Habitação em crise

Idealizadas inicialmente para garantir a saúde, o bem-estar e a segurança de seus residentes, as normas de uso e ocupação do solo acabaram estabelecendo obstáculos à construção de mais unidades e excluíram pessoas das áreas mais estruturadas, empurrando uma grande parte da população para longe das oportunidades de trabalho e lazer.

“A crise habitacional – só no Brasil o déficit é estimado em mais de 6 milhões de moradias, segundo dados da Fundação João Pinheiro (FJP) – reforça a urgência de repensar as regulamentações de zoneamento. Ao longo da história, as leis que norteiam o crescimento das localidades diminuíram os estoques de imóveis e elevaram os valores das propriedades, especialmente em bairros com infraestrutura mais qualificada, padrão socioeconômico mais alto e maior poder de influência junto aos órgãos que decidem os rumos dos municípios.

As definições sobre o uso e ocupação do solo e das atividades que podem ser exercidas em cada uma das regiões acentuaram esse problema, dificultando o acesso de muitos indivíduos, incluindo famílias com renda mais baixa e as novas gerações, à casa própria. Apesar da valorização das residências ser algo que todos desejam, aponta o coordenador do Somos Cidade, empresário e fundador e presidente de honra da Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil (Adit), Felipe Cavalcante, essa não deve ser a motivação para colocar barreiras à edificação de um número maior de unidades nos locais onde as pessoas desejam viver.

“Na hora que você restringe, reduz a oferta de habitações e aumenta o valor desses ativos. Enquanto os planejadores urbanos não reconhecerem isso e os impactos das limitações a que mais moradias sejam erguidas, a política urbana não conseguirá atingir o seu objetivo de gerar imóveis de qualidade com preços acessíveis para a população”, enfatiza Cavalcante. Ele comenta ainda que muitos indivíduos que se opõem a novos empreendimentos querem proteger o seu patrimônio e manter os seus bairros inalterados e impedir funções indesejadas e pessoas de padrões socioeconômicos diferentes em sua vizinhança.

“E isso inclui ser contra a verticalização e o uso misto”, exemplifica. O empresário pondera que mudanças geram muita insegurança e dúvidas e aqueles que estão há décadas em uma comunidade querem que ela permaneça do mesmo jeito. “Sob uma ótica individual isso faz sentido. Mas, por outro lado, o poder público deve analisar o que é melhor para o município. Em alguns momentos, a continuidade do status quo pode ser o mais adequado para a cidade. Porém, em outros, o maior adensamento do bairro, a alteração do zoneamento, modificação de uso, incremento da prestação de serviços e o crescimento da disponibilidade de unidades farão mais sentido”, descreve.

Para Cavalcante, essa é uma questão pontual, que deve ser avaliada caso a caso. No entanto, ele argumenta que essa decisão não pode ser apenas de quem reside no lugar em debate e quer ter o melhor da localidade para si, assim como elevar o valor de suas propriedades. Essa deliberação deve ser coletiva do município, pois a repercussão e os reflexos de não fazer as mudanças naquela comunidade serão sentidas nas áreas vizinhas. Nos Estados Unidos, assinala o empresário, está acontecendo uma grande discussão sobre o planejamento urbano e a reforma dos zoneamentos, desencadeada pelos efeitos que as normas de uso e ocupação do solo em vigência trouxeram.

Naquela nação, detalha o coordenador do Somos Cidade, o zoneamento permite apenas que casas unifamiliares sejam construídas na maioria dos territórios das localidades. “Com isso, eles conseguem evitar a presença de outros grupos sociais e raciais. Historicamente foi feito sempre assim”, recorda. Um dos primeiros registros de portaria com restrições para alguma atividade nos Estados Unidos é de 1885 e ocorreu em Modesto, na Califórnia, onde lavanderias – grande parte delas de imigrantes chineses – foram banidas de determinados espaços do município, relata o site Strong Towns.

A razão para a concepção das leis de uso e ocupação do solo, lembra a publicação, foi assegurar a saúde, o bem-estar e a segurança das pessoas através da separação das habitações, comércios e indústria. Contudo, essa forma de enxergar as cidades resultou no espraiamento das localidades, na característica suburbana da maioria dos municípios norte-americanos, na dependência dos carros e na exclusão da população mais pobre e negra das regiões qualificadas. Essa visão se espalhou, principalmente, a partir do zoneamento euclidiano, que recebeu esse nome devido a uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1926, sobre o caso do vilarejo Euclid (hoje cidade), em Ohio, que garantiu o seu direto de estabelecer como suas terras seriam utilizadas, bem como a altura e formato das moradias.

A localidade não foi pioneira em ter regras nesse sentido naquele país e em outros, como a Alemanha, indica o Strong Towns, mas foi a primeira a levar a situação a essa instância e aprovar que ambientes abertos e bairros históricos seriam conservados, os imóveis ficariam afastados de fábricas e os preços das unidades nos novos subúrbios seriam mantidos. Antes disso, complementa a publicação, o município de Nova York tinha lançado, em 1916, normas mais abrangentes para o desenho e ocupação de seus territórios. A publicação salienta também que o “verdadeiro ímpeto para a invenção de regulamentações de zoneamento foi o desejo de proteger e consagrar a residência unifamiliar como a forma urbana mais virtuosa e sacrossanta”. E alerta que não se pode ignorar os “fortes tons raciais” que cercaram as definições das leis de uso do solo e que “ninguém jamais desafiou com sucesso o poder de segregar ricos de pobres dentro de uma cidade, impondo certos tipos de habitação”.

