Zoneamento

Municípios de diversos portes vêm efetuando mudanças em seus ambientes urbanos para se tornarem mais caminháveis, oferecendo segurança nos trajetos, infraestrutura adequada e lugares atrativos, onde os pedestres são prioridade. De estratégias de urbanismo tático ao fechamento de ruas em metrópoles, uma multiplicidade de medidas tem sido adotada no País.

Localizada às margens do Rio Potengi, a Avenida do Contorno em Natal (RN) passou, em 2024, por um processo de urbanização que redistribuiu o seu espaço viário, diminuindo as faixas voltadas aos veículos para instalar um calçadão acessível, ciclovia e uma pista de corrida. As intervenções, conforme a prefeitura, fazem parte da reestruturação da Pedra do Rosário, um importante ponto turístico da capital potiguar. A avenida recebeu ainda mobiliário urbano, arborização e iluminação, transformando-a de apenas uma via de circulação de automóveis em uma área de interação social, contemplação e para a prática de exercícios.

A iniciativa de Natal é um dos muitos exemplos de modificações que têm sido implementadas por distintos lugares no Brasil para deixar os ambientes urbanos mais amigáveis para os indivíduos. A ação da capital do Rio Grande do Norte inclusive ganhou o Prêmio Cidade Caminhável de 2025, na categoria Cidades Médias. A distinção, promovida pelo Instituto Caminhabilidade, com o apoio internacional da organização Walk 21, reconhece projetos de municípios que contribuem para deixar as localidades mais adequadas para os seus moradores e visitantes andarem a pé.

Para a fundadora e diretora-presidente do Instituto Caminhabilidade, Leticia Sabino, a medida da prefeitura de Natal melhorou a segurança e a capacidade de andar a pé de maneira efetiva ao separar os carros dos pedestres e ciclistas. Além disso, o desenho urbano do passeio público expandido, com mirantes ao longo do seu percurso, criou destinos caminháveis. Ela ressalta ainda a experiência de Campo Grande (MS), vencedora no segmento Cidades Grandes, que aperfeiçoou o Centro da capital do Mato Grosso do Sul. “O Viva Campo Grande II ampliou calçadas, desenvolveu mobiliários para sentar, colocou lixeiras e árvores em toda a região, melhorando a qualidade do andar a pé nesse território, que possui muitos comércios”, detalha Leticia.

As atividades concretizadas pela prefeitura municipal, entre 2020 e 2023, abrangeram mais de 80 quadras, 35 quilômetros de passeios públicos acessíveis e contínuos, assim como a instalação de 400 rampas para cadeirantes, piso tátil e rebaixamento de guias. Segundo o governo local, a sinalização do Centro também foi redesenhada, garantindo mais segurança e orientação para as pessoas. Levantamento realizado pela administração de Campo Grande revela que houve um aumento no fluxo de indivíduos nessa área, que passou de 17,4 mil pedestres por dia em 2018 para cerca de 21 mil em 2023. A revitalização do espaço central, reforça a prefeitura, possibilitou a reconexão dos ambientes comerciais, históricos e de serviços, fortalecendo a economia da região.

Caminhabilidade, explica Leticia, é assegurar boas condições para que os habitantes de uma cidade possam andar a pé – incluindo crianças, idosos e pessoas com mobilidade reduzida. “O caminhar precisa ser seguro, agradável e atrativo. Para que isso seja possível, existem diversas variáveis e elementos que devem acontecer, como contar com velocidades mais baixas nas vias, para diminuir os riscos de atropelamento nos trajetos”, descreve. A fundadora da organização acrescenta ser essencial ter desenhos de ruas que favoreçam quem anda a pé, que coloquem os pedestres em primeiro lugar.

Leticia alerta também que é necessário que os municípios pensem tanto na segurança pública como na de gênero. A primeira pode ser alcançada por meio do incentivo ao uso misto dos empreendimentos, com residências, comércios, trabalho e equipamentos voltados para as ruas, o que traz movimento para as vias em todos os horários do dia. Idealizar locais onde os indivíduos queiram permanecer, com bons bancos, sombra, iluminação e conforto, é outro aspecto salientado pela fundadora do instituto. No que refere à segurança de gênero, ela assinala que é importante que haja informações sobre o que tem no entorno e quanto tempo leva para chegar em um destino, facilitando a locomoção e a definição de rotas mais protegidas.

