguros, sustentáveis e idealizados a partir da escala humana, com os indivíduos no centro das decisões em vez dos veículos.
Prestes a completar 88 anos, Gehl afirmou em entrevista para o ArchDaily, durante o Congresso Mundial de Arquitetura da União Internacional de Arquitetos (UIA) de 2023, que o propósito de uma localidade é propiciar que os seus residentes tenham uma vida plena, sem deixar ninguém para trás. No evento, ocorrido na capital dinamarquesa e que reuniu mais de 6 mil profissionais do setor, o arquiteto dinamarquês e criador do conceito de “Cidade para Pessoas” ressaltou o impacto que os espaços construídos possuem na rotina dos indivíduos, afetando a forma como eles utilizam os lugares e o seu bem-estar.
Com uma experiência de mais de 60 anos na área, a visão de Gehl sobre os municípios vem sendo consolidada desde que se formou na Escola de Arquitetura da Academia Real Dinamarquesa de Belas Artes, em 1960. Naquela época, quando começou a atuar, os empreendimentos e ambientes urbanos eram dominados pelos princípios da escola modernista, em que tudo deveria ser novo e separado, afastando trabalho, moradia e lazer, recordou ele na entrevista para a série de talk show Architects, not Architecture – que apresenta a trajetória de diversos profissionais do segmento. Para ele, essa perspectiva tirou o foco da concepção de espaços para a edificação de prédios, de objetos. Com isso, o modernismo deixou de se preocupar com os cidadãos e com a vida social e deu um adeus à compreensão da escala humana.
Foi nesse contexto que o jovem arquiteto conheceu sua esposa, a psicóloga Ingrid Gehl, e a casa deles passou a ser um ponto de encontro de profissionais dessas duas áreas e também de sociólogos, como aponta matéria do Somos Cidade. Gehl detalhou, na entrevista para o ArchDaily, que a década de 1960 foi de abertura do pensamento e de aproximação entre os conhecimentos sociais e técnicos, o que levou as pessoas a olharem para o que os outros estavam fazendo. Ele assinalou ainda que, nas reuniões em sua residência, ouvia muitas críticas dos psicólogos de que os arquitetos não se preocupavam com os diferentes indivíduos para quem estavam projetando.
Um mergulho na relação entre os ambientes e o jeito de viver de seus habitantes
Instigado por essas conversas, Gehl decidiu se aprofundar na investigação sobre os reflexos que os lugares públicos tinham sobre os seus usuários e cotidiano. Em 1965, ele e Ingrid foram para a Itália, com uma bolsa de estudos, para ampliar as pesquisas nesse campo. Ele lembra que o casal ficou seis meses analisando como os italianos usavam os seus espaços coletivos e quais eram os efeitos em suas vidas. O profissional salientou para o ArchDaily que ele e Ingrid apuraram que era possível ter áreas horríveis, com tão poucas comodidades – como bancos, vegetação, calçadas e ciclovias qualificadas, praças, mobiliário urbano, entre outros –, que os cidadãos só queriam sair delas o mais rápido possível.
Ao mesmo tempo, verificaram que havia locais tão bem planejados, encantadores e aconchegantes que ocorria o contrário: os indivíduos queriam ficar ali, parar um momento para descansar, contemplar ou se divertir. Esse foi o ponto de partida para que o arquiteto começasse a mudar seu olhar para o desenvolvimento dos municípios e que resultou, anos mais tarde, na fundação do Gehl Architects, em 2000, e no conceito de “Cidade para Pessoas”, que teve os seus critérios reunidos no livro de mesmo nome, lançado em 2010. Com base em todo o conhecimento adquirido ao longo de sua jornada, o profissional acredita que bons ambientes para os seres humanos são densos, mistos, saudáveis, equitativos e possuem prédios com térreos dinâmicos – com lojas, cafés e restaurantes –, mobiliário urbano convidativo nas calçadas e promovem a interação social.
Além disso, Gehl reforça que uma localidade que prioriza os seus moradores precisa se preocupar com a acessibilidade, a inclusão e a mobilidade. O deslocamento dos cidadãos deve ser pensado, destaca o arquiteto, de uma maneira holística, combinando distintas formas de locomoção, como caminhar, pedalar e usar o transporte público, e definindo medidas que reduzam a utilização dos automóveis e, consequentemente, as emissões de gases de efeito estufa. Ele observa que isso vem sendo realizado por vários municípios, como Copenhagen, Melbourne (Austrália), Nova York (Estados Unidos) e Vancouver (Canadá), por exemplo. Rever o jeito como as pessoas fazem os seus percursos também é uma questão de saúde, avalia. Ele relata que viabilizar aos indivíduos irem e voltarem andando do trabalho, ou estimulá-los a praticarem uma hora de exercício moderado, pode significar um acréscimo de setes anos extras de vida.
Gehl já teve suas ideias implementadas em mais de 200 cidades pelo mundo, como a capital da Dinamarca – que foi o primeiro laboratório onde testou seus métodos –, Nova York, Moscou (Rússia), Istambul (Turquia), Sidney (Austrália), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Palhoça (SC) – em Santa Catarina, o profissional foi consultor do complexo Cidade Pedra Branca, no qual contribuiu na qualificação das áreas públicas. Com sua experiência na elaboração de localidades para os cidadãos e seus mais de 40 anos dedicados à pesquisa e ao ensino no meio acadêmico, o arquiteto também idealizou uma ferramenta para ajudar os municípios a criarem espaços públicos que sejam de fato aproveitados pelos seus usuários. São 12 parâmetros de qualidade que permitem identificar se um ambiente coletivo possui características protetoras, confortáveis e agradáveis para quem passa um tempo nele.
