Prédios

O ambiente urbano influencia o comportamento e o bem-estar das pessoas, apontam diversos estudos. Diante desse fato, movimento iniciado no Reino Unido chama a atenção para a necessidade de criar construções que inspirem emoções e alegria e tornem os espaços mais interessantes e convidativos para quem passa pela calçada.

Já parou para pensar quantas vezes você atravessou a rua para ver de perto uma edificação por causa do material utilizado, do seu paisagismo ou para entender melhor as suas reentrâncias, acessos e o que funciona naquele lugar? “Um prédio pode despertar o interesse de um transeunte aproximar-se ou não”, ressalta a arquiteta Gisele Borges de Carvalho, sócia-fundadora do escritório Gisele Borges Arquitetura, sediado em Belo Horizonte (MG), ao explicar o efeito que essas construções podem ter nos indivíduos. Assim como algumas edificações são atrativas, acrescenta a profissional, outras estimulam as pessoas a andarem rápido e olhando para o chão, “tamanha a sua desimportância”.

As construções, sejam casas, prédios, praças ou vazios, moldam as localidades e definem uma paisagem urbana, influenciando o comportamento e o bem-estar de seus moradores. “Daí a importância da qualidade dessas edificações”, reforça. Gisele salienta que diferentes sensações são despertadas nos indivíduos quando eles caminham por uma via estreita, bem arborizada e com um conjunto arquitetônico harmônico e ao atravessarem uma rua de 30 metros de largura, tráfego intenso e que não permite visualizar o que existe do outro lado. Como as cidades são uma mistura de vias acalmadas com outras de muito trânsito, complementa a arquiteta, a forma como as regiões e a sua arquitetura são idealizadas pode afetar a escolha do trajeto que será feito.

O impacto dos prédios nos municípios precisa ser cada vez mais considerado, argumenta o coordenador do Somos Cidade, empresário e fundador e presidente de honra da Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil (Adit), Felipe Cavalcante. E isso tanto na parte estética, na sua plasticidade e beleza, como no quanto eles contribuem para o ambiente urbano. “Os edifícios colaboram para a segurança e a vida nos espaços através da interação entre as áreas públicas e privadas, das fachadas ativas, da permeabilidade visual e dos locais privados de uso público”, detalha.

A relevância de se repensar as construções que estão sendo erguidas nos municípios e os seus reflexos sobre as pessoas levou o artista e designer inglês Thomas Heatherwick a lançar, em 2023, a campanha “Humanizar (Humanise, em inglês)” para colocar em evidência o assunto e tentar impedir a propagação de prédios identificados por ele como entediantes e “sem alma”. Com previsão de duração de dez anos, a iniciativa está convidando o público a enviar imagens para o “Índice de Edifícios Chatos no Reino Unido”, por meio do site da ação. A intenção com isso é começar uma discussão sobre como essas construções fazem os cidadãos se sentirem.

Levantamento encomendado pelo designer para o instituto de pesquisa de Londres (Inglaterra) Thinks Insight mostra que 76% dos 2.029 entrevistados concordaram que a aparência dos prédios afeta a sua saúde mental. Outro dado apurado pelo estudo, segundo o jornal The Guardian, foi que 54% dos participantes relataram que andar por regiões com construções entediantes mudou a maneira como se sentiam. Uma revisão dos levantamentos sobre os efeitos psicológicos dos edifícios nos indivíduos, realizada pela New Economics Foundation, revela que o projeto externo de um prédio pode impactar o humor, os níveis de estresse, de confiança mútua, a disposição para ajudar estranhos, assim como a mobilidade e a prática de exercícios.

Heatherwick, que é fundador do Heatherwick Studio e responsável pela atração Vessel, em Nova York, pela repaginação dos tradicionais ônibus vermelhos de dois andares da capital inglesa, entre outros empreendimentos, defende que arquitetos e desenvolvedores devem criar construções que inspirem sentimentos de alegria e estímulo, agreguem à vida urbana e sejam mais humanas. Ele assinala no material de divulgação da “Humanizar” que a principal regra a ser seguida é a de elaborar uma edificação que seja capaz de prender a atenção das pessoas durante o tempo que elas levam para passar por esse complexo.

Para alcançar esse resultado, o designer lista três “mantras”: o da emoção como função nos prédios, concentrar as qualidades interessantes do empreendimento na distância da porta das construções, para que possam ser observadas a cerca de dois metros, e conceber edifícios com a “esperança e expectativa” de que eles durem 1 mil anos. A questão da sustentabilidade, inclusive, é um ponto fundamental destacado na iniciativa de Heatherwick. Ele declarou, em entrevista para a revista Wired, que se complexos que ninguém ama seguirem sendo feitos nas cidades, há o risco de um excesso de estruturas que serão demolidas em um futuro não muito distante, isso porque não haverá ninguém para brigar por sua continuidade – gerando resíduos, emissões de gases de efeito estufa e impactos ambientais na construção de novos prédios, no transporte dos materiais e nas obras.

O que torna um edifício entediante ou interessante?

