neurodivergentes

Reavaliar os ambientes e a infraestrutura dos municípios para que eles sejam acessíveis a todos os seus moradores é um desafio para as localidades, que ainda idealizam lugares sem considerar a variação cognitiva, sensorial e social da população. Iniciativas estão estudando como melhorar as áreas para que elas sejam utilizadas por diversos públicos.

Os sons e as luzes das cidades – uma mistura de barulho do tráfego e de buzinas de carros, conversas entrecortadas, trechos de músicas que saem de lojas e de celulares e letreiros coloridos e iluminados – e a falta de espaços agradáveis para descansar ou ter um momento de lazer incomodam um grande número de indivíduos e interferem na experiência que muitos deles têm nos ambientes urbanos. Esse excesso de estímulos é ainda mais desconcertante para as pessoas neurodivergentes. O termo neurodiversidade, que inclui aqueles com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), dislexia, transtorno do espectro autista (TEA), depressão, ansiedade, deficiência intelectual e transtorno de estresse pós-traumático (TEP), por exemplo, foi cunhado no final da década de 1990 pela socióloga australiana Judy Singer, que tem autismo.

A neurodiversidade, acrescenta matéria da Fast Company, refere-se às distintas formas como os cérebros funcionam, como os indivíduos pensam, se comunicam, enxergam e sentem o mundo a sua volta. Com localidades que não foram planejadas tendo esse público em vista, muitos desses lugares não possibilitam que essas pessoas usufruam de suas estruturas, ocupem suas áreas e circulem com facilidade por suas ruas – excluindo uma parcela significativa da sociedade. Dados do programa Neurodiversidade no Trabalho, da Universidade de Stanford (Estados Unidos), apontam que entre 15% e 20% da população global é considerada neurodivergente, conforme a BBC. Os demais são classificados como neurotípico.

Um projeto no município de Nova York busca alterar essa realidade identificando maneiras de quantificar e qualificar os espaços urbanos e elaborando modelos que podem ser replicados em outras regiões e contextos. A Cidade Neurodiversa (Neurodiverse City), que é liderada pela organização sem fins lucrativos Design Trust for Public Space em parceria com o escritório de arquitetura Verona Carpenter e o coletivo feminista de designers independentes WIP Collaborative, quer reimaginar os ambientes coletivos da localidade, como praças, playgrounds e vias, com a ajuda de especialistas, neurodivergentes e suas famílias.

Para isso, os integrantes da ação estão fazendo pesquisas com adultos e crianças para compreender o que indivíduos neurodivergentes gostam, não apreciam e o que querem mais nas áreas públicas, ressalta reportagem da Bloomberg. A ideia é ter uma visão ampla do que é conforto nos espaços urbanos – o que pode abranger desde uma sinalização mais acolhedora ao uso de plantas e de materiais macios em assentos. Mesmo não sendo elementos inovadores, eles podem ser combinados de jeitos inesperados para assim serem utilizados por um espectro maior de residentes. A diretora-fundadora do Verona Carpenter, Jennifer Carpenter, disse à publicação que “nem todo mundo vivencia os lugares da mesma forma, e nem todo mundo quer a mesma coisa”, apesar da maioria dos playgrounds e praças possuírem uma configuração similar.

Entre as estratégias adotadas pela Cidade Neurodiversa está a realização de auditorias sensoriais de tipologias de ambientes coletivos com pessoas neourodivergentes e seus familiares. No ano passado, um grupo de jovens adultos com deficiência intelectual foi recebido pelo coletivo WIP Collaborative em uma região histórica de Manhattan, junto ao South Street Seaport, onde designers observaram as reações dos participantes à área urbana. Para captar a atenção em meio a um local cercado de trânsito, árvores, docas de carga, food trucks e bancos, cada jovem recebeu uma câmera de fotografia instantânea e quadros com três desenhos para registrar o que os detalhes do espaço despertava neles.

A forma de nuvem deveria ser usada em pontos nos quais eles se sentissem confortáveis, a de triângulo de alerta onde ficassem desconfortáveis e a de uma explosão para aqueles que eram extremamente desconfortáveis, descreve a Bloomberg. Enquanto isso, a equipe de profissionais acompanhava o percurso de uma hora e fazia perguntas aos jovens sobre as imagens que estavam produzindo. Duas semanas depois desse encontro, muitos dos envolvidos voltaram ao mesmo lugar com espuma, tecido e cordas e foram convidados a repensarem o mobiliário urbano para trechos das ruas Fulton e Water. O resultado foram bancos com materiais macios e com cores brilhantes e flores artificiais.

