Motonormatividade

Recente pesquisa revela que a cultura dos automóveis leva os indivíduos a utilizarem padrões diferentes para julgar comportamentos ligados à condução de veículos daqueles empregados para outras situações. Isso pode impedir que pessoas e governos tomem decisões mais adequadas sobre o uso dos carros nas cidades e as soluções para mitigar seus efeitos no bem-estar e meio ambiente.

Poluição do ar e sonora, congestionamentos, maior tempo gasto nos trajetos, estresse, acidentes e mortes no trânsito e reflexos na saúde física e mental. Os impactos da utilização excessiva dos automóveis no dia a dia das localidades já são bastante conhecidos e debatidos, mas mesmo assim os veículos particulares continuam sendo vistos como a maneira natural de locomoção, sendo priorizados em vez do transporte público, da caminhada ou da bicicleta. Um novo estudo realizado no Reino Unido, Estados Unidos e Holanda e publicado no começo de 2025 se aprofundou sobre o tema e identificou que isso ocorre porque as pessoas tendem a normalizar esses efeitos.

A “incapacidade cultural de pensar objetivamente e desapaixonadamente” sobre como usamos os carros foi denominada pelos autores da pesquisa – os professores de psicologia ambiental da Universidade de Swansea (País de Gales), Ian Walker, e da Faculdade de Ciências Sociais e Comportamentais da Universidade de Amsterdam (Holanda), Marco te Brömmelstroet – como motonormatividade, aponta artigo do portal de notícias The Verge. Walker detalhou em entrevista para o Streetsblog USA que o termo foi criado para capturar um tipo de preconceito ou suposição inconsciente compartilhada de que o transporte é fundamentalmente uma atividade que privilegia o automóvel.

O docente da Universidade de Swansea argumentou ainda que como os indivíduos entendem que “viajar” é igual a “dirigir”, eles acham muito difícil imaginar outras formas de circular pelos municípios e, consequentemente, de promover mudanças na maneira como se deslocam atualmente. Diante disso, as pessoas costumam ignorar os malefícios desse cenário e encará-los como inevitáveis. A motonormatividade, assinalam Walker e Brömmelstroet, leva os cidadãos a utilizarem padrões distintos ao julgar o transporte motorizado do que usam para outros tópicos.

O levantamento descobriu que essa tendência está relacionada a uma multiplicidade de fatores dos ambientes social, físico e cultural dos indivíduos. Foi verificado também que a maioria dos entrevistados do estudo sentiu que apoiava a mobilidade sem carro mais do que os outros participantes. Os autores da pesquisa analisam que essa falta de consciência sobre o que os demais pensam sobre outras opções de como fazer os seus percursos pode ajudar a explicar a resistência pública às tentativas de incentivar o transporte coletivo, o ciclismo e o andar a pé e de retirar espaço dos veículos nas ruas.

Walker e Brömmelstroet acrescentam que as ideias de uma pessoa sobre quais são os comportamentos vistos como normais e adequados vão sendo moldadas ao longo de sua vida por meio dos diversos grupos e lugares com os quais interage. O professor da Universidade de Swansea comentou ao Streetsblog USA que a primeira referência vem dos amigos e familiares, que são essenciais na formação do que alguém considera correto e bom. Existem ainda as influências sociais dos indivíduos observados nas funções cotidianas, como a forma como eles agem no trânsito: as infrações de leis, excesso de velocidade e direção agressiva, exemplificou.

Isso tudo acontece dentro de um mundo físico e legal, nos quais os comportamentos são facilitados ou dificultados, complementou Walker. Além disso, há a camada mais externa que é a da cultura, que reúne tudo que é compartilhado, pensado e valorizado coletivamente e na qual a mídia, notícias e discursos enviam mensagens sobre quais as atitudes que são e não são apreciadas pela sociedade. Esses contextos, afirmou o docente, reforçam a noção de cada um de como as coisas deveriam ser, assim como elas são de fato – o que irá moldar o que as pessoas fazem e refletir na experiência rotineira delas. E todas essas esferas configuram o fenômeno de motonormatividade.

O termo foi utilizado pela primeira vez pelo professor de Marketing Social da UWE Bristol (Universidade do Oeste da Inglaterra), Alan Tapp, em artigo em conjunto com Walker sobre o tema. A motonormatividade e a crença de que se locomover de um ponto a outro de uma localidade significa andar de automóvel pode desencadear políticas que sigam fomentando o uso dos carros, elevem as emissões de gases de efeito estufa e gerem áreas urbanas menos dinâmicas e amigáveis para pedestres e ciclistas.

Entrevistados não aplicam seus valores normais quando o assunto em debate é dirigir

O levantamento de Ian Walker e Marco te Brömmelstroet contou com mais de 2 mil indivíduos e atribuiu a eles, aleatoriamente, um de dois conjuntos de perguntas que procuravam suas opiniões sobre um risco relacionado à direção ou uma questão quase idêntica sobre um problema mais amplo, com apenas algumas palavras alteradas. Os resultados demonstraram que os participantes podiam passar de concordar com uma ideia a discordar apenas com base no fato dela ter sido enquadrada como um tema de trânsito, relata artigo do Conselho Europeu de Segurança nos Transportes.

