Restrições de uso do solo, falta de financiamento e de mão de obra e oposição a novos empreendimentos são alguns dos obstáculos para que mais habitações sejam erguidas nas localidades. A Associação Americana de Planejamento e a Liga Nacional de Cidades, ambas dos EUA, lançaram um guia com ações para acelerar a produção de residências e reverter esse cenário.
A escassez de moradias e a consequente elevação dos preços dos aluguéis e das propriedades são os maiores desafios enfrentados pelos municípios atualmente. Pesquisa realizada pela Liga Nacional de Cidades (NLC, na sigla em inglês), em 2023, revelou que disponibilizar mais imóveis é uma “alta prioridade” para os gestores de localidades norte-americanas. Com a participação de 301 municípios, dos 50 estados daquele país, o estudo apontou ainda que a oferta de habitações não está crescendo proporcionalmente à demanda, o que acaba exacerbando as dificuldades de acesso às unidades, especialmente para as famílias com rendimentos mais baixos.
Diante desse panorama, a NLC e a Associação Americana de Planejamento (APA, na sigla em inglês), publicaram, neste ano, o livro “Housing Supply Accelerator Playbook: Solutions, Systems, Partnerships (Manual de Aceleração do Abastecimento de Moradias: Soluções, Sistemas, Parcerias)”. O guia traz uma série de iniciativas que podem ser desencadeadas pelas prefeituras para incentivar a edificação de um número maior e mais diversificado de residências e também para renovar e qualificar o parque habitacional existente. Somente nos Estados Unidos, as entidades estimaram que há uma carência de cerca de 4 milhões de imóveis.
As medidas e os exemplos relatados no livro, que descreve etapas, estratégias e detalhes de como as ações podem ser concretizadas, são focadas na realidade das localidades norte-americanas, mas podem auxiliar e inspirar lugares de todo o mundo que passam por esse mesmo problema. No Brasil, o déficit era de 6 milhões de domicílios em 2022, uma alta de em torno de 4,2% em relação a 2019. Os dados foram divulgados no começo de 2024 pela Fundação João Pinheiro, responsável pelo cálculo da falta de unidades no País em parceria com o Ministério das Cidades, conforme matéria da Agência Brasil. Ainda segundo o levantamento, a falta de moradias é mais acentuada entre as famílias com até dois salários mínimos de renda.
Escassez de profissionais, limitações de financiamento para novas obras e reformas, barreiras para o acesso a subsídios, restrições das leis de uso do solo e das normas de construção e oposição comunitária e política são os principais obstáculos ressaltados pelos administradores públicos que responderam à pesquisa da NLC. De acordo com eles, são esses fatores os que mais contribuem para a carência de residências em seus municípios. A proposta do manual, assinalam seus idealizadores, é justamente disponibilizar ferramentas e caminhos que permitam às cidades adotarem – e adaptarem – as iniciativas mais adequadas aos seus contextos.
Antes da criação do guia, a NLC, a APA e o gestor de Tacoma (Washington) lançaram a campanha de Aceleração de Oferta de Habitação, em 2022, reunindo líderes e planejadores das localidades, parceiros ligados ao setor imobiliário, universidades e organizações privadas e públicas para orientar os esforços para aumentar a oferta de imóveis. Durante o ano passado, foram efetuados encontros para debater os pontos mais importantes que deveriam estar presentes no livro e que poderiam ser mais efetivos para as prefeituras.
A partir dessas reuniões foram determinados eixos para nortear as decisões dos governos: o de Construção e Desenvolvimento, Finanças, Uso e regulamentação do solo e Desafios relacionados à força de trabalho e infraestrutura dos municípios. Entre as conclusões que os participantes chegaram destacam-se a necessidade de elevar as parcerias público-privadas para minimizar a carência de domicílios, mais envolvimento comunitário, investimento em métodos inovadores de edificação e maior entendimento sobre os processos de obtenção de recursos para a execução dos projetos de novas unidades.