As informações coletadas com essas atividades, assim como as de uma consulta online, serão empregadas para conceber ferramentas de avaliação e protótipos de design para práticas mais inclusivas nos municípios. A proposta é envolver também agências governamentais responsáveis pelo desenho urbano de Nova York e começar um diálogo para promover mudanças em políticas voltadas para garantir maior acessibilidade de todos os habitantes à cidade. Essas medidas devem ser desenvolvidas ao longo de 2025, assim como a implementação de um projeto-piloto e a divulgação final de todo o trabalho efetuado.

De escolas a ambientes temporários, soluções ampliam experiências para indivíduos neurodivergentes

Instalada próxima a uma rodovia com várias pistas, a escola pública 112 (PS 112, na sigla em inglês) em Nova York enfrenta problemas com o barulho causado pelo tráfego intenso, que atrapalha a concentração, o aprendizado e até a diversão de seus alunos. O playground da instituição, que atende a estudantes com necessidades especiais – muitos deles com sensibilidades sensoriais – e com transtornos do espectro autista, fica junto à estrada. Em 2022, um programa de design do Departamento de Saúde e Higiene Mental da localidade levou a empresa de planejamento, arquitetura e design urbano Interboro para dentro da PS 112 para ver o que eles poderiam fazer para lidar com os ruídos, relata a Bloomberg.

Após um exercício de engajamento com os alunos através de paisagens sonoras – no qual os estudantes identificaram o máximo de sons que puderam e os classificaram entre os que gostariam de ouvir mais e menos. Os profissionais perceberam ainda que havia nas salas de aula pequenas tendas que eram usadas como um refúgio para onde as crianças podiam ir quando precisavam de um tempo. A partir desses dados, a equipe do Interboro criou estruturas similares, com o auxílio dos alunos, professores e de funcionários da escola, porém feitas com materiais mais resistentes.

Chamadas de pods, essas espécies de barracas foram montadas sobre uma base com rodas para serem levadas facilmente para qualquer ponto do playground onde as crianças se sintam seguras e confortáveis. As tendas são revestidas com cortiça e envoltas em vinil, que absorvem e amortecem os barulhos. No interior das três unidades idealizadas, foram colocados alto-falantes ativados por um botão que liberam sons como o canto de pássaros, vento e chuva suave, abafando o ruído da rodovia. Os estudantes da PS 112 também colaboram com a Cidade Neurodiversa.

Jardins sensoriais e zonas de biblioteca silenciosas são outros exemplos de áreas públicas que estão ficando mais acolhedoras para pessoas neurodivergentes, complementa artigo do Fórum Econômico Mundial. O Glasgow Film Theatre (Escócia) conta com sessões de cinema amigáveis para indivíduos no espectro autista. Uma iniciativa que ocorre no Brasil, em ações como o Sessão Azul, que projeta filmes para crianças com distúrbios sensoriais e seus familiares ou acompanhantes. No País, o acesso de pessoas com autismo às salas de cinema é garantido por lei desde 2022, que determina que os espaços ofereçam 2% das sessões em formato adaptado – com iluminação e volume reduzidos e circulação livre durante a exibição.

Museus também estão se preparando para oferecer atividades e visitas adequadas para os múltiplos públicos neurodiversos, como o Museu dos Transportes de Londres (Inglaterra), que possui um workshop inclusivo, no qual os estudantes neurodivergentes utilizam o olfato, visão e tato para fazer uma viagem no tempo dos primeiros ônibus da capital inglesa. Ainda segundo a publicação, a Cidade Sensorial (Sensory City), em Yokohama (Japão), e os Parque Sensorial (Sensory Park), em Chennai (Índia), empregam elementos de design para projetar caminhos acessíveis com pavimentação tátil e orientação por áudio.

A instalação temporária Softy, concebida em 2022 pela artista e designer Bryony Roberts, na praça Josie Robertson, próxima ao Lincoln Center, em Nova York, espalhou dezenas de almofadas em torno da fonte presente no local. “Pessoas de todas as idades começaram a improvisar suas próprias salas de estar”, enfatizou Bryony em entrevista para a Fast Company. Enquanto alguns pedestres juntavam o mobiliário formando um enorme pufe, outros arrastavam para algum ponto mais silencioso. A intervenção integrou o Festival Grande Guarda-Chuva (Big Umbrella Festival, em tradução livre), que todos os anos organiza atividades gratuitas para jovens com autismo e outras deficiências de desenvolvimento e suas famílias.

