automóveis

Uma portaria de trânsito centenária dos Estados Unidos virou modelo de como projetar vias públicas para garantir que os veículos circulassem velozmente, tirando o protagonismo dos indivíduos no desenho urbano. Diferentes medidas estão buscando mitigar os efeitos dessa decisão e repensando o uso das ruas.

Uma rápida caminhada pelos municípios comprova: os automóveis estão por todos os lados. Seja cruzando as vias aceleradamente ou estacionados ocupando ambientes públicos, os carros ganharam um papel significativo no dia a dia das pessoas, na configuração das localidades, na preferência de deslocamento nas ruas e no imaginário popular. No entanto, nem sempre foi assim. O historiador e escritor norte-americano Peter Norton recorda em entrevista para a Fast Company que o pedestre já teve o “direito absoluto” às vias, podendo atravessá-las em qualquer ponto que quisesse com segurança, assim como as crianças podiam brincar nelas livremente.

Essa realidade começou a mudar, conforme ele, a partir da publicação da Portaria de Trânsito para a Cidade de Los Angeles (EUA), um documento de 35 páginas que completou 100 anos em janeiro de 2025. No início dos anos 1900, ressalta a publicação, os indivíduos dividiam as ruas com bicicletas e bondes, em uma negociação pelas áreas urbanas que sempre existiu, mas na qual as pessoas tinham prioridade na circulação. Com as novas normas do município da Califórnia, essa relação foi modificada e o uso das vias foi redefinido para privilegiar os veículos. Esse modo de disciplinar a forma como as ruas seriam utilizadas acabou se tornando um modelo para os Estados Unidos e para muitos outros países.

Apesar da popularização dos automóveis ser vista como uma consequência do progresso estimulado pela demanda do consumidor, Norton argumenta que ela foi resultado de uma campanha “bem elaborada produzida por aqueles com interesse em vender carros”. O historiador dedicou sua carreira ao estudo da era do automóvel e publicou suas pesquisas nos livros “Fighting Traffic: The Dawn of the Motor Age in the American City (Combatendo o Trânsito: o Alvorecer da Era do Carro na Cidade Americana, em livre tradução) e “Autonorama: Uma História sobre ‘Veículos Inteligentes’, ilusões tecnológicas e outras trapaças da indústria automotiva”.

Ele afirma que recuperar a história da portaria de Los Angeles é uma maneira de informar os indivíduos e de capacitá-los para escolher futuros alternativos, em que os automóveis não dominem as vias públicas e as pessoas possam optar por andar a pé ou de bicicleta por onde desejarem. Escritas pelo então doutorando em governo municipal da Universidade de Harvard, Miller McClintock, as leis de trânsito passaram a assegurar que os carros conseguissem se movimentar com velocidades mais altas. McClintock foi contratado, detalha a Fast Company, pelo executivo da indústria automobilística, Paul Hoffman, que, em 1925, era presidente da Comissão de Trânsito de Los Angeles, órgão responsável por regulamentar as ruas da localidade.

Uma das principais alterações das regras foi atribuir a quem caminhava ou pedalava o “comportamento imprudente”, em vez de focar na alta velocidade dos veículos. Ao fazer isso, as novas normas definiram os lugares onde os indivíduos poderiam atravessar as vias, estabelecendo faixas de pedestres listradas, plataformas elevadas em estradas largas e túneis idealizados para proteger as crianças em idade escolar dos automóveis. Com isso, mais espaço foi destinado aos carros e a vida social nas ruas, ignorada. O efeito dessas decisões foi o aumento representativo dos acidentes de trânsito e das mortes.

E, com o passar das décadas, os reflexos do protagonismo dos veículos nas cidades se multiplicaram, elevando a poluição ambiental, sonora e os congestionamentos, retirando áreas para os ciclistas e investimentos do transporte público – a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) calcula que os automóveis e motocicletas são responsáveis por 85% dos custos do transporte urbano para a sociedade, somando-se gastos com infraestrutura, fatalidades e internações por causa de ocorrências no tráfego e da poluição, segundo o instituto pesquisa WRI Brasil. Já o transporte coletivo responde por 15% desses custos. A maior utilização de ônibus, metrô e trens reduziria os custos pagos por todos.

Mas, as mudanças ocorridas na forma como as pessoas se deslocavam e a necessidade dos carros não aconteceram somente em razão da publicação da portaria de Los Angeles. A lei foi acompanhada por uma campanha de relações públicas para fomentar as novas regras culturais para se movimentar pelas vias públicas. Promovida pelo presidente do Automobile Club of Southern California, EB Lefferts, as peças educativas transmitidas por rádio alertavam sobre a necessidade de usar as faixas de pedestres e os lugares específicos para os indivíduos. Para Norton, as táticas de Lefferts tinham o objetivo de fazer os cidadãos se sentirem envergonhados, constrangidos por não seguirem as normas.

Além da campanha, escoteiros ficavam nas ruas para emitir cartões para quem infringisse a lei e policiais foram encorajados a apitar para qualquer pedestre que não obedecesse aos sinais de trânsito, condicionando o comportamento das pessoas nas vias. Dessa maneira, as ruas foram ficando mais largas para acomodar os veículos, a velocidade aumentou e o transporte coletivo foi perdendo o espaço e sendo precarizado. Mesmo hoje, salienta o historiador, quando um movimento no sentido contrário, de retomar as ruas para os indivíduos, ganha força, ainda não há uma visão de sinalizar aos motoristas que eles precisam prestar a atenção aos pedestres e ciclistas e diminuir a velocidade.

