abundância

Lançada em março, obra dos jornalistas Ezra Klein, do The New York Times, e Derek Thompson, do The Atlantic, critica gestões liberais norte-americanas das últimas décadas, que impuseram barreiras excessivas à construção de imóveis, ao investimento em infraestrutura e ao crescimento das cidades, e propõe uma nova cultura política de abundância.

O déficit habitacional nos Estados Unidos era de 3,8 milhões de unidades em 2024, conforme pesquisa da empresa Realtor. No atual ritmo de edificações, informa o levantamento, levaria 7,5 anos para resolver a falta de residências e a crise de acessibilidade à moradia. Diferentes estudos vêm ao longo dos anos demonstrando a relação entre a escassez de imóveis e os altos preços das propriedades e aluguéis e as leis restritivas de zoneamento e outras regulamentações que dificultam a construção de habitações naquele país. Idealizadas ou apoiadas, principalmente, por administrações progressistas, essas normas estão sendo criticadas agora também por um grupo de liberais, que defende uma mudança de paradigma para alavancar o desenvolvimento e a disponibilidade de residências.

No livro “Abundância (Abundance, no original em inglês)”, lançado em março deste ano, os jornalistas Ezra Klein, do The New York Times, e Derek Thompson, do The Atlantic, afirmam que as políticas estabelecidas nos últimos 50 anos foram guiadas por uma “ideologia de escassez” que reduziu artificialmente a oferta de bens vitais, como moradia, energia e mobilidade, por exemplo. Isso ocorreu, explica artigo do diretor editorial do Vox, Bryan Walsh, através da criação de uma série de restrições e leis governamentais. Klein e Thompson, que se autodenominam liberais e se tornaram referência como colunistas e podcasters interessados em detalhar como os programas das gestões públicas funcionam, acreditam que é preciso revisar as regras em vigência e adotar uma visão de abundância, que incentive a edificação de mais unidades e a inovação.

A obra, segundo os seus autores, busca principalmente diagnosticar aquilo que deu errado na governança dos democratas, já que os progressistas optaram – mesmo com boas intenções, como a preservação ambiental – por medidas que põem obstáculos ao crescimento dos municípios. Eles citam Nova York (New York) e São Francisco (Califórnia) como exemplos de lugares democratas onde as normas restritivas complicam que novos imóveis sejam erguidos e elevam os custos das propriedades. Porém, ressalta Walsh, os reflexos dessas decisões não ficam restritos à área habitacional, eles afetam projetos de energia limpa, desenvolvimento tecnológico, sistemas de transporte e de medicamentos.

Klein e Thompson almejam, de acordo com artigo de Benjamin Wallace-Wells da revista New Yorker, um “liberalismo que construa”, que acelere o sistema em vez de freá-lo. Para isso, eles sugerem diversas ações, chamadas pelos jornalistas de “agenda da abundância”, como o caminho para “sair do atoleiro em que nos encontramos. Uma nova ordem política”. Entre as iniciativas elencadas pelos autores estão reformas regulatórias e programas de investimentos públicos para aumentar o estoque de residências e fomentar melhorias nas localidades.

Os liberais norte-americanos, salientam Klein e Thompson, têm se preocupado mais em obstruir o desenvolvimento econômico prejudicial do que promover o do tipo benéfico. O correspondente sênior do Vox, Eric Levitz, destaca em artigo para o site de notícias que os democratas priorizaram o processo “em detrimento dos resultados e favoreceram a estagnação em vez do crescimento”, principalmente por meio de seu apoio a restrições de zoneamento, leis ambientais rigorosas e a imposição de condições onerosas aos gastos com infraestrutura pública. Conforme Levitz, os jornalistas fazem parte de um grupo de “liberais da abundância”, que reúne ainda integrantes do movimento Sim no Meu Jardim (Yimby, na sigla em inglês), vários think thanks pró-inovação e dezenas de comentaristas.

