crise habitacional

Entre avanços e retrocessos, o estado norte-americano vem buscando estratégias para incentivar a construção de novas moradias, melhorar a acessibilidade às unidades e rever suas regras de zoneamento. Medidas que podem auxiliar outras nações a encontrarem caminhos para diminuir a escassez de residências e seus altos valores.

A natureza exuberante, o cinema e os vinhos colocaram a Califórnia como um destino referência para inúmeras pessoas que sonham em conhecer ou viver na região dos Estados Unidos que reúne locais como Los Angeles e Hollywood, São Francisco, San Diego, Malibu e Napa. No entanto, morar no estado norte-americano é cada vez mais difícil para a maioria dos indivíduos devido à crise imobiliária que vem, ao longo das décadas, reduzindo a oferta de unidades e aumentando os preços das propriedades e dos aluguéis. Entender os diversos fatores que levaram a essa situação pode ajudar o Brasil e outros países a colocarem em prática soluções para mitigar esse problema e não seguirem o mesmo caminho californiano.

Para atender à demanda de seus residentes, o “Estado Dourado”, como também é chamado, precisa erguer 180 mil casas anualmente para acompanhar o seu crescimento populacional, segundo cálculo efetuado pelo Departamento de Habitação e Desenvolvimento Comunitário da Califórnia. Porém, aponta a revista Fortune, a média registrada por ano, na última década, é de menos de 80 mil novas moradias. As raízes desse cenário remetem aos anos 1970, quando os imóveis nessa área passaram a valer mais como um ativo financeiro do que um lugar para viver, afirmaram especialistas, economistas e ativistas nesse campo à publicação.

E, conforme os entrevistados, quando se trata do mercado residencial, uma parcela cada vez mais relevante dos Estados Unidos parece ter uma visão similar a dos californianos. O economista William Fischel analisou que o Estado Dourado começou a parecer diferente do restante daquela nação nos anos 1970 e 1980, período em que menos unidades passaram a ser edificadas e os seus valores tiveram incrementos maiores que os da média nacional. Ele reforçou ainda que esse movimento está conectado à conscientização dos proprietários sobre os vários aspectos que poderiam afetar negativamente o preço de suas casas unifamiliares – outra característica marcante da paisagem da Califórnia.

“A formação de riqueza, portanto, se inclinou para as habitações à medida que as moradias passaram a ser cada vez mais vistas como um investimento”, avaliou Fischel. Junto a essa mudança de comportamento quanto aos imóveis, a década de 1970 trouxe outras transformações que acabaram impactando a disponibilidade de residências, como as modificações financeiras, a expansão do movimento ambientalista e a criação de novas leis de zoneamento e regulamentações. O medo da superpopulação e do superdesenvolvimento, com a consequente elevação do consumo de energia e de recursos naturais, desencadeou um sentimento de anticrescimento, revelaram os especialistas à revista, dificultando que mais empreendimentos fossem construídos, principalmente, em São Francisco e Los Angeles.

Com as alterações promovidas nas normas de uso e ocupação do solo, o zoneamento unifamiliar se espalhou pela Califórnia, permitindo que apenas uma unidade fosse erguida na maioria dos lotes das cidades do estado – processo que ocorreu em todo aquele país. A separação dos bairros por funções, afastando casas, comércios e serviços, também se tornou mais comum. As restrições da legislação, acrescentou à Fortune a pesquisadora sênior da Brookings Metro, Jenny Schuetz, tinham inicialmente a intenção de prevenir ou minimizar os danos ao meio ambiente ocasionados pelo desenvolvimento urbano. Porém, em sua opinião, elas viraram uma “ferramenta para bloquear o crescimento indesejado que pode ser usado por donos de propriedades altamente organizados, não necessariamente com o propósito de proteger a natureza”.