Entre os elementos tratados no estudo estavam viagens com e sem automóvel, o que amigos, familiares e vizinhos pensam sobre esse assunto, se o governo municipal apoia quem faz seus trajetos em veículos privados e comparações sobre reações diante do hábito de fumar, ouvir música alta e referentes ao trabalho e acidentes no tráfego. Os retornos foram semelhantes aos obtidos por Walker na pesquisa desenvolvida em colaboração com Alan Tapp. Divulgado em 2023, esse levantamento entrevistou 2.157 pessoas do Reino Unido.

Nesse estudo os pesquisadores perceberam que 75% dos indivíduos concordavam com a afirmação de que “as pessoas não devem fumar em regiões muito povoadas, onde outros têm que respirar a fumaça do cigarro”, descreve o jornal The Guardian. No entanto, quando a frase foi modificada para “as pessoas não devem dirigir em regiões muito povoadas, onde outros têm que respirar a fumaça do carro”, somente 17% dos participantes estavam de acordo com ela. O mesmo ocorreu quando foi abordado o roubo de bens pessoais. Enquanto 37% dos indivíduos achavam que a polícia deveria agir se alguém deixasse seus pertences na rua e eles fossem roubados, esse índice subiu para 87% quando o termo carro entrou no lugar de pertences.

Outro questionamento feito revelou que 61% dos integrantes do levantamento concordavam que o risco era uma parte natural de dirigir, mas só 31% aceitavam essa declaração quando conduzir foi mudado para trabalhar. Com estudos anteriores que indicaram que os motoristas tendem a ultrapassar os ciclistas homens mais de perto do que as mulheres e a passar mais próximo dos ciclistas que usam capacete, Walker disse ao jornal que a pesquisa mais recente ilustra a extensão do “ponto cego” da política sobre direção e automóveis. As pessoas se mostraram menos tolerantes a comportamentos inadequados que não envolviam veículos do que nas situações que abrangiam conduzir, agrega o The Verge.

Ainda conforme o portal de notícias, o professor da Universidade de Swansea ponderou que é nessa desconexão que a motonormatividade entra em ação. “Queríamos demonstrar que, quando falamos em dirigir, os indivíduos não estão aplicando seus valores normais”, enfatizou Walker. Devido à cultura automobilística enraizada em inúmeros países pelo mundo, pode demorar muito mais tempo para alterar a visão dos cidadãos sobre os carros do que levou para transformar a mentalidade sobre os cigarros, aponta o The Verge.

A publicação avalia também que a sociedade não costuma encarar a direção sob a ótica da saúde pública, o que dificulta que a maioria das pessoas pense sobre os danos e desigualdades sociais associados ao uso dos veículos. Isso acontece, segundo o portal, porque grande parte da população entende que conduzir um automóvel é uma conveniência, e, por ser fácil, os indivíduos presumem que dirigir faz parte da ordem natural. Esse ideia ajuda a compreender os motivos para ainda existir tanta hostilidade em relação ao ciclismo e a outros meios alternativos de transporte, afinal de contas eles desafiam o padrão natural de utilizar o carro para todas as viagens.

 

Localidades continuam sendo planejadas centradas nos veículos

Apesar de muitos municípios estarem revendo a prioridade que é dada no espaço urbano para os automóveis, muitas cidades ainda focam seus investimentos na construção de vias cada vez mais amplas como solução para reduzir congestionamentos, permitir que os carros circulem em velocidades mais altas e melhorar a mobilidade. Várias políticas acabam por perpetuar a motonormatividade definida pelos pesquisadores Ian Walker, Marco te Brömmelstroet e Alan Tapp.

Entre essas medidas estão, por exemplo, leis que determinam requisitos mínimos de estacionamento para novas edificações – o que acaba impactando no aumento do valor dos imóveis para compra e aluguel – e de vagas para os veículos nas ruas. O economista Donald Shoup, principal referência sobre os reflexos da gratuidade de estacionamento nas áreas públicas e que faleceu no começo deste ano, defendia que a exigência desses pontos nas localidades incrementa o custo da habitação, estimula a utilização dos carros e eleva a poluição do ar. Ele frisava também que a obrigatoriedade de ambientes para os automóveis prejudica o desenho urbano dos municípios, diminui a caminhabilidade, leva à expansão territorial e acelera as mudanças climáticas.

Com a destinação de mais espaços para os veículos, há menos lugares e recursos para a melhoria e expansão das calçadas e das ciclovias e para a qualificação do transporte público e de suas paradas. A oferta de opções eficientes de deslocamento é ressaltada por especialistas como fundamental para que as pessoas deixem seus carros em casa e adotem outras formas mais sustentáveis para realizarem seus percursos. Cobranças de tarifas de estacionamento, como Nova York (EUA) colocou em prática desde o início deste ano, idealização de zonas de trânsito limitadas e de áreas com velocidades reduzidas e serviços de mobilidade para passageiros são algumas das iniciativas que diferentes cidades implementaram para reverter o atual panorama de domínio dos automóveis e retomar o ambiente urbano para os pedestres e ciclistas.

Projetar localidades mais compactas, aproximando moradia, trabalho, escolas, saúde, comércios e lazer, é mais uma estratégia que pode contribuir na diminuição do uso dos veículos. Além disso, a concepção de bairros com quadras menores e ruas pensadas para os indivíduos e não para os carros tornam os espaços mais atrativos e também seguros. Essas características aliadas à redução das velocidades colaboram ainda para mitigar os acidentes e mortes no trânsito.

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