As normas progressistas dos anos 1970, que exigiam revisão ambiental, padrões de segurança e anticorrupção, preservação histórica e ampliavam a participação popular e o poder local sobre o zoneamento, tinham como objetivo proteger pequenas comunidades contra interesses financeiros, recorda Wallace-Wells na New Yorker. No entanto, reforça ele, essas regras foram “manipuladas por proprietários de moradias e empresas e usadas para bloquear todos os tipos de novas edificações”. Segundo o escritor, boas intenções acabaram abrindo margem para o que o cientista político Francis Fukuyama nomeou de “vetocracia”.

Até mesmo empreendimentos públicos, agrega Wallace-Wells, são impactados pela vetocracia. Ele comenta que, hoje, para adicionar um quilômetro de linha de metrô nos Estados Unidos custa o dobro do que no Japão ou no Canadá e seis vezes mais que em Portugal. Para Klein e Thompson, os governos estão tão limitados pelas regulamentações, contestações legais e pelo nimbyismo (atividades de grupos de Nimby – Não no Meu Jardim, em português) que não conseguem cumprir suas promessas e qualificar a vida das pessoas, assinala matéria do The Guardian.

Em entrevista para o jornal, Klein declarou que quer menos vetocracia. O jornalista ponderou que os indivíduos que comparecem às reuniões de planejamento em suas cidades para protestar contra novas unidades populares em suas ruas não são os que se beneficiariam desses empreendimentos, “são os titulares protegendo um status quo que eles gostam. Tudo bem, eles devem ter voz, mas não a capacidade de destruir uma iniciativa”, analisou.

Municípios progressistas estão construindo menos e ficando mais caros

As normas de zoneamento das localidades norte-americanas permitem que apenas casas unifamiliares sejam erguidas em cerca de 75% dos terrenos residenciais do país, lembra Eric Levitz em artigo do Vox. Esse cenário associado a outras normas das cidades impõem barreiras que aumentam os custos do desenvolvimento habitacional, como tamanho mínimo de lotes, requisitos de estacionamento e restrições de altura. Ele descreve que essa realidade gera escassez de imóveis – uma política que traz vantagens para quem possui propriedades em detrimento daqueles que não têm. Levitz observa que muitos progressistas aceitam a força desse argumento, mas que “alguns mais à esquerda ainda desdenham a pressão para liberar as regulamentações de zoneamento”.

Para ele, isso é fácil de ser compreendido, já que a ideia de que um dos grandes problemas econômicos dos Estados Unidos pode ser mitigado pelo “afrouxamento das restrições à livre iniciativa é ideologicamente inaceitável para muitos”. Benjamin Wallace-Wells da New Yorker pontua que algumas metrópoles progressistas do país, onde estão os empregos mais bem pagos, apresentam dificuldades para crescer, algo que pode estar acontecendo por terem mais obstáculos para construir. De acordo com ele, em 2023, em torno de 70 mil alvarás de moradias foram emitidos na região Metropolitana de Houston, que fica em um estado republicano (Texas), e somente 40 mil na área Metropolitana de Nova York, que conta com uma população três vezes maior. Esse número é ainda mais baixo em São Francisco e Boston (Massachusetts).

Por causa das limitações das legislações e das ações dos Nimbys, relata o The Guardian, distintos projetos acabam não saindo do papel ou ficando muito caros, como é o caso do custo estimado para a edificação de um banheiro público em São Francisco ter chegado a 1,7 milhão de dólares. O jornal lista outras medidas que não foram concretizadas, como o trem de alta velocidade na Califórnia, mesmo existindo recursos e vontade política, e para que os 42 bilhões de dólares do governo de Joe Biden para a implementação de banda larga rural mal fossem gastos. Na Grã-Bretanha, exemplifica a publicação, há barreiras semelhantes, como o histórico recente de avaliações de impacto de 44 mil páginas que impedem empreendimentos de energia verde.

