Habitação em crise

Com arte, paisagismo, mobiliário urbano, lojas, restaurantes e pistas para ciclismo e caminhadas, municípios estão mudando a forma como os indivíduos enxergam e utilizam esses lugares. Conheça algumas dessas medidas que têm recuperado a vitalidade dessas regiões e oferecido novas opções de ambientes coletivos.

Á reas que antes afastavam as pessoas pela falta de segurança, iluminação e atratividade, os vãos embaixo de viadutos e de estações de transporte estão sendo transformados por cidades de diversos países em espaços para o lazer, a convivência, atividades físicas e eventos – reconectando bairros divididos por essas gigantescas estruturas viárias. Os impactos desses complexos no tecido urbano, na ocupação dos lugares onde estão instalados, na mobilidade e na sustentabilidade têm sido debatidos em várias localidades do mundo, com muitas delas decidindo pela demolição desses empreendimentos e outras pelo seu reaproveitamento para outras funções. 

O High Line, em Nova York (EUA), é um exemplo de revitalização dessas infraestruturas. O parque linear foi implementado em uma antiga linha ferroviária elevada no lado Oeste de Manhattan e conta com trilhas por entre jardins, arte urbana e ambientes para o descanso, interação social, apresentações culturais e para a gastronomia. No Brasil, o destino do Minhocão (Elevado Presidente João Goulart), em São Paulo (SP), é discutido há uma década, como recorda o Uol. Apesar de já existir uma lei que assegure o fim da circulação de carros por suas faixas e sua modificação para um parque público, o viaduto continua sendo utilizado durante a semana para o trânsito e liberado aos finais de semana para a população caminhar, pedalar, apreciar a arte que se espalha pelas empenas de prédios do entorno e para outras ações que ocorrem ali. 

Além de interromperem a paisagem urbana e a conexão da região com o seu entorno e o restante do município, esses complexos viários ocupam uma extensa área, que acaba subutilizada, pouco cuidada e insegura. A escritora e ativista Jane Jacobs observa em seu livro “Morte e Vida de Grandes Cidades” que no espaço próximo a viadutos, linhas férreas, hospitais e campi universitários podem se estabelecer “fronteiras desertas”. Esses empreendimentos, salienta ela, impõem barreiras para que os indivíduos se locomovam por esses lugares, separando vizinhanças, tirando o potencial econômico dos ambientes e levando, em muitos casos, comunidades à decadência. 

A escritora assinala que essas fronteiras não são apenas geográficas, mas também sociais. As ferrovias, exemplificou Jane, definiram nos Estados Unidos o termo do “outro lado da linha do trem”, uma frase que ganhou um sentido relacionado à prosperidade ou não do local que fica em uma das margens dos trilhos. Outro aspecto reforçado pela escritora em sua obra é que a rua adjacente às fronteiras desertas costuma ser o ponto final para o uso misto do solo e que, se essa região for pouco frequentada por quem vive perto dessas estruturas de maior porte, a tendência é que essa via vire uma área morta e, consequentemente, menos segura. 

Ela alerta ainda que esse marasmo acaba se espalhando para outras ruas dos bairros, dificultando a circulação de pessoas. No entanto, Jane argumenta que algumas dessas barreiras urbanas são fundamentais para o desenvolvimento dos municípios e que é preciso reconhecer as suas vantagens sem esquecer os seus reflexos negativos. Dessa maneira, avalia a escritora, é possível corrigi-los. Um dos caminhos apontados por ela para isso envolve o incentivo à diversificação do uso do solo, a criação de espaços de interação, o estímulo para que esses lugares sejam utilizados em distintos horários, inclusive à noite.

Jane acredita que elevar a densidade em regiões próximas a infraestruturas que ocupam um amplo território pode auxiliar a trazer vida de volta para esses ambientes, bem como a instalação de quadras curtas e próximas. Algumas cidades já estão colocando em prática essas alterações, com uma multiplicidade de soluções e participação dos residentes. Essa inclusão dos usuários nas decisões é importante para entender a vocação das áreas, as atividades que já ocorram nelas e também para encontrar alternativas para lidar com questões sociais, como a dos sem-teto que usam esses complexos como abrigo. 

Toronto reinventa espaço sob rodovia elevada e proporciona novas experiências

Pessoas passeando com seus cachorros, fazendo ioga, caminhando ou aproveitando os ambientes verdes podem ser vistas atualmente em um trecho de cerca de 800 metros abaixo da Gardiner Expressway, em Toronto (Canadá). O que era anteriormente um lugar negligenciado e nada convidativo passou por intervenções e hoje é ocupado em diferentes momentos do dia, descreve a Fast Company. O local, que se estende ao longo de um bairro histórico do município e se conecta a uma grande região com vegetação, possui trilhas para pedestres e ciclistas, instalações artísticas e cruzamentos redesenhados para garantir a segurança de todos. 