Para a designer, que tem dedicado a carreira ao planejamento de ambientes com o foco em indivíduos neurodivergentes e participa do Cidade Neurodiversa, o Softy demonstrou como os lugares públicos podem ser versáteis, mutáveis e inclusivos. Em 2021, ela criou a instalação Fora das Linhas (Outside The Lines), em Atlanta (EUA), uma estrutura sinuosa composta por fitas multicoloridas que balançavam com o vento e assentos em forma de teia feitos de rede. No mesmo ano, Bryony montou, em conjunto com o WIP Collaborative, o Pátio Restaurativo (Restorative Ground) na Hudson Square, também em Nova York.

O playground para todas as idades, origens e espectros de neurodiversidade tinha zonas distintas para ler, brincar e descansar, que permitiam que seus usuários escolhessem a experiência que queriam ter. A área foi idealizada com três espaços principais: um ambiente com uma mesa grande para idosos sentarem e lerem um livro ou para crianças e jovens jogarem, um ponto ativo com brinquedos e apoios de cordas para escalada e, por último, um lugar para o descanso com uma rede e bancos baixos.

Para oferecer diferentes sensações sensoriais foram usados materiais como borracha em um tom laranja vibrante na parte de recreação, compensado pintado de vermelho na mesa e grama artificial no playground. O Pátio Restaurativo foi pensado ainda para ter altos e baixos que forneciam estimulação equilibrada e contribuía para definir uma variedade de microáreas ao mesmo tempo.

Empreendimentos corporativos também precisam ser adequados para atender aos funcionários neurodivergentes

Assim como os espaços públicos, os complexos comerciais devem ser reavaliados para receber colaboradores com diversas necessidades. Esses locais costumam ser projetados, na maioria dos casos, para o público neurotípico, deixando de lado uma série de fatores que podem impactar a acessibilidade ao mercado de trabalho. Escritórios, exemplifica o ArchDaily, geralmente têm um ambiente claro e aberto que funciona como o centro de atividades de uma empresa. Esse layout, no entanto, não considera a hipersensibilidade que empregados neurodivergentes podem ter ao som, à luz e ao cheiro.

Possuir áreas versáteis e flexíveis, que possibilitam aos funcionários as adequarem as suas demandas é uma das opções citadas pela publicação, assim como estabelecer zonas específicas para cada função – socialização, concentração e relaxamento – ajuda a diminuir a sobrecarga sensorial. Outro aspecto destacado é a importância de deixar a cozinha e lugares para a alimentação afastados das mesas de trabalho, uma estratégia para evitar a hipersensibilidade a odores. Para os colaboradores neurodivergentes que precisam de espaços mais silenciosos, uma dica é disponibilizar ambientes sem ruídos ou compartimentos à prova de som, que funcionem como um refúgio longe do barulho de maquinários corporativos, de teclados ou de conversas altas.

Mobiliário com rodas – que facilitam a movimentação para áreas mais calmas ou com menos iluminação – e com formas mais orgânicas e em tons amadeirados tornam as salas comerciais e escritórios mais acolhedores às pessoas neurodivergentes. O contato com a natureza é mais um elemento-chave na composição dos empreendimentos corporativos. A introdução de plantas nos espaços, luz natural e até mesmo de fontes de água melhora o bem-estar, mitiga o estresse e aumenta o desempenho cognitivo, além de ser benéfica para quem tem ansiedade e depressão.

 

Seis formas de planejar municípios mais inclusivos e sustentáveis

– Envolver os indivíduos neurodivergentes no desenvolvimento das cidades

– Usar linguagem e recursos visuais claros e fornecer informações em vários formatos de sinalização, mapas e guias.

– Instalar parques com elementos calmantes, como sons de água, pequenos jardins em prédios e ambientes silenciosos em bibliotecas e centros comunitários.

– Incentivar o desenvolvimento de lugares caminháveis, diminuindo a dependência dos carros, o que gera ruas mais silenciosas, áreas públicas mais vibrantes e menos poluição do ar.

– Qualificar o transporte público com vagões mais silenciosos, pontos de espera designados para pessoas com baixa sensibilidade e horários dispostos de maneira clara.

– Implementar ciclovias e disponibilizar opções de deslocamento alternativas, como patinetes elétricos.

Fonte: Fórum Econômico Mundial

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