automóvel

Desde que a visão modernista de urbanismo começou a ser adotada, as localidades passaram a ser planejadas para acomodar os automóveis e garantir que eles circulassem velozmente. A mudança de foco dos indivíduos para os veículos trouxe uma série de dificuldades enfrentadas até hoje. Reimaginar os carros para que eles se adaptem ao tamanho das vias pode auxiliar na alteração dessa realidade.

O quanto de espaço dos municípios é ocupado pelos automóveis? Levantamento realizado pela Comissão Europeia de Mobilidade e Transporte descobriu que cerca de 50% da área das cidades é utilizada para sistemas viários, estacionamentos, sinalização e outros serviços destinados aos veículos. O estudo, que usa dados da Europa e dos Estados Unidos, mostra ainda que os carros ficam 92% do tempo parados, desperdiçando locais que poderiam ser convertidos em mais moradias, praças, parques e outros ambientes coletivos.

Inverter a lógica de idealização modernista dos municípios – que resultou em lugares atravessados por amplas ruas, na separação de habitações, trabalho e lazer e no espraiamento dos territórios – e voltar a ter as pessoas como o centro das decisões de planejamento é um dos caminhos apontados para qualificar os espaços urbanos. Algo defendido há décadas por especialistas como a escritora e ativista Jane Jacobs e o arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl. Além de reduzir a presença dos automóveis nas regiões centrais das cidades, repensar a dimensão dos veículos para que eles caibam nas vias em vez de projetar ruas cada vez maiores para acomodá-los pode ajudar a tornar as localidades mais seguras e vibrantes e menos poluídas.

Um problema que se acentua com o aumento do tamanho dos carros, como caminhonetes e SUVs (sigla em inglês que significa veículos utilitários esportivos), que demandam vagas de garagem maiores e, com isso, mais área dos condomínios, das residências e dos municípios, contribuindo para encarecer o preço dos imóveis e tirar o dinamismo de muitos bairros. Um automóvel dessa categoria pode chegar a ocupar o lugar de dois ou três carros, segundo o jornal O Estadão. O economista Donald Shoup, uma referência quando se fala nos custos do estacionamento gratuito nas vias, já alertava que as exigências de vagas para os veículos eram um obstáculo para a construção de novas moradias e um incentivo para a maior utilização dos automóveis.

Mas, não são apenas os carros privados que precisam ter suas dimensões reavaliadas. O escritor focado em urbanismo, Addison Del Mastro, detalha em artigo que os veículos voltados para a realização de serviços públicos e de negócios também podem ser adequados para caberem no desenho das cidades. Ele cita alguns exemplos vistos em localidades italianas, como Catânia, Ragusa, Siracusa e Taormina, todas na Sicília, onde minicaminhões se deslocavam por ruas de diferentes larguras para fazer manutenção na infraestrutura, entregas e vendas.

Em uma via para pedestres, com lojas, mercadinhos e habitação, um desses equipamentos de pequeno porte fazia a coleta de lixo, descreve Del Mastro. Para acessar o ambiente, os postes que funcionam como barreira para a entrada de automóveis podem ser retirados para que o serviço seja concretizado e depois colocados de volta. Isso evidencia, conforme o escritor, a possibilidade de ajustar os municípios e criar alternativas simples e inovadoras para rever a utilização dos carros nas cidades e, ao mesmo tempo, manter a continuidade dos trabalhos de conservação dos espaços urbanos, de emergência e as atividades comerciais.

Outro aspecto que chamou a atenção do escritor foi o uso desses veículos para viabilizar pequenos comércios. Em Taormina, ele viu um minicaminhão que permitia ao motorista se locomover por ruas que transportes convencionais não conseguiriam e chegar a mais clientes. O equipamento foi customizado para funcionar como uma peixaria móvel. Del Mastro acredita que esse formato de caminhões e automóveis pode impulsionar o empreendedorismo individual em outros países, transformando a cultura de como os negócios são feitos.

Ao comparar esse cenário com o dos Estados Unidos, onde ele nasceu, o escritor pondera que a escala de tudo naquela nação é muito grande: dos carros às lojas de departamento, residências e estradas. “Não temos veículos pequenos na dimensão das localidades, imóveis micros ou mais simples para pessoas que estão começando ou que precisam de um teto. Não facilitamos para os indivíduos serem desenvolvedores ou donos de empresas – (autorizando) vitrines anexadas às moradias, pequenos estabelecimentos de esquinas, ou negócios baseados em casa ou chalés de quintal”, frisa.

Com seu tamanho diminuto e velocidades mais baixas, os miniautomóveis e caminhões podem se somar às iniciativas que buscam diminuir as emissões de gases de efeito estufa e, consequentemente, a poluição do ar e os congestionamentos e elevar a segurança no trânsito. Eles colaboram ainda na preservação da região central de municípios antigos, uma vez que suas ruas mais estreitas e quadras menores, que estimulam as caminhadas e a socialização, não precisam ser modificadas para acomodar os carros. Apesar de serem mais leves, acessíveis e econômicos, os pequenos veículos não atendem a todas as necessidades de uma cidade e de seus habitantes. Esses modelos possuem limitações de carga, de área interna (sendo indicados para uma ou duas pessoas), de reposição de peças e de serviços especializados, de acordo com o site Kei Truck Connect.