Mais recentemente, a área ganhou um jardim experimental que filtra as águas pluviais que escorrem da estrada. A água da chuva corre por canos para vasos de plantas nativas, que ajudam a filtrar a poluição do líquido antes dele fluir para o Lago Ontário, que fica no entorno da estrutura. O parque Gardiner, como vem sendo chamado, recebeu também novas rampas de acesso e caminhos elevados que facilitam o deslocamento pelo espaço, que conta ainda com pedras de rio – fazendo a conexão com ambiente em volta. No inverno de 2023, foi colocada no trecho uma trilha de patinação no gelo. 

O trabalho de redefinição do lugar é efetuado há alguns anos pela Bentway, uma organização sem fins lucrativos, em parceria com o governo da cidade e seus habitantes. O objetivo do grupo agora é ampliar a medida para o restante da extensão da rodovia, que tem mais de 6,4 quilômetros e foi erguida na metade do século passado. A proposta inicial da administração local era remover a estrada, porém, em 2016, o Conselho Municipal de Toronto decidiu que ela permaneceria, mas seria utilizada de outra forma pelos indivíduos. 

Via Viva muda movimentação e usos de terrenos abaixo de viaduto em Buenos Aires

O famoso bairro chinês da capital argentina – que já foi set para o filme Um Conto Chinês, com Ricardo Darín – viu sua paisagem se transformar depois que o projeto Via Viva começou a ser realizado, em 2023, relata o jornal La Nación. Desde a modificação, que implementou um polo gastronômico no vão até então desocupado, a região tem atraído mais de 28 mil pessoas a cada final de semana, conforme o veículo. A área é a primeira de três a serem atendidas pela iniciativa, que abrangerá a extensão da linha de trem sob o viaduto Mitre, que vai desde Belgrano até Palermo, totalizando 4,5 quilômetros, 30 mil metros quadrados de estabelecimentos comerciais e 60 mil metros quadrados de espaço público.

Cada um dos setores do empreendimento terá uma abordagem diversa, no bairro chinês o foco será a implementação de restaurantes, cafés e sorveterias. O segundo trecho será composto por um corredor de concessionárias de automóveis de alto padrão e a última parte será formada por uma combinação de casas noturnas e lugares para comer. Ainda de acordo com o La Nación, quando for concluído, o Via Viva deve reunir em torno de 200 lojas. Os primeiros 400 metros da ação já foram finalizados no bairro chinês. Até o momento, foram investidos aproximadamente 8 milhões de dólares no complexo.

A última fase do projeto, no bairro de Palermo, deve ser terminada em 2025, com a chegada do Via Viva até o entorno do Hipódromo de Buenos Aires. Esse segmento é a maior aposta dos desenvolvedores e terá um ambiente de 6 mil metros quadrados destinados para bares temáticos e restaurantes de especialidades. Existe também a possibilidade de serem construídos escritórios e uma academia para impulsionar o uso da região em vários horários. A área abaixo do viaduto possuirá ainda calçadas largas para facilitar a movimentação dos pedestres, ciclovias e espaços verdes. 

Japão inova na ocupação de seus ambientes públicos para distintos negócios 

O país asiático tem um zoneamento urbano que promove a utilização mista de suas áreas, aliando moradia, comércio, entretenimento e serviços, empregando de maneira racional o território de suas cidades. Em Tóquio e outras localidades da nação, os vãos sob estações de trem também são aproveitados para a instalação de lojas, restaurantes e outros empreendimentos, além de serem lugares para a implementação de estratégias criativas, como a feita em Koganecho, distrito de Yokohama. Um trecho de em torno de 100 metros abaixo de um viaduto ferroviário foi alterado por sete arquitetos, segundo o ArchDaily, cada um deles ficando responsável por um setor. 

A passagem, que por muitos anos enfrentou problemas sociais por causa do mercado clandestino e por ser uma região de prostituição, iniciou a mudança do seu perfil em 2005, quando as atividades ilegais foram erradicadas do espaço. O Centro Koganhecho foi a solução encontrada para recuperar o lugar. Os sete escritórios de arquitetura planejaram uma galeria de arte, um café, uma biblioteca, um estúdio para artistas, um ambiente para reuniões e uma praça ao ar livre. 

Além da variedade de funções, foram empregados materiais acolhedores, como madeira, vidro e concreto, para redefinir a percepção que os indivíduos tinham do bairro e atrair mais pessoas para usarem a área. Desde 2008, ocorre no espaço um festival que aborda a relação entre os artistas que ocupam os ambientes, a comunidade do entorno e o intercâmbio com a Ásia. O Centro possui um programa de residência artística que possibilita essa aproximação entre esses públicos. Durante o evento, diferentes atividades são oferecidas e performances acontecem nas galerias e lugares abertos.

Koog aan de Zaan, na Holanda, reconecta região cortada por estrada elevada

Instalada às margens do rio Zaan, a aldeia de Koog aan de Zaan, próxima a Amsterdam, teve o seu tecido urbano dividido pela edificação da rodovia elevada A8, que começou a ser erguida na década de 1970. De um lado do município, revela o ArchDaily, ficou a igreja e de outro o restante da comunidade. Esse cenário passou por uma modificação entre 2003 e 2006, quando o escritório de arquitetura NL Architects elaborou o A8erna, que transformou o vão da estrada em 22,5 mil metros quadrados de área pública coberta e em 1,5 mil metros quadrados voltados para o comércio. 

