Dos deslocamentos a pé, passando pelos trens, bondes e bicicletas, até chegar à priorização dos carros, as localidades foram se adaptando e expandindo conforme novas formas de fazer os trajetos eram desenvolvidas. Os efeitos dessas modificações são sentidos até hoje nos municípios, no morar e no bem-estar dos indivíduos.
O tamanho e o formato das cidades foram sendo alterados pelas mudanças sociais, econômicas e tecnológicas ocorridas em diferentes épocas da história da humanidade. Mas, nenhuma dessas transformações teve tanta influência no planejamento urbano como os avanços dos meios de locomoção e na maneira como eles afetam o tempo despendido por cada pessoa para ir de casa até o trabalho. À medida que o transporte ficou mais rápido, as localidades tornaram-se maiores, pois havia uma alternativa para os indivíduos residirem mais longe dos centros urbanos, mas continuarem a acessá-los através de uma curta viagem.
Para o físico italiano Cesare Marchetti, as pessoas sempre estiveram dispostas a gastar cerca de meia hora do seu dia no percurso, só de ida, de suas habitações para irem aos seus empregos ou para realizarem outras atividades. Essa ideia foi apresentada em 1994 e ficou conhecida como Constante de Marchetti, descreve matéria da Bloomberg. Esse princípio tem um reflexo relevante na vida urbana e no desenho dos municípios, como, por exemplo, no valor dos terrenos que são determinados pela sua acessibilidade – ou seja, pela velocidade com que o meio de deslocamento consegue chegar até essas terras.
Na visão do físico italiano, agrega reportagem da BBC, cada cidadão possui um “orçamento diário de viagem” de em torno de 60 minutos (ida e volta) que pode ser utilizado de diversas formas, com cada um optando pelo tipo de locomoção que for mais indicado para suas condições. No caso daqueles que vivem perto do trabalho, os indivíduos podem caminhar ou pedalar até o lugar de destino. Já, se as estradas e o transporte público forem eficientes, eles podem se afastar ainda mais dos pontos centrais e de onde se concentram as vagas de emprego. Porém, reforça a publicação, independentemente de qual for a maneira eleita para fazer os trajetos, as pessoas levarão aproximadamente a mesma quantidade de tempo para isso.
O conceito foi idealizado por Marchetti a partir de dados reunidos pelo engenheiro de transportes Yacov Zahavi, que pesquisou na década de 1970 o comportamento de viagem dos cidadãos, e que foram comprovados por distintos estudos concretizados em outros períodos. Em 2013, um levantamento comparou os tempos médios dos deslocamentos nos Estados Unidos, entre 1980 e 2010, e verificou que eles tinham se modificado pouco nos últimos 30 anos, mesmo com a qualificação do transporte coletivo, relata a BBC.
Marchetti especulou também que – baseado no pensamento que uma hora por dia é o máximo que as pessoas estão dispostas a suportar para fazerem seus percursos – os primeiros seres humanos, andando a pé em uma velocidade de cerca de cinco quilômetros por 60 minutos, teriam um raio territorial de 2,5 quilômetros. O físico testou a sua teoria analisando as terras associadas a aldeias individuais na Grécia – áreas estabelecidas ao longo de muitos séculos – e descobriu que essas regiões tendiam a ter em torno de cinco quilômetros de diâmetro, o que apoiava a sua ideia inicial. Hoje, segundo a BBC, nas cidades mais densamente povoadas, nos quais os moradores dependem mais dos meios coletivos de locomoção, 30 minutos não levam muito além de dez quilômetros.
O deslocamento mais rápido oportunizado pela evolução das tecnologias de transporte, acrescenta a Bloomberg, permitiu que as localidades ocupassem mais terrenos, expandindo seus limites e reduzindo os preços dos lotes e, com isso, diminuindo os custos dos imóveis nesses novos espaços. Apesar da média de tempo destinada aos trajetos de ida até o trabalho ter se mantido parecida entre os municípios de hoje e os de milênios atrás, é importante ressaltar que as realidades variam entre as cidades de um mesmo país e em relação às de outras nações e que há pessoas que acabam gastando bem mais de 30 minutos no transporte, algumas por escolha e muitas por necessidade.