Junto com a campanha, o designer Thomas Heatherwick publicou o livro “Humanise – A Maker’s Guide to Building Our World (Humanizar – Um Guia do Fazedor para Construir Nosso Mundo), no qual lista, entre outras questões, as particularidades que enxerga em um prédio enfadonho. Entre elas estão a falta de profundidade de muitos empreendimentos modernos, eles serem muito planos, o que impede superfícies onde a luz e a sombra podem atuar, e a ausência de ornamentação. Além dessas, o designer fala sobre as edificações mais atuais serem muito retas, estabelecendo uma horizontalidade repetitiva, em desacordo com a natureza, monótonas e não terem sentido de personalidade ou de lugar, muito longe das construções que costumavam contar uma história e celebrar o seu entorno.

Na visão da arquiteta Gisele Borges de Carvalho, um prédio entediante tem ordem, simetria e padronização demais, não tem complexidade. “Desses que em um relance rápido você já decifra tudo e que, portanto, não retém a sua atenção. O ser humano é capaz de analisar milhões de informações por segundo. Por exemplo, quando você atravessa uma rua, está atento ao trânsito, barulho, vento, sol, publicidade e outros estímulos, que promovem sua maior ou menor curiosidade”, descreve. Durante muito tempo, recorda o coordenador do Somos Cidade, Felipe Cavalcante, os edifícios tinham em comum a falta de recuo entre o espaço público e privado e entre os empreendimentos. “E mais marcante que isso eram os ornamentos colocados nas fachadas”, frisa.

Para começarem a ser interessantes, de acordo com ele, as construções precisam de uma certa quantidade de elementos decorativos, que farão os indivíduos repararem neles, e cada vez que eles olharem para esses prédios algo novo será percebido, bem como podem ter variação de profundidade, pavimentos tipos de tamanhos distintos e plantas na fachada. “Assim, as pessoas não vão se entediar. O excesso de repetição torna os edifícios chatos, como aqueles muito simples, geralmente com vidro e concreto, elementos frios e sem detalhes. Já os empreendimentos complexos possuem ornamentos e materiais mais quentes, como madeira. Eles só não podem ser caóticos demais, pois o ser humano não gosta de tédio ou de caos, tem que ficar no meio do caminho”, alerta.

Gisele pondera ainda que um bom prédio tem que ser competente na sua implementação, gerar integração com o município, com o bairro e ser generoso com a vizinhança e com a rua. “Não deve ser fechado em si mesmo, precisa promover o contato de dentro para fora e vice-versa através de gentilezas urbanas, sejam elas fachadas ativas ou fruição. E deve ter apelo estético sim, como dizia o poeta Vinicius de Moraes: ‘beleza é fundamental’”, afirma. Em seus projetos, a arquiteta busca entender a necessidade do cliente, uma vez que a construção precisa ser pertinente. Depois disso, ela faz uma leitura do local, da topografia, insolação, vizinhança, da via, da comunidade e do contexto histórico e cultural.

Por último, Gisele se atém às restrições legais. A profissional ressalta que entre os critérios que pautam os seus trabalhos estão a conexão do edifício com o terreno e com a rua, evitar empreendimentos fechados em si mesmos e complexidade volumétrica para chamar a atenção dos transeuntes. “A identidade arquitetônica é outro aspecto importante para entregar para o endereço algo muito melhor do que recebemos, porque é assim que se constrói cidades: por meio de boas referências”, pontua. Um dos exemplos de prédios interessantes indicado por ela é o Edifício Niemeyer, na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte.

Ela explica que esse prédio tem sua taxa de ocupação maior que o próprio terreno (ele invade o espaço público aéreo) e um coeficiente de aproveitamento de 12 a 15. “E uma beleza ímpar, alcançada através de sua forma simples e a repetição de um único elemento em todas as suas fachadas. É possível utilizar esses parâmetros urbanísticos em todo e qualquer terreno? É claro que não. Mas, é imensamente pretensioso por parte dos nossos legisladores urbanos criarem normas para um município inteiro”, sustenta. Gisele enfatiza que é urgente pensar os bairros e as vias públicas de uma maneira diferente para que seja possível obter arquiteturas que irão contribuir com a paisagem da localidade. “Analisar o contexto, a individualidade, em detrimento de impor um único regramento”, aponta.

Capturando a atenção em três distâncias

Os edifícios precisam ser interessantes a partir de três distâncias: da cidade, da rua e da porta, conforme o designer Thomas Heatherwick. A partir de 40 metros, relata reportagem da revista Building, um indivíduo deve conseguir apreciar a forma geral de um prédio, mesmo de longe a construção tem a capacidade de provocar sentimentos. Já a 20 metros, que seria o ponto de vista da via pública, o observador pode apreciar melhor as características do empreendimento, que possui atrativo visual suficiente para despertar a curiosidade, fazendo o transeunte olhar novamente para a edificação.

