As localidades não param de crescer e de usar recursos e produzir resíduos. Compreender os reflexos desse processo contínuo na natureza e na escassez de insumos e propor melhorias estruturais e comportamentais são o foco dos estudos sobre os fluxos de materiais e de energia dos municípios. Com isso, o objetivo é deixar áreas urbanas mais resilientes, equitativas e favoráveis ao clima.
As cidades consomem cerca de 75% dos recursos do planeta e são responsáveis por 60% a 80% das emissões globais de gases de efeito estufa, conforme dados do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Índices que devem aumentar caso modificações não sejam promovidas na maneira como as localidades são planejadas e funcionam e na lógica com que os insumos são utilizados nos processos produtivos e pelas pessoas. Diante desse cenário e com a previsão da população mundial chegar a 9,9 bilhões em 2054 e de em torno de 68% dos indivíduos estarem vivendo em espaços urbanos até 2050, encontrar alternativas para potencializar o uso das matérias-primas e diminuir o seu desperdício é essencial para o futuro dos municípios, de seus moradores e da natureza.
Para entender como fazer isso, pesquisas sobre metabolismo urbano vêm sendo elaboradas por diversas cidades, que buscam compreender os seus fluxos de consumo de recursos e energia e de geração de resíduos. Com esses levantamentos, as localidades podem desenvolver novos mecanismos para qualificar esses procedimentos, monitorar os impactos das intervenções e observar as relações entre diferentes materiais, setores, tecnologias e pessoas, explica a organização Metabolism of Cities, fundada em 2014 e que auxilia comunidades a implementarem iniciativas nesse segmento e fornece uma rede de informações sobre o assunto.
Assim como o corpo humano, os municípios são organismos vivos em constante evolução, compara o jornalista Sven Eberlein em artigo para a instituição The Nature of Cities. Enquanto o sono, exercícios e lazer podem ser vistos como indicadores de bem-estar dos indivíduos, a forma como a água, os passageiros ou os alimentos se movimentam através do ecossistema urbano determina a saúde e a sustentabilidade de uma cidade, descreve Eberlein. Ele acredita que quanto mais se souber sobre quais os recursos que fluem para o sistema das localidades, como eles estão sendo empregados e o que acontece com aquilo que o organismo não precisa para se sustentar (os resíduos), maior será a probabilidade de as pessoas terem uma vida saudável e equilibrada.
Nas investigações sobre os percursos seguidos pela água em um município, exemplifica matéria do Movimento Circular, é percebido o quanto desse recurso poderia retornar para a própria cidade e para a natureza em vez de ser descartado. Entre as sugestões dadas pela publicação está a de que os subprodutos do tratamento de esgoto poderiam ser convertidos em energia para as habitações e os nutrientes obtidos destinados para recuperar o solo para a agricultura. Além disso, um dos principais problemas de poluição nas localidades, a grande quantidade de lixo enviada para aterros, poderia ser mitigado com o resíduo orgânico virando adubo através da compostagem.
O conceito de metabolismo urbano não é inteiramente novo, afirma Eberlein. Segundo ele, Karl Marx e Friedrich Engels, no século XIX, já apontavam que a atividade humana altera os processos biofísicos. Mas, somente em 2007, no artigo “The Changing Metabolism of Cities (As Mudanças no Metabolismo das Cidades)”, de Christopher Kennedy e uma equipe de engenheiros civis da Universidade de Toronto (Canadá), uma avaliação mais abrangente da anatomia de um município foi formalmente realizada pela primeira vez.
Eles definiram o metabolismo urbano como a “soma total do processo técnico e socioeconômico que ocorre nas localidades, resultando no crescimento, produção de energia e eliminação de desperdícios”. A partir disso, o estudo sobre o tema evoluiu de abordagens mais acadêmicas para aplicações práticas. Em seu artigo para o The Nature of Cities, Eberlein relata que distintas metodologias e ferramentas foram desenvolvidas desde então para ajudar na coleta e compreensão dos dados obtidos nas cidades, como os diagramas metaflow – que mostram os fluxos dos municípios e trazem insights de como eles poderiam ser melhor interligados.
