Por Felipe Cavalcante
Há alguns dias a Gabriela Tenório, professora de arquitetura e urbanismo da UNB e colunista do Caos planejado publicou um texto interessante sobre recuos laterais e frontais, em especial os recuos frontais de residências. Leia aqui o texto dela: https://caosplanejado.com/recuos-laterais-e-frontais
Ela se motivou a escrever o artigo após a gravação de um episódio do Podcast Somos Cidade que gravei com ela. Esse é o episódio: https://shorturl.at/bizR8
Em resumo, Gabriela defende a presença de recuos frontais para as residências porque acredita que isso permite uma transição suave entre o ambiente privado e o espaço público. Esses recuos possibilitam que os moradores mantenham a privacidade de suas casas sem necessidade de vedação completa, promovendo a interação com o espaço urbano. Além disso, os recuos frontais visíveis proporcionam a oportunidade de compartilhar parte da vida privada com os transeuntes, criando uma atmosfera de convívio e enriquecendo a vida na calçada com pequenas histórias e cenas cotidianas.
Ela gentilmente enviou o artigo para mim e pediu a minha opinião sobre o assunto, o que gerou uma rica troca de mensagens pelo WhatsApp entre nós.
O melhor de tudo foi eu ter tido a oportunidade de organizar minhas ideias sobre o assunto, sobre o qual eu nunca tinha parado para refletir e formar uma opinião.
Apesar de ser ferrenho defensor da ausência de recuos frontais e laterais em ambientes urbanos, nunca tinha parado para formar uma opinião sobre os recuos em residências e edifícios residenciais.
Assim, pedi permissão a ela para fazer esse artigo com os argumentos que elaborei durante nossa conversa.
Em resumo, concordo com tudo o que falou sobre recuos laterais.
Talvez a minha discordância seja a de que tudo o que ela falou sobre eles também se aplica aos recuos frontais.
Também acho que o dilema não deve ser entre ruas comerciais e ruas residenciais, mas entre centros urbanos e “periferias”.
As cidades possuem uma dinâmica própria de adensamento, forte no centro e descendente em direção à periferia.
Defendo que quem quer morar no centro, com acesso a todas as suas comodidades, precisa fazer um trade off com tamanho das unidades e privacidade.
Nas áreas centrais não se pode desperdiçar lotes urbanizados, que custaram caros para serem produzidos e custam caros para serem geridos pelo poder público.
Assim, entendo que nessas regiões os lotes deveriam ser 100% ocupados sem recuos laterais e frontais, nem taxa de impermeabilização.
Não se deve ter limite máximo construído, mas piso mínimo de área construída, como era em SP até a década de 1940.
Portanto, qualquer edifício em áreas centrais deveria ter fachada ativa sem recuos frontais e laterais, pois é essa ausência de recuos que cria a ambiência urbana que ela tão bem explica e defende em seu artigo.
Ah, mas como ficam as residências nessas áreas, pois não existe mercado para fachadas ativas comerciais em todas essas ruas?
Em primeiro lugar, devemos lembrar que todas as cidades brasileiras e mundiais foram construídas assim por toda a história, com residências sem recuos.
Portanto, não se trata de reinventar a roda ou apostar em algo novo e que pode ser uma aventura.
Sou da Barra de São Miguel, cidade de 7.000 habitantes no interior de Alagoas. A casa da minha avó, dos meus pais, dos meus tios e de todo mundo de lá não possuem recuos frontais ou laterais.
Em boa parte do dia, as portas e janelas podem ficar fechadas, mas em vários outros momentos elas se abrem, ativando as ruas.
A mesma realidade existe em todas as cidades do interior que conheço e que foram construídas antes da década de 1970.
Quanto ao fato de as pessoas não gostarem da perda de privacidade que a fachada ativa residencial oferece, isso é uma verdade.
Porém, não se deve tratar este como o único elemento pelo o qual uma família toma a decisão de moradia. Ele é apenas um entre muitos, e não cabe a um planejador urbano onisciente definir que por conta disso todas as residências de uma cidade, especialmente as localizadas em áreas centrais, devem ter recuos para preservar a privacidade de seus moradores.
Ao fazer isso, o planejador urbano está prejudicando a coletividade em detrimento de algumas poucas famílias que irão morar nessas residências localizadas nos térreos dos lotes em áreas centrais.
Digo que prejudica a coletividade porque os recuos frontais vão sim prejudicar a ambiência urbana e o mesmo sentimento de continuidade que os recuos laterais geram.
Como se sabe, isso gera menos “olhos nas ruas”, menos atratividade na caminhada, mais insegurança e espaços urbanos menos vibrantes.
Não é justo imputar esse ônus à sociedade para garantir o privilégio da privacidade a algumas poucas famílias.
Além disso, e retomando o argumento de que a privacidade é apenas um dos pontos considerados pelas pessoas ao decidir onde morar, os planejadores urbanos esquecem que fatores como distância do trabalho, escola, parques, lazer, amigos, parentes, saúde, além do tamanho e preço da moradia, estado de habitabilidade e manutenção, vizinhança, segurança, barulho, meios de transporte, entre outros, são ponderados ao se escolher um lugar para morar.
E para acrescentar ainda mais complexidade a um problema já complexo, isso se aplica a cada membro da família.