E na distância de 2 metros, perto da porta do complexo, é possível ver os detalhes dos ornamentos, os materiais e os elementos que impactam aqueles que passam pela região. O hotel idealizado pelo escritório de arquitetura WOHA, o Parkroyal Collection, em Singapura, e o conjunto habitacional social Edgewood Mews, da empresa Peter Barber Architects, no norte de Londres, foram os exemplos dados por Heatherwick de prédios que passariam no teste das distâncias.

Sobre as opiniões do designer inglês, a arquiteta Gisele Borges de Carvalho conta que ele é um tanto polêmico. “Li o livro dele recentemente e concordo com muitas ideias que ele escreveu, como a de que precisamos humanizar nossos municípios.” A profissional acredita que um bom edifício cumprirá com os requisitos das distâncias elencados por Heatherwick sem que o arquiteto tenha projetado a partir dessas premissas. A boa arquitetura, segundo ela, procura atender não só aos residentes, aqueles que pagaram pelas unidades de uma construção, mas também ao imenso volume de pessoas que não desembolsaram recursos, porém irão desfrutar da paisagem urbana ao irem para os seus empregos e escolas e ainda aqueles que vão alterar seus percursos porque acham mais agradável seguirem por aquele caminho.

Hora de um afastamento do modernismo?

Prestar mais atenção ao exterior dos empreendimentos e assumir mais riscos nos trabalhos concebidos para enriquecer a vida urbana é o que o designer Thomas Heatherwick espera dos arquitetos e desenvolvedores com o lançamento do livro e da campanha. Em entrevista para a revista Building, ele disse também que os prédios modernos dão prioridade aos interiores, sendo a ornamentação das fachadas muitas vezes entendida como uma espécie de “vaidade superficial”. O profissional comenta ainda que os edifícios foram sendo simplificados, a partir do fim da Primeira Guerra Mundial, devido à influência dos movimentos de design europeus e, após a Segunda Guerra Mundial, da escola modernista e, principalmente, do arquiteto e urbanista Le Corbusier – a quem Heatherwick atribui boa parcela da culpa pela “onda de construções entediantes” que se espalha pelas localidades do mundo há quase um século.

Precisamos superar o modernismo na arquitetura, ele é datado, era novo e ficou velho. Mais do que criticar, esse movimento acabou com a beleza clássica, com a contradição arquitetônica, coisas que os seres humanos gostam”, avalia o coordenador do Somos Cidade, Felipe Cavalcante. Para ele, a arquitetura contemporânea deveria ser mais autoral, pegando um pouco do que cada escola tem de bom. “Como os elementos decorativos e a ausência de recuos da tradição clássica e os materiais industrializados do modernismo e, com isso, criar algo que represente a atualidade”, sugere.

Em relação às críticas de Heatherwick ao modernismo, a arquiteta Gisele Borges de Carvalho acha perigoso taxar o estilo modernista como culpado de tudo. “Até porque nas décadas de 1940, 1950 e 1960 tivemos uma produção arquitetônica de excelente qualidade no Brasil. O Centro de Belo Horizonte, onde vivo, é repleto desses exemplos”, pontua. No entanto, ela concorda que no pós-guerra a procura por um grande volume de moradias no menor espaço de tempo também desencadeou soluções ruins. A profissional lembra que quando Le Corbusier propôs a Cidade Radiante, em 1933, ele queria oferecer uma abundância de áreas verdes e inúmeras habitações. O resultado desse conceito foram prédios iguais desprovidos de identidade com o local e os usuários. “Foi radical e quase totalitário na ordem, simetria e padronização, premissas que penso que seria positivo nos afastarmos e abrir lugar para o novo, a identidade de cada região e os desejos individuais”, detalha.

Dentro desse contexto, a arquiteta também reitera a necessidade de se falar sobre a moradia social no País. “Temos um déficit habitacional e um programa para esse segmento que continua pensando em fazer mais por menos, sem, contudo, analisar o que deve estar inserido nesse menos e que seria capaz de melhorar a vida dos indivíduos”, reflete. Ela compartilha que recentemente leu um texto do arquiteto chileno Alejandro Aravena, um dos ganhadores do prêmio Pritzker, que falava sobre esse tema e o desafio de identificar com construir uma metragem tão pequena, cerca de 30 metros quadrados (não havia recursos para as casas de 80 metros quadrados que ele considerava razoável), e proporcionar dignidade para as famílias que iriam para essas residências sociais.

E ele dizia que o mais importante era onde elas ficavam, para que essa população tivesse acesso a trabalho, cultura e lazer de qualidade e que, ao longo da vida, essas moradias também valorizassem. A equação então é a densidade em boa localização geográfica”, descreve. Gisele enfatiza ainda que o programa habitacional brasileiro tem feito escolhas ruins ao incentivar altas densidades nas franjas dos municípios, dificultando o acesso das pessoas a empregos melhores, pois elas gastam muitas vezes de quatro a cinco horas em deslocamentos diários para realizar suas atividades. “A regeneração urbana tão propagada em inúmeras capitais do País não pode desperdiçar a oportunidade de viabilizar residências dignas em uma localização adequada. A moradia social necessita de mais competência técnica para além da benevolência dos governos”, conclui. 

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