Para que as localidades sejam mais sustentáveis, eficientes em seus serviços, resilientes e equitativas, elas precisam conseguir mais com menos, defende a Organização das Nações Unidas (ONU) por meio do seu Programa para o Meio Ambiente, ou seja, produzir mais com menos matérias-primas e descarte. A instituição ressalta que atualmente a maioria das cidades do planeta possui um metabolismo linear, onde grande parte dos recursos que entram em seus sistemas saem como resíduos. A chave para a transformação dos municípios, redução dos efeitos na natureza e combate à crise climática – que vem, evento após evento, trazendo mais reflexos e estragos, como demonstram as enchentes ocorridas em maio deste ano no Rio Grande do Sul – é a migração para um metabolismo circular, no qual o que seria desperdiçado torna-se útil novamente.
Benefícios vão além da otimização do uso de recursos naturais
As pesquisas sobre metabolismo urbano colaboram, de acordo com a ONU, na identificação da infraestrutura mais apropriada para cada localidade e no planejamento de intervenções para poupar matérias-primas e diminuir os gastos financeiros a longo prazo. Porém, não são apenas essas as vantagens de entender todos os fluxos de utilização dos insumos em uma cidade, há ainda a contribuição na redução das emissões de gases de efeitos estufa, preservação de áreas verdes e mananciais de água e transição para fontes de energia mais sustentáveis que as fósseis.
Conectadas pelo princípio de procurar ações que levem à diminuição do consumo de recursos e da geração de resíduos através de um novo olhar para a maneira de produzir, usar e descartar matérias-primas, levantamentos no campo da economia circular já descobriram problemas específicos para diferentes fluxos do metabolismo urbano. O conceito de economia circular começou a ganhar destaque a partir de 1989, quando foi lançado o livro “Economics of Natural Resources and the Environment (Economia dos Recursos Naturais e Meio Ambiente)”, de David W. Pearce e R. Kerry Turner, ambientalistas e economistas ingleses, que citam o termo pela primeira vez como um contraponto ao modelo de economia linear, informa artigo da plataforma Meio & Mensagem.
Uma das dificuldades verificadas, conforme reportagem do Movimento Circular, é no emprego de insumos na construção civil. A publicação assinala que esse setor produtivo gera impactos para a natureza e os indivíduos em diversas situações, como na destinação inadequada dos entulhos. Mal geridos, esses resíduos podem causar assoreamento de rios, obstrução de ruas e proliferação de doenças por vetores biológicos.
Em um município circular, salienta a entidade, centros de processamento transformariam todas as sobras dos canteiros de obras em recursos para abastecer as localidades. Outras estratégias que podem ser adotadas pelas empresas são o uso de práticas e produtos sustentáveis como, por exemplo, o bioconcreto, e de estruturas modulares, com peças que se encaixam e podem ser desmontadas, ampliadas ou reduzidas, levando a menos desperdícios.
A diversificação da matriz energética das cidades é outra medida indicada pelo Movimento Circular, com a utilização de fontes como a solar e a eólica. Além disso, a publicação reforça que a recuperação dos solos e o plantio de alimentos de qualidade podem ser feitos por meio da compostagem dos resíduos orgânicos – minimizando o volume de material que iria para o lixo. Outra forma seria a aproximação das zonas rurais das urbanas, diminuindo a necessidade de transporte dos produtos e os alimentos que acabam se perdendo ou estragando nesses trajetos.
Metabolismo urbano participativo e as experiências de Cusco e Medellín
Incluir os cidadãos na apuração de informações sobre os seus bairros, captando dados que não estão disponíveis em fontes convencionais, e permitir que eles sejam atuantes na mudança de suas comunidades para lugares ecologicamente saudáveis, resilientes e equitativos é a proposta do metabolismo urbano participativo, como conta o jornalista Sven Eberlein em artigo para a entidade The Nature of Cities. Isso possibilita, segundo ele, uma abordagem do assunto de baixo para cima, transdisciplinar e na qual o codesign ocorre com a sociedade, o que eleva as chances desse estudo não acontecer apenas uma vez.