Essas mudanças resultaram na alta dos custos da habitação já na década de 1970, recordaram os entrevistados. Nos anos seguintes, a esse panorama foram se somando outros elementos que contribuíram para agravar a falta de moradias na Califórnia, como a ausência de investimentos nesse setor de todas as esferas públicas, de mão de obra e de financiamento e o maior poder de decisão sobre a edificação de imóveis que foi dado aos governos municipais. Iniciativa realizada pelo entendimento que havia de que as prefeituras possuíam mais conhecimento sobre a realidade e as demandas de suas localidades. A carência de recursos e de programas nacionais para residências de baixa renda também dificultou a acessibilidade às unidades.

Avanços e retrocessos no combate ao déficit habitacional

Além da escassez de propriedades, essas ações encareceram as moradias e os valores das locações e aumentaram o número de pessoas vivendo nas ruas da Califórnia – a estimativa da Fortune é que o estado abriga cerca de 22% da população de sem-teto daquele país. Os custos dos imóveis na região são há muito tempo mais elevados do que a média dos Estados Unidos, tendo crescido substancialmente nos últimos anos, como demonstra relatório de acessibilidade à residência do segundo trimestre de 2024 do Gabinete de Análise do Legislativo californiano. Os preços das unidades de nível médio do Estado Dourado são, de acordo com o estudo, mais que o dobro dos valores de habitações do mesmo tipo naquela nação.

Uma pesquisa do Joint Center for Housing Studies, da Universidade de Harvard, divulgada em junho deste ano, ressaltou que cerca de uma em cada quatro famílias que possuem casa nos Estados Unidos estão “preocupantemente sobrecarregadas”, sendo os encargos para quem aluga ainda maiores, informa matéria da CNN. Os locatários que gastam mais da metade da renda familiar com moradia e serviços públicos tiveram uma alta em 2022, alcançando 12,1 milhões de indivíduos, 1,5 milhão a mais do que os índices de antes da pandemia de coronavírus.

Na Califórnia, complementa a reportagem da Fortune, grande parte dos inquilinos destina mais de 30% da sua renda para o aluguel e aproximadamente um terço deles paga mais de 50%, o que classifica mais de 3 milhões de domicílios como “sobrecarregados com locações” e mais de 1,5 milhão de imóveis como “severamente sobrecarregados com aluguel”. Entre as políticas implementadas para tentar reverter essa conjuntura e impulsionar a construção de mais residências, o Estado Dourado liberou, em 2016, que unidades habitacionais acessórias (ADUs, na sigla em inglês) fossem erguidas em lotes de casas unifamiliares, detalha matéria do Los Angeles Times.

No entanto, uma das regulamentações californianas mais simbólicas para responder aos problemas de acessibilidade à moradia foi a SB 9, de 2021, que acabou com o zoneamento unifamiliar em quase todo o estado e restringiu a capacidade das administrações das cidades proibirem novas edificações. A norma, segundo o The Wall Street Journal, oportuniza que os donos de imóveis unifamiliares vendam ou construam um duplex, tríplex ou um pequeno prédio com até quatro unidades em seus lotes. Apesar do avanço da legislação, até 2023, menos de 500 proprietários solicitaram a subdivisão de seus terrenos para que mais residências fossem erguidas, relata o jornal.

Uma das dificuldades enfrentadas por aqueles com interesse em ter mais habitações em suas terras é que muitos municípios estabeleceram outras barreiras para a edificação, como limites de altura, de metragem quadrada e até mesmo de paisagismo, descreve o The Wall Street Journal. Um exemplo dado pela reportagem é o de Temple City, que fica no Condado de Los Angeles. A localidade impede as casas do SB 9 de terem entradas de garagem ou estacionamento fora da rua, bem como não emite passes para os moradores deixarem seus carros na via pública durante a noite.