Já no que se refere às regras de utilização das terras, um aspecto reforçado foi a demanda por mais transparência, previsibilidade e flexibilidade dentro do cenário regulatório. Entender as limitações do zoneamento urbano e as oportunidades de mudanças foi ainda indicado pelos integrantes da campanha. Além de fomentar mais complexos, ficou evidenciada a demanda de preservar e melhorar o estoque de moradias, aprimorando a sua segurança e eficiência energética. Investimentos locais, estaduais e federais em infraestrutura também são fundamentais para impulsionar que mais residências sejam erguidas.
Capacitar desenvolvedores de pequena escala foi mais uma recomendação dada durante os eventos, possibilitando que mais atores atuem no mercado e tragam mais diversidade para os produtos disponibilizados, atendendo a diferentes públicos. Em South Bend (Indiana), exemplifica o manual, a administração da cidade possui um kit de ferramentas que ajuda os pequenos empresários imobiliários a comprarem propriedades, fazerem a devida diligência, obterem as licenças e a resolverem outras questões ligadas a esse segmento.
Investir na qualificação dos profissionais da construção civil e na atração de mais pessoas para essa área – a necessidade nos EUA excede em muito a oferta no momento – foram salientadas nos eventos. Conforme o guia da NLC e da APA, o setor naquela nação requer aproximadamente 740 mil novos trabalhadores ao ano. Outros elementos observados foram o envelhecimento dos integrantes dessa categoria, em 2021 a idade média dos profissionais era de 42 anos, e a dificuldade de encontrar indivíduos especializados para atuarem com a renovação de habitações.
Conheça medidas sugeridas pelo livro para estimular a edificação de mais imóveis
Para facilitar a utilização de seu manual, a Liga Nacional de Cidades e a Associação Americana de Planejamento dividiram as estratégias que podem ser implementadas pelos municípios em capítulos temáticos, com referências de aplicações práticas dessas ações pelas localidades e os resultados alcançados até o momento. Os conteúdos foram separados em dicas de como fazer parcerias e colaborações, mostrando mecanismos para identificar os núcleos de decisão sobre moradia em cada comunidade e fortalecer a participação; como buscar fontes variadas de recursos para os empreendimentos; as políticas para assegurar que mais residências sejam erguidas e como as restrições de uso do solo podem ser reavaliadas para colaborar nessa meta.
No campo de Construção e Desenvolvimento foram elencadas iniciativas que vão desde o incentivo ao envolvimento de todas as partes interessadas no assunto para atingir os objetivos habitacionais até o inventário das terras disponíveis para a produção de mais propriedades e a formação de parcerias com organizações para fomentar que mais pessoas trabalhem com a edificação de imóveis. Confira a seguir mais detalhes de quatro medidas indicadas pelo guia nesse segmento.
Avaliação abrangente dos processos de licenciamento e titularidade das terras. A ideia é que as gestões das localidades revisem e atualizem os seus protocolos com frequência, buscando lacunas, dificuldades e oportunidades para agilizar as solicitações dos empreendedores, encontrando um equilíbrio entre o atendimento às leis e a rapidez nos procedimentos. Segundo o livro, é importante ouvir o retorno dos envolvidos nessa cadeia produtiva e estar atento às mudanças de panorama para que as normas acompanhem a realidade e respondam às demandas.
A prefeitura de Portland (Oregon) faz, anualmente, um estudo para aperfeiçoar os seus processos de licenciamento, narra o manual da NLC e da APA. Entre os pedidos feitos pelos entrevistados estava a maior facilidade para achar as informações sobre os licenciamentos e navegar pelo site da cidade. A maior clareza dos requisitos mínimos de apresentação da solicitação de licença também foi enfatizada pelos participantes, assim como de todas suas etapas, desde o início do procedimento até a sua conclusão.
Impulsionar projetos de pequeno porte. A recomendação nesse sentido é que as administrações municipais examinem e implementem estratégias que agilizem a concretização de complexos residenciais como duplex, tríplex, prédios com até quatro unidades, chalés e outros formatos de moradias que estejam adequados à escala do bairro em que serão erguidos. Para isso, a NLC e a APA explicam que podem ser concebidas distintas ações, como a idealização de planos de design pré-aprovados. Eles forneceriam aos desenvolvedores um caminho simples e econômico para a execução de seus empreendimentos habitacionais.