Essa metodologia foi testada inicialmente no Cairo (Egito) e em Casablanca (Marrocos) através da Iniciativa Global Dados Urbinsight da organização Ecocity Builders. Em 2013, ela foi implementada em Medellín (Colômbia) e, em 2016, em Cusco (Peru). No município histórico peruano foram treinados 75 profissionais para a coleta e utilização das ferramentas geoespaciais e das informações comunitárias para o planejamento e sugestões de infraestrutura verde. Ao todo, 800 residentes locais, políticos, arquitetos, professores e estudantes participaram ativamente das atividades promovidas pelo Urbinsight e mais de 3,5 mil moradores foram envolvidos nos eventos públicos, apresentações e workshops de demonstração.
Os bairros centrais da cidade que vêm sofrendo, cada vez mais, com o problema do lixo e buscam soluções para aperfeiçoar a gestão dos resíduos, assim como para deixar os espaços mais limpos e oportunizar que as pessoas tenham acesso a uma alimentação saudável, foram o foco da ação. Depois de conhecerem como funcionam as pesquisas de metabolismo urbano, o grupo fez auditorias nas comunidades para levantar dados sobre o consumo e o desperdício de materiais pelos habitantes, que acompanharam o trabalho e ajudaram separando os seus resíduos sólidos, pesando-os e analisando a sua composição.
A equipe descobriu que aproximadamente 50% do descarte doméstico era orgânico e, com base nisso, decidiu estudar formas de construção de módulos de compostagem caseiros, que foram coprojetados com os residentes e testados em casas de quatro regiões. Para facilitar o entendimento de tudo o que foi apurado e auxiliar na tomada de decisões, foram criados diagramas que mostravam os fluxos dos recursos, a sua distribuição dentro do município e como eles foram empregados. A próxima etapa do programa abrange a idealização de Planos de Sustentabilidade de Bairro.
Medellín, que enfrenta os desafios da disparidade econômica entre seus moradores, foi outra localidade da América Latina a aplicar a estratégia do metabolismo urbano participativo. Na fase I do projeto na cidade colombiana, planejadores urbanos, empresas de serviços públicos, acadêmicos e organizações municipais sem fins lucrativos uniram-se com membros da Comuna 8, uma das áreas vulneráveis da localidade que fica nas encostas fora do Centro e é composta por vários grupos formais e de baixa renda e de bairros informais, para averiguar quais eram as necessidades do lugar e de seus indivíduos.
A equipe atuou no recolhimento de informações e mapeamento da gestão de resíduos e dos fluxos de materiais desses espaços para atender à demanda apontada como prioritária pelos seus líderes comunitários. Na cidade, desde o começo da medida, foram treinadas 120 pessoas envolvidas com o planejamento do município. Esse grupo, em conjunto com os moradores e suas entidades representativas, reuniu dados que permitem elaborar políticas contínuas de desenvolvimento para os segmentos de água, energia, alimentos, insumos e resíduos.
Na fase II, a pesquisa de informações foi efetuada em um bairro de rendimento misto do Centro de Medellín, o Boston, que por ficar situado entre regiões comerciais mais ricas é, frequentemente, ignorado pelo governo local. O resultado dessa situação é que os habitantes dessas comunidades, em geral, possuem renda mais baixa, desemprego elevado e serviços de lixo, segurança e saúde reduzidos e aumento da poluição do ar. Com os dados sobre o recolhimento de resíduos em mãos, a equipe propôs iniciativas para elevar a eficiência, o reaproveitamento e a reciclagem dos materiais nas casas dos cidadãos e na vizinhança para diminuir o desperdício em ambientes públicos. O programa encontra-se agora na etapa de criação do Plano de Vizinhança Sustentável.
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