A cidade exige ainda um pátio de em torno de 93 metros quadrados entre os imóveis e especificava o tamanho e o modelo dos beirais, varandas e venezianas, que devem seguir o estilo arquitetônico do Renascimento Colonial Espanhol. Outro revés, foi a decisão, em abril deste ano, de um juiz do Tribunal Superior do Condado de Los Angeles de que a legislação que determinava o fim do zoneamento unifamiliar na Califórnia é inconstitucional, o que pode levar à invalidação da regulamentação nos maiores municípios do Estado Dourado, explica o Los Angeles Times.

A justificativa para a medida, que se aplica à Redondo Beach, Carson, Torrance, Whittier e Del Mar – que contestaram a SB 9 –, foi que a norma não fornece unidades especificamente para residentes de baixa renda e que, por isso, “não pode anular as proteções constitucionais estaduais oferecidas às práticas de zoneamento locais”. A falta de segurança jurídica é mais um empecilho à construção de mais propriedades na Califórnia, contexto que pode ser observado em outras áreas e países.

Californianos estão levando a crise habitacional para os vizinhos

A expansão das cidades para atender às necessidades de moradias é outra consequência da carência de imóveis. Com isso, os municípios precisam ainda instalar infraestrutura e serviços públicos em novos espaços nas margens das localidades. Esse espraiamento também reflete na diminuição das áreas verdes e no aumento do uso de veículos particulares e do tempo gasto pelas pessoas para realizarem suas tarefas diárias. O déficit de unidades acaba levando ainda muitos indivíduos a se transferirem para outras cidades ou estados, deslocando a crise de escassez de residências.

Isso é o que vem acontecendo na Califórnia, conforme reportagem do Los Angeles Times, com milhares de habitantes deixando a região em busca de alívio no elevado custo de vida. O destino da maioria deles, nos últimos dois anos, foi o Texas, de acordo com levantamento de migração de estado para estado feito pela agência governamental US Census Bureau. Além disso, salienta o jornal, mais de 143 mil californianos se mudaram para o Arizona entre 2021 e 2022 e aproximadamente 111 mil pessoas foram para Nevada, nesse mesmo tempo.

Esse crescimento populacional resultou em um cenário parecido com o vivido no Estado Dourado, baixa oferta de propriedades e alta demanda, combinação que está subindo o preço das moradias e das taxas de juros. Em vez de procurar estratégias para resolver a questão e aprender com os erros da Califórnia, outros estados norte-americanos estão trilhando os mesmos passos, destaca matéria da Fortune. No Arizona, por exemplo, o legislativo votou, em 2023, contra um projeto de lei que teria alterado os atuais requisitos de zoneamento e limitado o controle municipal. O mesmo ocorreu no Colorado, que poderia ter aprovado o fim do zoneamento unifamiliar em várias de suas localidades, e no estado de Nova York, a governadora Kathy Hochul, apresentou um plano para erguer 800 mil novas casas na próxima década, iniciativa que foi parada pela oposição nas negociações orçamentárias e, após isso, reduzida significativamente.

Minneapolis, que foi a primeira cidade dos Estados Unidos a eliminar o zoneamento unifamiliar em cerca de 70% de seus terrenos, permitindo imóveis multifamiliares, assim como liberou que residências mais densas fossem edificadas perto do sistema de transporte, terminou com os requisitos mínimos de estacionamento fora da rua e aumentou o financiamento de habitações acessíveis, também está lidando com retrocessos. Recentemente, um juiz decidiu que a regulamentação do uso do solo, assinala a revista, poderia causar “danos irreparáveis ao meio ambiente” e deveria ser revogada. O município está apelando da decisão.

Cientes das causas que geraram a atual crise de moradias na Califórnia e que está se expandindo para outras regiões dos Estados Unidos, inclusive para pequenos municípios, e as políticas que obtiveram retorno e aquelas que falharam na missão de agregar mais propriedades aos estoques e tornar o acesso à moradia mais fácil, o Brasil e outros países podem definir suas ações para evitar chegar à mesma realidade. E ainda buscar soluções que se encaixem mais adequadamente a suas necessidades. 

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