Com iniciativas de restringir o acesso dos automóveis às regiões centrais de grandes municípios, de implementação de pedágios de engarrafamento e de vias sem carros, abre-se um caminho para rever a história que começou a ser escrita há 100 anos com a Portaria de Trânsito de Los Angeles. E, com isso, reavaliar a dependência dos veículos e voltar a ter ruas que possibilitem caminhar e pedalar por ambientes que deixem os trajetos mais fáceis para as pessoas.

Como transformar as vias em áreas prioritárias para os indivíduos de novo?

A construção da narrativa dos automóveis como principal meio de transporte tem um novo capítulo quando eles se tornam mais acessíveis para a classe média e adquirem outros significados, como o de status social, de acordo com artigo do ArchDaily. Nas décadas de 1950 e 1960, os carros se popularizaram e desencadearam a concepção de novos produtos e serviços. Shopping centers, cinemas drive-in, supermercados, restaurantes com drive thru, postos de gasolina, motéis e acomodações turísticas são erguidos para atenderem às necessidades abertas pelo crescimento do número de veículos privados.

O desenvolvimento imobiliário em regiões afastadas dos centros urbanos também foi impulsionado pela maior presença dos automóveis nas localidades e pela ideia que era preciso separar moradia, trabalho e lazer, propagada pela visão modernista de urbanismo que era adotada por várias cidades pelo mundo. O historiador e pesquisador Peter Norton, em entrevista para o Mobilize, portal brasileiro especializado em mobilidade urbana sustentável, falou sobre as ações que podem ser realizadas para repensar o domínio dos carros nos municípios.

Norton, que esteve no Brasil, em 2023, para o lançamento da versão em português da obra “Autonorama”, assinalou que a primeira estratégia é “contar a verdadeira história de como chegamos aqui, a esse status quo que privilegia os veículos”, como falar dos motivos por trás da Portaria de Trânsito de Los Angeles. Ele cita ainda que é preciso que a sociedade participe da elaboração de planos para melhores futuros de mobilidade e reaproximar casas e empregos, escola e serviços. O escritor ponderou também que deve ser mostrado à população que mesmo a “tecnologia mais incrível não fará com que o transporte individual seja mais funcional”.

Conforme o historiador, essa modificação e retomada das ruas pelas pessoas passa ainda pela discussão de que futuros mais atraentes já estão ao alcance, aqueles em que a caminhada, a bicicleta e o transporte coletivo funcionem para todos, e pela redefinição do conceito de segurança no trânsito de modo que inclua a saúde dos indivíduos. Por fim, ele defende que as políticas de eletrificação dos automóveis devem privilegiar as bicicletas elétricas, os bondes, metrôs e trens.

Outra possibilidade para restaurar o equilíbrio entre os carros e as pessoas nos espaços urbanos é a implementação de vias compartilhadas, que acomodam pedestres, ciclistas, passageiros de ônibus, usuários de patinetes e motoristas. Nesses ambientes, os veículos devem se adaptar ao ritmo de quem anda a pé, descreve matéria do Summit Mobilidade. Essas ruas não possuem separações entre os tipos de locomoções, como meios-fios e outras sinalizações que criam obstáculos para a circulação. Em vez disso, costumam ser usadas interseções elevadas e alterações de textura ou cores nos pisos para marcar a transição para uma área compartilhada.

Já o mobiliário urbano e paisagismo integrados deixam esses lugares mais convidativos e adequados para um ritmo de circulação mais lento, elevando a segurança de todos. A instalação de bancos, de arte, pracinhas e aparelhos de ginástica, aponta a publicação, torna os locais menos lineares e mais usados, incentivando a permanência dos usuários nos espaços, trazendo mais vida para eles. As vias compartilhadas permitem que os indivíduos recuperem a liberdade de caminhar por qualquer ponto da rua.

Paris define novas restrições aos automóveis na região central

Em mais uma medida para reduzir a presença de carros nos ambientes centrais, a capital francesa colocou em operação a Zona de Tráfego Limitado (ZLT) em 5 de novembro do ano passado, proibindo veículos de cruzar uma área de aproximadamente 5,5 quilômetros quadrados dessa parte da cidade, onde vivem cerca de 100 mil habitantes, segundo matéria do Euronews. A iniciativa, que abrange os quatro primeiros arrondissements (distritos) de Paris, é inspirada em projetos de municípios como Madri (Espanha), Milão e Roma (ambos na Itália), onde a circulação dos automóveis é permitida apenas para alguns usuários e carros. O objetivo, explica a prefeitura de Paris, é acalmar o trânsito, valorizar a mobilidade através do transporte coletivo, das caminhadas e de pedalar e melhorar a qualidade do ar.

Placas e marcações no chão indicam a região da ZLT, que restringe o acesso de veículos 24 horas por dia, sete dias por semana. Essa zona foi planejada para autorizar o trânsito somente para serviços locais e viagens que tenham o destino ou a partida de dentro desse perímetro. Podem entrar e estacionar nessa área quem reside nela, trabalha, faz entregas, vai a uma loja, empresa, médico, cinema, teatro ou visitar um familiar ou amigo. A nova regra possui algumas exceções para garantir o funcionamento de serviços públicos e a acessibilidade.

Também podem circular na ZLT, por exemplo, veículos de emergência e salvamento, ônibus, táxis, automóveis de pessoas com mobilidade reduzida, de profissionais da saúde e de aplicativos de compartilhamento de carros. A fiscalização será feita, após seis meses de uma fase educativa, por meios que ainda serão determinados pelo governo da cidade em conjunto com a polícia. Depois desse período inicial, a multa por descumprimento das normas deve ser de 135 euros por condução injustificada no espaço com limitações. De acordo com a prefeitura, não há, no momento, projeto para ampliar a ação para outros distritos da capital da França.

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