Da antiguidade até a Revolução Industrial, aponta a publicação, as localidades eram percorridas pela maioria da população a pé e não cresceram mais do que três quilômetros de diâmetro. Os serviços principais ficavam no seu ponto central e seu desenvolvimento ocorria a partir desse lugar para o entorno, em um máximo de até 30 minutos de caminhada, como detalhou Marchetti. A Roma Antiga, exemplifica a Bloomberg, contava com aproximadamente 1 milhão de cidadãos em uma área de pouco mais de três quilômetros, mesmo território da Paris medieval, que ia da Praça da Bastilha até o Museu do Louvre.
Nem mesmo a chegada da locomoção puxada por cavalos alterou muito o padrão da estrutura dos municípios ou a sua dimensão. Em uma breve viagem pelo tempo, a publicação lembra como a criação de novos meios de transporte impactou as mudanças no modo de viver e no tamanho das cidades. A ferrovia oportunizou pela primeira vez que indivíduos com poder aquisitivo mais alto pudessem ter casas fora dos centros urbanos, em territórios de baixa densidade e longe da superlotação, saneamento precário e surtos de doenças, e pegassem o trem para irem até seus empregos. A Inglaterra foi pioneira na implementação desse tipo de deslocamento, em 1830, que logo foi seguido por outras localidades da Europa e dos Estados Unidos.
Essa novidade levou à instalação de pequenas aldeias no entorno das estações, os subúrbios ferroviários. A próxima revolução na locomoção, de acordo com a Bloomberg, foi a chegada das bicicletas que se popularizaram e permitiram aos integrantes das classes trabalhadoras viajarem mais rápido do que a pé, podendo assim residirem mais afastados do trabalho. Junto com elas vieram os bondes elétricos – que tiveram o seu primeiro equipamento em operação em Richmond (Virginia, EUA), em 1888. A combinação desses dois meios de transporte garantiu às pessoas um deslocamento mais ágil que caminhando ou em veículos de tração animal e promoveu uma grande expansão dos municípios e novos bairros para a classe média em terrenos antes agrícolas.
Automóveis entram em cena e viram o centro das decisões de planejamento urbano
Antes dos carros serem onipresentes nas ruas, outra maneira de fazer os trajetos oportunizou que mais cidadãos, de diferentes classes sociais, realizassem seus percursos com maior velocidade e morassem mais longe das zonas centrais: o metrô. Ele possibilitou que os indivíduos vivessem a uma distância de até 13 quilômetros de seus empregos e ainda assim chegassem até eles em até 30 minutos. Isso gerou transformações no desenho dos municípios, com os cortiços superlotados sendo substituídos por prédios e arranha-céus, cinemas e outras características urbanas que atraiam mesmo as pessoas que estavam a quilômetros de distância dessas comodidades. E uma nova estrutura passou a ser incorporada à paisagem para viabilizar o acesso e a circulação dos trens.
Já os automóveis, como muitas das tecnologias, eram inicialmente algo restrito para as classes mais ricas. Sua popularização ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, conforme a Bloomberg, e foi impulsionada por incentivos governamentais e pela construção das vias expressas, que cortaram as cidades e asseguraram rapidez para aqueles que preferiam e podiam ter habitações fora das densas regiões centrais, em unidades únicas erguidas em terrenos com quintais. Os motoristas dos subúrbios, complementa a publicação, podiam agora viajar cerca de 30 quilômetros em até meia hora.
Os efeitos do estímulo ao uso intenso dos veículos e do planejamento dos espaços com o foco em fazer os cidadãos circularem com maior velocidade são bem conhecidos nos ambientes urbanos. Congestionamentos, poluição ambiental e sonora e influência no bem-estar e na saúde dos indivíduos são alguns dos problemas causados por essa visão para o desenvolvimento das localidades. Com mais de 4,4 milhões de pessoas residindo nos espaços urbanos dos municípios, cerca de 56% da população mundial, e a perspectiva de ter quase sete em cada dez indivíduos vivendo nas cidades até 2050, segundo o Banco Mundial, os desafios para resolver essas dificuldades são enormes e abrangem desde oferta de imóveis a preços acessíveis, infraestrutura e serviços qualificados, transporte e emprego.