“Kei cars”: aprendendo com o Japão a potencializar o uso do ambiente urbano

Já parte da paisagem das localidades japonesas, os “kei cars” (miniautomóveis leves) são uma opção para facilitar a circulação das pessoas pelas vias públicas e melhorar a utilização dos espaços urbanos e das áreas limitadas das ruas em um país tão populoso e povoado. Por essas características, os grandes municípios contam com poucas vagas de estacionamento, que ainda são apertadas, o que leva os motoristas a precisarem de alternativas que funcionem nesse contexto, ressalta artigo do Motor1, do Uol. A publicação acrescenta que a nação possui um alto custo de energia, devido à dependência de importação desse insumo, o que aumenta a demanda por carros econômicos e eficientes.

Esse tipo de veículo também tem, segundo o Motor1, uma legislação específica que incentiva a produção local e as vendas desses modelos, que têm isenção de imposto. O segmento é tão popular no Japão que foi responsável por 34% das vendas de automóveis efetuadas no país em 2022. Para ser classificado como um “kei car”, ele precisa ter até 3,4 metros de comprimento, largura de até 1,48 metros e dois metros de altura.

Nos últimos anos, um outro perfil de veículos vem se destacando na nação: os “kei trucks” (minicaminhões leves), observa artigo do Nippon, canal de notícias especializado no Japão. Desenvolvidos para acomodar duas pessoas na cabine, os “kei trucks” tem uma caçamba de carga um pouco maior que possibilita que eles sejam usados para fins comerciais de uma variedade de setores, como o da agricultura, pesca, construção, lojas de bebidas, entre outros. Esses modelos, adianta a publicação, já começam a ser mais vistos em mercados internacionais, como o dos Estados Unidos e da Austrália. Para serem mais sustentáveis, estão sendo lançados minicarros e minicaminhões elétricos.

Para se adaptar a novo design das ruas, caminhões de bombeiros em São Francisco são reduzidos

Retomar o planejamento de cidades centradas nas pessoas e diminuir a dependência dos automóveis não é uma tarefa fácil e nem será feita de uma hora para outra, pois envolve não apenas decisões urbanísticas e políticas – é preciso mudar toda uma cultura erguida em torno dos veículos. No entanto, inúmeros municípios estão colocando em prática alterações em seus ambientes urbanos, transformando vias e lugares públicos através do estreitamento de ruas, expansão das calçadas, redução das velocidades e instalação de ciclovias.

Ações que estão sendo feitas em locais como São Francisco, na Califórnia (EUA), que adotou a estratégia Visão Zero para acabar com as mortes e acidentes graves no tráfego e melhorar a mobilidade para todos os seus residentes. O projeto teve início nos anos 1990, na Suécia, e o retorno positivo fez com que se expandisse para outras cidades europeias e depois para os Estados Unidos. Além de São Francisco, a medida foi implementada por mais de 50 municípios, entre eles Los Angeles e Seattle. Porém, essas modificações que qualificam o espaço para os pedestres e ciclistas vêm levantando debates sobre como essas mudanças afetam a prestação de serviços públicos, como o combate a incêndios.

Conforme a revista Wired, departamentos de bombeiros em distintas cidades norte-americanas têm se posicionado contra os novos desenhos das ruas justificando que as alterações dificultam a manobra dos caminhões e, dessa maneira, a segurança dos indivíduos. A solução encontrada por São Francisco foi se adequar e diminuir o tamanho de alguns de seus veículos, passando de aproximadamente dez metros para 7,6 metros.

Apelidados de Caminhões de Bombeiros Vision Zero, como relata matéria do jornal San Francisco Examiner, eles são mais fáceis de dirigir em vias amigáveis para as pessoas, em torno de automóveis estacionados em fila dupla, ciclovias desprotegidas, de barreiras de ampliação dos passeios públicos e de onde há embarque e desembarque de passageiros de aplicativos de transporte. Dessa forma, afirma a Wired, os chamados de ajuda podem ser atendidos mais rapidamente. O primeiro desses equipamentos foi destinado à Estação 13 do Corpo de Bombeiros, que fica entre ruas movimentadas e cheias de curvas dos bairros Chinatown e do Distrito Financeiro.

A localidade possui seis desses caminhões operando em suas regiões centrais, complementa a revista. A publicação salienta que a compra desses veículos representa um pequeno símbolo de que o município pode “construir uma infraestrutura mais segura para os passageiros diários e, ainda assim, rápida o suficiente para as emergências”. Essa mesma iniciativa – de reduzir a dimensão dos carros e caminhões – pode ser estendida para os serviços de lixo, de manutenção e de cargas comerciais, qualificando as cidades para todos os seus usuários.

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