No lugar foram implementados, após conversas com os residentes, uma pista de skate, uma galeria de graffiti, uma quadra poliesportiva, uma floricultura, uma peixaria, um supermercado, estacionamento para 120 carros e uma pequena marina, cita a publicação. A intervenção é complementada por outras medidas, como a conexão com uma parada de ônibus, praças e com a orla do rio Zaan, que foi remodelada. Para organizar as vagas para os veículos, elas foram concentradas em volta do mercado. 

Já na parte da iniciativa que fica junto ao rio, foi idealizada uma pequena baía que funciona como uma marina, cancha aquática para a prática de esportes e entrada para o canal. Com essas ações, informa o ArchDaily, o A8erna conseguiu reintegrar a cidade e conceber uma área dinâmica e agora bastante utilizada por seus habitantes – aproveitando uma grande cobertura existente e um vazio urbano.  

Projeto em Miami alia mobilidade e novos espaços coletivos para a comunidade

Com mais de 485 mil metros quadrados e 16 quilômetros de extensão, o parque linear Underline será construído abaixo da linha do Metrorail (metrô de superfície) e constituirá um corredor de mobilidade do Condado de Miami-Dade (EUA), unindo os diversos meios de transporte da região e os bairros vizinhos. Conforme informações do governo de Miami, a estrutura atenderá a 107 mil moradores em uma caminhada de dez minutos e facilitará a circulação entre comunidades e escolas, universidade, hospitais, shoppings e empresas.

A medida é resultado de uma parceria público-privada (PPP) entre o Departamento de Transporte e Obras Públicas, Departamento de Parques, Recreação e Espaços Abertos, Friends of the Underline e as cidades de Miami e Coral Gables. O projeto, que tem três fases (a etapa 1 já foi concluída), deve ser finalizado até 2026. No ambiente sob os trilhos do metrô serão instalados caminhos para pedestres e bicicletas, iluminação, sinalização e mais de 30 cruzamentos serão qualificados. As áreas coletivas contarão também com playgrounds, equipamentos para atividades físicas, quadras de basquete e vôlei, jardins de borboletas, campos de futebol, lugar para piquenique e mobiliário urbano. O Underline recebe ainda apresentações culturais e artísticas. 

Brasil busca alternativas para ocupação dos vãos de seus viadutos 

Distintas funções já são efetuadas sob as grandes estruturas viárias desenhadas para escoar o fluxo de automóveis das localidades brasileiras. Apesar de serem pouco valorizados e cuidados, esses espaços acabam sendo utilizados para a realização de iniciativas sociais e culturais, para a prática de esportes, como o skate, eventos, como feiras, e também para o comércio e serviços, como chaveiros, por exemplo. No entanto, a maioria desses complexos continua representando um lugar de insegurança nos municípios devido ao seu abandono, sujeira, falta de iluminação e ausência de atividades permanentes em seus ambientes. 

Em São Paulo (SP), destaca O Globo, em 2019 a prefeitura identificou 85 dessas infraestruturas com potencial para ganhar um novo uso. Porém, a promessa de incentivos para revitalizar essas regiões não foi adiante. Em 2023, de acordo com o jornal, apenas três parcerias foram firmadas com concessionárias interessadas em explorar comercialmente essas áreas: nos viadutos Antártica, Lapa e Pompeia, todos na Zona Oeste. Empreendedores entrevistados pelo veículo disseram que a falta de apoio da administração da cidade é um dos principais desafios para recuperar esses espaços, assim como a insegurança e o preconceito, que faz com que muitos indivíduos não participem das iniciativas nesses lugares.

Já em Porto Alegre (RS), a prefeitura municipal possui, desde 2020, um programa que permite que empresas e pessoas físicas adotem viadutos, pontes e trincheiras. Dois anos depois da publicação da lei que viabilizou essa solução, o viaduto José Loureiro da Silva, que fica no Centro Histórico da capital gaúcha, foi entregue restaurado pelos adotantes, a rede de postos Farroupilha, que fez reparos na estrutura e instalou um novo sistema de iluminação. O contrato, que tem duração de cinco anos, podendo ser renovado por mais cinco, teve como contrapartida a colocação de um contêiner da loja de conveniência Alegrow (que pertence à rede) no vão do viaduto. 

Atualmente, o governo local tem um edital de Chamamento Público para adoção aberto para os ambientes sob o viaduto José Eduardo Utzig, no bairro São João, que precisam de manutenção e novas atividades comerciais, de lazer ou esportes para intensificar o seu uso, segundo a administração de Porto Alegre. O mesmo mecanismo foi adotado para outros lugares, como o Viaduto Obirici, na Zona Norte da cidade.

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