Groveland (Flórida) elaborou um portfólio de planos arquitetônicos pré-aprovados, em consonância com o zoneamento urbano e os códigos de construção, para aliviar os encargos financeiros dos projetos, as restrições de tempo e as incertezas normalmente associadas a esse tipo de atividade para acrescentar mais imóveis intermediários ao seu estoque. A meta, com isso, é estimular o crescimento inteligente da região em conjunto com a preservação de ambientes verdes e para a agricultura.
Outra possibilidade listada pelo guia é o lançamento de programas de assistência técnica para treinar os desenvolvedores de pequeno porte e indivíduos sem experiência anterior nesse setor, compartilhando dados sobre como financiar os empreendimentos, traçar estratégias de maneira eficaz e compreender os meandros do processo de edificação. Isso pode ser realizado através da criação de iniciativas próprias dos governos locais, do investimento em medidas já existentes ou por meio de parcerias para estabelecer uma rede mais ampla de desenvolvedores. De acordo com as entidades organizadoras do livro, isso pode trazer mais diversidade de incorporadores e de opções de domicílios.
A falta de acesso ao capital para iniciar um projeto é mais um dos problemas enfrentados pelos empreendedores de pequena escala. Facilitar a obtenção dos recursos é outra ação sugerida pela publicação, seja através de empréstimos ou de subsídios para cobrir os custos de aquisição dos terrenos e de licenciamento, pagar taxas vinculadas aos complexos, entre outros.
Inventário das terras disponíveis. O manual indica que as gestões das cidades façam uma verificação criteriosa dos terrenos que podem ser otimizados para o desenvolvimento residencial. Isso pode ser efetuado com a adoção de um sistema de mapeamento para documentar terrenos baldios, espaços subutilizados e de áreas comerciais vazias e de grandes shoppings que não atendem mais às necessidades da comunidade. Manter uma lista atualizada desses lugares e usá-los para a produção de unidades auxilia também a revitalizar esses bairros.
Uma auditoria concretizada pela prefeitura de Boston (Massachusetts), em 2022, descobriu que havia mais de 882 mil metros quadrados de terrenos baldios ou subutilizados, representando 5,4% de todas as terras pertencentes ao município. Os resultados do programa Terras Públicas para o Bem Público contribuirão para a localidade decidir a melhor forma de usar essas regiões para atender às demandas de seus moradores. Esses lotes poderão ser transformados em espaços para a instalação de habitações seguras e acessíveis em pontos-chaves, para a concepção de projetos de empreendimentos comunitários para qualificar a coesão de Boston e ainda para abrir acomodações transitórias para as pessoas que vivem na rua.
Investimento em técnicas inovadoras de construção. Apostar na tecnologia para ofertar mais imóveis é outra política defendida pelo guia da Liga Nacional de Cidades e pela Associação Americana de Planejamento. As casas pré-fabricadas são uma das recomendações do livro nesse contexto. Erguidos completamente dentro de uma fábrica sobre uma estrutura permanente, esses domicílios são transportados prontos, seguindo as regras de edificação e de segurança nacionais, até o lugar onde serão instalados.
As residências modulares são outro caminho possível dado pela publicação. Elas são montadas no ponto desejado e cumprem os códigos locais, estaduais ou regionais do município onde serão construídas, como as demais moradias devem fazer. Além delas, há as unidades painelizadas. Essas habitações são compostas por painéis pré-fabricados contendo o telhado, paredes e sistema de piso que são levados até o endereço em que serão implementadas. Existem ainda os imóveis impressos com tecnologia 3D – que são produzidos camada por camada, muitas vezes utilizando cimento – e as feitos com madeira maciça, que são conhecidos por sua resistência, menor tempo de construção e maior sustentabilidade.
Uma colaboração entre a prefeitura de Jackson (Mississippi) e a Associação de Habitação Fabricada da cidade e a associação Neighborhood Assistance Corporation of America (NACA) pretende aumentar a qualidade e o acesso a casas pré-fabricadas. A intenção com essa estratégia é alterar a visão que existe em relação a esse formato de residência e mostrar que podem ser erguidas opções de moradias mais sustentáveis e acessíveis dessa maneira, colaborando para diminuir o déficit de unidades na localidade.
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