Entre essas particularidades estão lugares para caminhar, sentar, pontos interessantes para ver e segurança contra o tráfego, complementa matéria da WRI Brasil. A Piazza del Campo, em Siena (Itália), é um dos exemplos dados por Gehl que cumpre com todos esses princípios. No sentido oposto de uma cidade projetada em escala humana está, conforme ele, Brasília. A capital brasileira é frequentemente citada pelo profissional em suas apresentações como um destino que só é bonito visto do alto, de um avião, que funciona apenas para os carros e que tem todas as suas funções segmentadas.
Uma vida dividida em duas etapas
A visão de Jan Gehl foi sendo construída durante as últimas seis décadas e influenciada por outros pensadores, como a escritora, jornalista e ativista norte-americana Jane Jacobs e sua obra “Morte e Vida de Grandes Cidades”, publicada em 1961. No livro, ela se posicionou em favor da concepção de localidades vibrantes, mistas, com pessoas circulando pelas calçadas em diferentes horários do dia com segurança e introduziu o conceito de “olhos da rua”: quanto mais indivíduos utilizarem um espaço e contarem com atividades diversas para fazerem nele, melhor e mais protegido ele será.
Gehl conheceu Jane durante uma visita a Toronto (Canadá), onde ela morou por um tempo, ocasião em que discutiram sobre o Novo Urbanismo – movimento que também busca devolver os municípios aos cidadãos, retirando o protagonismo dos veículos –, revela matéria da organização voltada para a valorização da arquitetura Common Edge. Na entrevista, ele comentou que ambos – que trocaram cartas e obras durante anos – defendiam que os critérios do Novo Urbanismo eram muito bons e aplicáveis, principalmente, em áreas urbanas já existentes, onde o transporte coletivo era eficiente e havia serviços públicos próximos.
Em 1971, foi a vez de Gehl lançar o seu primeiro livro: “Life between buildings: using public space (Vida entre Prédios: usando o espaço público)”. Segundo o perfil do arquiteto feito pelo Project for Public Spaces (PPS), a obra enfatiza que é nesse lugar entre os edifícios que ocorre a interação e percepção social, a recreação urbana e a experiência sensorial na cidade, por isso a importância de planejar ambientes qualificados. Gehl frisa que, por essa razão, a vida entre prédios é uma dimensão da arquitetura que merece um tratamento mais cuidadoso. O profissional é autor ainda de “New City Spaces (Novos Espaços da Cidade), de 2000, “New City Life (Nova Vida na Cidade), de 2006, “How to Study Public Life (Como Estudar a Vida Pública)”, de 2013, entre outros.
Questionado pelo ArchDaily sobre o que mudou desde que a sua primeira obra foi divulgada, Gehl ponderou que o homo sapiens é o mesmo, assim como a sua maneira de sentir e de se locomover. Porém, uma alteração abordada por ele mais recentemente trata da questão do envelhecimento da população e da necessidade de se fazer localidades também para esse grupo de pessoas. Outro fator indicado pelo arquiteto que passou por modificação foi a movimentação dos indivíduos. Ele disse que os municípios precisam fazer com que os seus habitantes caminhem ou pedalem mais para evitar o que chamou de “a síndrome de estar sentado”, na qual os cidadãos passam muito tempo sentados ou parados no trabalho, no transporte ou em suas residências, se mexem pouco e morrem cedo.
Durante a entrevista, Gehl argumentou ainda que a sua vida teve duas fases, a primeira delas foi dedicada a pesquisar e escrever livros para tentar mudar a visão dos arquitetos para que eles ficassem mais conscientes sobre trabalhar para as pessoas. E a segunda etapa foi a de ter sido convidado por cidades de todo o mundo para aplicar essa nova mentalidade e dar consultoria de como fazer localidades melhores, algo que ele sustenta que tem feito desde que se graduou. Afirmou também que foi ele quem começou a tornar os indivíduos visíveis, coletando informações sobre os espaços onde esses cidadãos iriam, aqueles que não usariam e quais fatores tornaram aquela área maravilhosa ou horrível. “O que você conta, você cuida”, declarou.
Nesse sentido, Gehl acredita que os municípios, em vez de coletar informações sobre o número de automóveis, deveriam procurar dados sobre para e de onde vêm os moradores para entender como aquela cidade funciona e, a partir disso, poder descobrir os seus problemas e propor aprimoramentos. Essa é uma prática que ele utiliza em todas as suas iniciativas, levantar o que as pessoas gostam e o que fazem nos ambientes. Copenhagen, compartilhou o arquiteto em entrevista para a WRI Brasil, tem duas estratégias muito fortes para se tornar mais qualificada para os seus habitantes.
A primeira delas é a de transformar a capital dinamarquesa na melhor localidade do mundo para os seus residentes, deixando o município adequado para os indivíduos de todas as idades caminharem por suas regiões e oferecendo recursos que promovam uma vida em comunidade rica, na qual os cidadãos possam se encontrar naturalmente em praças e parques, por exemplo. A segunda ação, concluiu Gehl, é ser a cidade do mundo mais preparada para as bicicletas, disponibilizando mais infraestrutura para os ciclistas e também para os pedestres.
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