Edificação de mais moradias é um dos caminhos para alterar cenário atual

O modelo de zoneamento urbano consolidado nos Estados Unidos foi adotado por muitas outras nações, como o Brasil, que enfrentam agora a mesma realidade de escassez de imóveis e os altos preços das propriedades existentes e dos aluguéis. Mesmo a valorização das unidades sendo um desejo em comum de seus donos, qualquer queda em seus valores devido ao aumento da disponibilidade de residências vale a pena, defende artigo da revista The Atlantic.

Isso porque, apesar de serem um investimento futuro, as habitações são também uma necessidade presente e a sua abundância (com mais moradias e maior densidade) diminui a desigualdade, incrementa a renda pessoal e eleva os índices de exercícios individuais. Além disso, com o desenvolvimento compacto das localidades, há uma redução nas emissões de gases de efeito estufa e áreas verdes são conservadas ao se evitar a expansão dos limites territoriais – beneficiando a todos de maneira geral.

Possibilitar que mais imóveis fossem erguidos foi a solução encontrada por Austin (Texas, EUA), exemplifica o The Atlantic, para diminuir os preços das locações e das propriedades. Após experimentar, na década de 2010, um crescimento mais rápido que as demais metrópoles daquela nação, houve uma disparada dos custos habitacionais do município, que não conseguiu responder à demanda por apartamentos e casas unifamiliares daqueles que chegavam à região. Em 2021, cita a revista, os aluguéis subiram significativamente e, no ano seguinte, o aumento desses valores ultrapassou o de todas as outras grandes cidades dos Estados Unidos.

A resposta da localidade foi construir uma quantidade suficiente de unidades para atender à necessidade das pessoas que queriam viver ali. A expectativa, conforme o The Atlantic, era fechar 2024 adicionando ao estoque de residências mais apartamentos do que qualquer outro município norte-americano. Austin está ainda edificando moradias em uma velocidade maior que a média nacional e quase nove vezes mais rápido que lugares como São Francisco e San Diego, na Califórnia. Esse incremento na oferta de imóveis, junto com uma redução na entrada de novos habitantes, levou a uma queda de 7% no preço das locações em 2023.

As modificações nas regras de uso e ocupação do solo da cidade para melhorar a acessibilidade às unidades ganharam um novo capítulo com a aprovação do Conselho Municipal de Austin, em maio de 2024, da diminuição da quantidade de área exigida para erguer casas unifamiliares. Foram autorizadas também a construção de prédios próximos a essas residências e o desenvolvimento mais denso ao longo de uma linha planejada de trem leve, de acordo com o site The Texas Tribune.

O coordenador do Somos Cidade, Felipe Cavalcante, reforça que incentivar a edificação de moradias é uma das principais estratégias para mitigar a falta de imóveis e os elevados valores das propriedades e aluguéis. “Todo o planejamento urbano brasileiro é feito com o objetivo de impedir que os indivíduos vivam onde eles querem, nos locais mais desejados. Sempre há uma barreira para atingir o potencial construtivo e responder à demanda de maneira adequada e com produtos apropriados”, frisa.

O empresário avalia que há um migrogerenciamento exagerado nos detalhes dos empreendimentos por parte da gestão urbana e que é preciso aumentar o coeficiente de construção e permitir o maior adensamento para que a oferta encontre a demanda. “O poder público deve sair um pouco desse jogo do mercado e se preocupar mais com os espaços coletivos e a política urbana e menos com a disponibilidade de habitações”, destaca Cavalcante.

Restrições de zoneamento afetam diversos aspectos da vida das pessoas

A dificuldade de acesso à residência não é o único impacto que as normas de uso e ocupação do solo trazem para o dia a dia dos indivíduos nos municípios. Um estudo feito na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) descobriu que essas leis resultaram no crescimento da segregação de renda nas regiões metropolitanas dos Estados Unidos nos últimos 40 anos, o que acabou excluindo famílias de menor poder aquisitivo de bairros mais ricos e com infraestrutura. Os pesquisadores e professores de Planejamento Urbano da instituição verificaram que quanto maior for a pressão de governos locais e de grupos de moradores para regular o zoneamento maiores são as taxas de segregação de renda.

A mobilidade dos cidadãos também é atingida por essas regras, assim como o bem-estar, a produtividade econômica e a saúde das pessoas. Outro levantamento revelou que dentro dos municípios analisados os preços das casas caem gradativamente quanto mais afastadas elas estão dos pontos centrais para compensar os custos com deslocamentos, que são maiores. Os economistas que realizaram o estudo apuraram que os lugares mais populosos tendem a possuir imóveis mais caros no Centro e se espraiam por distâncias maiores, empurrando os indivíduos para as periferias.

Para o planejador urbano, diretor de Pesquisa do Califórnia Yimby e autor do livro “Linhas Arbitrárias: Como o Zoneamento Quebrou a Cidade Americana e como Corrigi-lo?”, M. Nolan Gray, a proibição de erguer prédios em algumas comunidades e os códigos de limite de altura e as exigências de recuos dos edifícios estão impedindo o desenvolvimento na maioria dos bairros residenciais. O Strong Towns lista algumas iniciativas que podem colaborar para mudar esse contexto e incrementar a disponibilidade de unidades nos Estados Unidos e em outras nações.

Entre essas medidas sugeridas estão a eliminação dos tamanhos mínimos de lote e acabar com o número máximo de habitações que podem ser erguidas na área de uma típica propriedade unifamiliar. As propostas abrangem também retirar a obrigação das construções terem recuos de pátios laterais e as coberturas máximas de lotes para terrenos pequenos. Outro fator visto como um elemento que encarece os empreendimentos é a exigência mínima de vagas de estacionamento para novos complexos, que precisa ser revista pelas localidades.

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