Levitz acrescenta que em Minneapolis (Minnesota), a reforma e a suspensão de diversas restrições do zoneamento urbano em 2018 – que possibilitou duplex e tríplex na maioria dos bairros – foi seguida por um incremento na construção de unidades e uma queda na média do aluguel no município. Ajustado à renda local, uma casa na cidade era 20% mais barata em 2023 do que em 2017. Retorno similar foi verificado em Auckland, na Nova Zelândia, após a revisão do zoneamento, que ocorreu em 2021 e autorizou prédios com até três andares ou três imóveis em todos os lotes residenciais dos municípios mais populosos da nação.

Contudo, alerta Levitz, apenas a desregulamentação não irá assegurar a acessibilidade à habitação. Ele aponta que nunca será lucrativo fornecer moradia para pessoas de baixa renda sem subsídios públicos e que o setor privado também corre o risco de produzir unidades de qualidade inferior para indivíduos de renda média. Para ele, o governo pode colaborar a preencher essas lacunas criando incorporadoras públicas, que ergueriam imóveis a preços de mercado e depois reinvestiriam o lucro em novas edificações. “A ala esquerda do movimento da abundância vem popularizando esse modelo há anos”, enfatiza. Ele frisa também que sem as restrições regulatórias os desenvolvedores construiriam muito mais residências e que um mercado imobiliário mais livre tornaria os “Estados Unidos mais rico e igualitário”.

Agenda da abundância e preocupação com efeitos ambientais e sociais

A alteração de uma política de escassez para uma da abundância proposta por Ezra Klein e Derek Thompson tem aquecido o debate sobre a necessidade de repensar as limitações das leis e gerado críticas as suas ideias. Uma das principais, conforme Eric Levitz em seu artigo no Vox, é que a agenda da abundância acarreta um recuo nos compromissos do movimento progressista com a justiça econômica e a igualdade. Mas, para ele, combater as barreiras regulatórias à construção de habitações, à infraestrutura e à produção de energia não é “apenas compatível com a priorização dos interesses da classe trabalhadora americana, é sinônimo dessa tarefa”.

Levitz sustenta ainda que um sistema econômico que tende para a escassez e a estagnação serve melhor aos que já estão em uma situação confortável do que aos desfavorecidos. Ele considera também que os liberais da abundância não estão pedindo aos democratas que abandonem restrições progressistas à produção, como a Lei do Ar Limpo ou do salário mínimo, e sim que julguem as normas com base em resultados. Na área ambiental, ressalta Levitz, esses obstáculos trazem o desafio de como enfrentar os reflexos da mudança climática. Uma economia de energia limpa, pondera ele, demanda a edificação de uma grande quantidade de novas infraestruturas, como parques eólicos, linhas de transmissão e instalações solares.

Por outro lado, manter o sistema energético baseado em combustíveis fósseis já existente não requer a construção de quase nenhuma estrutura nova. “Um regime regulatório que favorece o status quo é, portanto, um que privilegia as fontes fósseis”, afirma. Segundo uma análise referida por Klein e Thompson em seu livro, 95% dos projetos de energia que procuram se conectar à rede, mas que ainda estão obstruídos pelas licenças, são de energia solar, armazenamento em bateria ou eólico.

Mesmo focando nos equívocos dos governos democratas, a obra Abundância, argumenta o diretor editorial do Vox, Bryan Walsh, traz uma mensagem que importa para os norte-americanos independentemente de suas convicções políticas: a de que é possível adotar políticas que tornem a moradia mais acessível no lugar onde as pessoas querem viver, forneçam energia para impulsionar uma economia de alta tecnologia sem “queimar o planeta” e que proporcionem melhores serviços de saúde a custos mais baixos. A discussão que ganha terreno nos Estados Unidos deve ultrapassar suas fronteiras e levantar debates em outros países que também precisam lidar com o déficit habitacional e demais dificuldades do crescimento econômico.

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