Ainda de acordo com a instituição financeira, a estimativa é que a expansão territorial ultrapasse o aumento da população em torno de 50%, o que representa um acréscimo de 1,2 milhão de quilômetros quadrados de novas áreas urbanas construídas no mundo até 2030. Essa ampliação pressiona mais os recursos naturais e eleva o consumo global de energia e a emissão de gases de efeito estufa. As localidades, revela o Banco Mundial, são responsáveis por 66,6% do consumo de energia e por mais de 70% dos gases liberados na atmosfera. Para a organização, a criação de municípios verdes, resilientes e inclusivos depende da ação de governos nacionais e das cidades para elaborar políticas nesse sentido e fazer os investimentos necessários.
Futuro das localidades: planejamento deve considerar modificações que ficaram no pós-pandemia
A rotina atual de deslocamento casa-trabalho, tempo perdido em engarrafamentos e demora e superlotação nos serviços de transporte público podem causar uma série de prejuízos ao bem-estar da população, como salienta reportagem do BuzzFeed. Distintos estudos, informa a publicação, demonstram que esses fatores estão ligados ao maior estresse, reflexos negativos no sono, na pressão arterial e nas interações sociais. Uma pesquisa de 2020 nos Estados Unidos apurou que grande parte dos entrevistados que atuavam remotamente, por não precisarem irem até seus escritórios, tinham mais tempo para se dedicarem a sua saúde e família, sem que isso afetasse a sua produtividade.
Outro levantamento citado pelo BuzzFeed, divulgado no American Journal of Preventive Medicine, em 2018, constatou que cada hora adicional de locomoção equivalia a 15 minutos de perda de sono. Essa situação, com o tempo, pode elevar a ansiedade e a confusão mental e contribuir para um maior risco de diabetes tipo 2. Municípios que possuem infraestrutura para que mais pessoas caminhem ou pedalem para os seus empregos e outras atividades apresentam menores índices de doenças cardíacas e obesidade, assinala matéria do Somos Cidade.
Além de terem que solucionar essas questões, aprimorando o transporte coletivo, as calçadas e ciclovias para que mais usuários escolham maneiras de se deslocarem mais sustentáveis e saudáveis, e definir estratégias para enfrentar as mudanças climáticas e o déficit habitacional, as cidades precisam ainda se adequar aos comportamentos que ficaram no pós-pandemia. A Covid-19 alterou a forma como os indivíduos fazem seus trajetos e as razões para isso são muitas e vão desde a maior quantidade de funcionários em sistemas híbridos, com dias em suas moradias e outros no escritório, o que reduz os percursos para o trabalho, até o incremento do comércio eletrônico, a maior preocupação com a prática de exercícios e busca por imóveis em bairros mais distantes dos centros e em contato com a natureza.
Relatório do instituto de pesquisa Brookings, fundado em Washington D.C., utilizou informações de viagens de 109 regiões metropolitanas dos Estados Unidos para verificar como a pandemia tinha afetado as locomoções naquele país. Os dados, que foram coletados entre o outono de 2019 e o de 2022, apontaram que as pessoas trocaram os deslocamentos mais longos por outros mais curtos, porém mais frequentes, com saídas para comer, fazer compras e outras tarefas – padrão percebido em todas as áreas estudadas. O levantamento destaca também que essa nova realidade é uma oportunidade para planejadores urbanos e políticos usarem a rede de transporte local – incluindo ciclovias e outros designs de ruas seguras – para estabelecer uma proximidade entre o lugar onde os cidadãos vivem e aqueles para onde eles querem ir.
De acordo com a pesquisa, as viagens para o trabalho caíram de 16% de todos os deslocamentos feitos no outono de 2019 para 12% no mesmo período de 2022. A quilometragem desses trajetos teve uma redução também. Em média, as famílias viajaram 25% menos milhas em dias úteis para seus empregos em 2022 em comparação com 2019. Por sua vez, as saídas gastronômicas registraram um aumento de 31% em 2022, mesma movimentação observada nos percursos feitos para atividades sociais e compras.
Repensar a maneira como os municípios são idealizados a partir dessas transformações é necessário para o futuro das cidades. Outra iniciativa sugerida pela Bloomberg, para diminuir a dependência dos carros e melhorar a acessibilidade, é adensar os municípios, principalmente, em espaços que já contem com infraestrutura qualificada e estejam perto de oportunidades de trabalho e de lazer.
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