Ou seja, é um enorme quebra-cabeça, que não pode ser reduzido a apenas um fator, especialmente um de menor importância, quando comparado com localização, tamanho e preço, e que pode ser facilmente resolvido, através de janelas, portas e cortinas, como todos que moram em apartamentos fazem, inclusive eu que deixo a imensa maioria de minhas janelas e cortinas fechadas.
Confrontadas com a opção de morar em um residência bem localizada, com bom tamanho e bom preço, mas no térreo, acredito firmemente que muita gente vai escolher essa opção.
Até porque se houver pouca demanda para essas unidades, os seus preços serão ajustados até encontrar pessoas dispostas a pagá-lo.
Tenho a desconfiança de que se procurarmos nas áreas centrais das nossas cidades imóveis residenciais sem recuos frontais, será raro encontrar algum deles desocupado, pois se a demanda não for grande, seus proprietários baixarão os preços de venda e aluguel até encontrar alguém para ocupás-lo.
Deixando de lado as edificações construídas antes da desgraça causada pelo modernismo em nossas cidades, começamos a ver várias iniciativas contemporâneas que enfrentam essa questão da fachada ativa residencial em áreas bem localizadas e dotadas de infraestrutura.
Essas tentativas procuram resolver o dilema da necessidade de haver fachadas ativas nessas regiões, mas lidando com o fato de não haver demanda comercial para todas as ruas, especialmente as secundárias.
A iniciativa mais visível é a do Vancouverismo, onde o modelo de torres no pódio possui townhouses com fachada ativa no entorno das quadras. Todos diziam que era uma loucura e que ninguém iria querer morar nelas, mas estavam enganados. São um grande sucesso.
No Brasil, temos iniciativas tímidas, mas que constituem experiências concretas a serem estudadas.
Na Cidade Pedra Branca, foram lançados apartamentos-jardim nos térreos e voltados para as ruas. Mais uma vez todos disseram que era uma loucura e que ninguém iria querer morar neles.
E vale ressaltar que a Pedra Branca é um bairro aberto e localizado ao lado da maior favela de Santa Catarina.
O resultado é que esses apartamentos são hoje extremamente valorizados e disputados.
A Mesma Pedra Branca lançou recentemente um empreendimento com unidades flexíveis, live-work.
Nelas, as unidades são constituídas de térreo e primeiro andar, voltadas para as ruas, e os seus proprietários têm três opções:
– Morar embaixo e em cima
– Trabalhar embaixo e morar em cima
– Trabalhar embaixo e em cima
O ponto comum dessas três iniciativas é que as unidades residenciais voltadas para as ruas estão em torno de 50 cm acima do nível da calçada para dar privacidade aos seus moradores, mas manter os olhos na rua.
Apesar de elas possuírem o recuo frontal ajardinado que Gabriela menciona em seu texto, são soluções pioneiras no sentido de dotar zonas valorizadas de fachadas ativas residenciais.
Elas apontam para a possibilidade, antes inimaginável, de que existem pessoas não só dispostas a morar em residências térreas, mas a pagar caro por isso, em função dos outros atrativos da moradia e de sua vizinhança.
Daí para o surgimento de residências térreas em zonas efetivamente centrais pode ser um passo natural no futuro, depois de quebrado o estigma.
Agora, retomo o ponto da divisão entre zonas centrais e periféricas.
Dei minha sobre fachadas ativas residenciais em áreas centrais, urbanas e dotadas de infraestrutura.
Porém, conforme a cidade vai se afastando dessa centralidade, o custo da terra vai sendo reduzido e com ele o adensamento, além do caráter residencial ir se impondo.
O que eu acho é que, nesses casos, o planejador urbano não deveria tomar uma decisão única para todas as pessoas e residências da cidade proibindo residências sem recuos frontais, pois a mesma multiplicidade de fatores e interesses continua existindo, com as pessoas podendo escolher suas moradias em função de fatores como preço, localização, tamanho e tantos outros.
Mais uma vez, reforço que essa decisão deve ser de cada família e não imposta por alguém sentado em um gabinete e sem a menor condição de conhecer as infinitas dinâmicas da sociedade.
Entendo que seja do interesse público que exista a maior quantidade de fachadas ativas possível. Isso é bom para a segurança, para ter ruas vibrantes e com pessoas nelas.
Assim, o planejador urbano não deveria impedir a existências de edificações sem recuos frontais ou laterais, como faz hoje.
Ao contrário, ele deveria permitir que qualquer pessoa que queira construir casas e comércios sem recuos possa fazer isso.
Mais do que isso, ele deveria incentivar esse tipo de ocupações através de diversos mecanismo urbanísticos ou tributários, como aumento do potencial construtivo.
Aqueles que desejem ter residências com privacidade continuarão a ter essa possibilidade, mas aqueles que desejarem construir fachadas ativas poderão fazê-lo.
Nenhum planejador urbano, por mais iluminado e bem-intencionado que seja, jamais conseguirá ser melhor do que o mercado na oferta dos produtos que as pessoas querem.
Se ninguém quiser morar em casas com fachada ativa, essa oferta não existirá. Simples assim.
Mas, se por algum motivo, houver demanda para elas, as pessoas poderão construí-las, beneficiando, assim, a coletividade.
Resumindo o que eu penso sobre fachadas ativas residenciais:
– Deixem cada pessoa decidir se quer ou não morar em residências com elas.
– Fachadas cegas, muros e grades deveriam ser proibidos em áreas centrais.
– Fachadas ativas, comerciais ou residenciais, deveriam ser permitidas e incentivadas em todo o resto da cidade, mas nunca impostas.
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