“Precisa ainda de protocolos claros de como você faz uma denúncia ou saber que os espaços são observados para que não ocorra (nenhum caso de violência). Estudos mostram que ambientes com crianças e idosos trazem uma sensação maior de segurança para as mulheres”, complementa. Letícia enfatiza também que a conectividade com uma rede de ciclovias e com o transporte público é fundamental para se ter uma cidade verdadeiramente caminhável – pois, isso auxilia a reduzir a dependência de veículos motorizados, sejam eles motos, automóveis ou carros de aplicativos. Ela recorda que esses equipamentos ocupam muita área, o que prejudica o andar a pé, bem como incrementam a emissão de gases de efeito estufa, piorando a qualidade do ar.

O termo caminhabilidade (walkability, no original em inglês) surgiu no Canadá, onde o político ambientalista Chris Bradshaw elaborou um índice para ser utilizado pelas comunidades. “Ele não nasce de forma técnica dentro das engenharias de trânsito ou do urbanismo, mas sim de um fazer coletivo para ser usado pela população que mora naquele lugar”, comenta. Entre os itens de caminhabilidade reunidos por ele para serem avaliados estão densidade, número de assentos disponíveis em bancos por domicílio e de vagas de estacionamento, com que idade as crianças começam a andar sozinhas e as chances de encontrar um conhecido enquanto de deslocam.

Quem cuida das calçadas?

“A gente olha muito também (para verificar se um município é amigável para as pessoas andarem a pé) para a relação das fachadas com a rua, mobiliários, informações disponíveis, presença de ruídos e de natureza”, agrega a fundadora do Instituto Caminhabilidade, Leticia Sabino. Ela frisa ainda que a proximidade – que tem sido traduzida mais recentemente como a Cidade de 15 minutos, que significa ter acesso a habitações, emprego, lojas, mercado, escolas, serviços, espaços culturais e esportivos, praças e parques a uma distância de até 15 minutos a pé ou de bicicleta – é necessária para que exista a caminhabilidade.

Nesse sentido, a qualidade das calçadas é mais um dos elementos a serem analisados. Muitas vezes negligenciados pelas localidades, os passeios públicos podem tornar o andar a pé mais difícil e perigoso – fazendo com que os pedestres precisem, em alguns casos, seguir pela rua para fugir de buracos ou do acúmulo de lixo. Leticia pondera que, assim como as vias por onde passam os veículos e as bicicletas recebem investimentos e são responsabilidade da gestão pública, as calçadas deveriam seguir o mesmo princípio, por serem ambientes de interesse público.

“Mas, historicamente, elas foram sendo repassadas, por legislações municipais, para os proprietários (de casas, prédios e negócios). Um modelo misto seria o ideal, porque a gente tem alguns (entes) privados com muito recurso e que geram grande impacto nas cidades – que são hubs de atração –, como shoppings centers, que podem ajudar a manter as áreas públicas”, defende a fundadora do Instituto Caminhabilidade. Ela conta que isso pode ser feito de forma direta, como já ocorre em muitas situações, ou indireta, por meio de uma contribuição para um fundo urbano que garantisse a manutenção e qualidade desses lugares.

No entanto, para que isso ocorra, acredita Leticia, é necessário criar uma governança e uma institucionalidade que dê conta de assegurar que sejam disponibilizadas boas calçadas e ruas compartilhadas (por pedestres, automóveis e bicicletas) sejam efetuadas mais fácil e rapidamente. “Porém, isso a curto prazo não costuma ser factível. As localidades têm dificuldade para pensar de onde viria esse orçamento e como organizá-lo. Isso traz outra discussão também de como a mobilidade não está estruturada com repasses de governos federais, que poderiam dar apoio nisso”, adianta.

Mas, de acordo com a fundadora da organização, o fator mais relevante que faz com que seja difícil ter municípios caminháveis é que os tomadores de decisão ainda possuem uma visão “carrocêntrica”, favorecendo os veículos no planejamento urbano. “Há, muitas vezes, uma segregação espacial, expulsando a população mais pobre do centro, espraiando as cidades e aumentando a dependência dos automóveis. E a caminhabilidade depende de mexer com questões de uso do solo, assim como dos espaços viários”, argumenta.

De São Paulo a Caruaru, iniciativas aprimoram a experiência das pessoas nas ruas

O Instituto de Caminhabilidade, lançado em 2012, atua em diferentes projetos que colaboram para as localidades serem mais caminháveis, desde a melhoria do entorno de escolas ou de bairros, de sinalização, de urbanismo tático até o desenvolvimento de manuais de desenho viário. Além do Prêmio Cidade Caminhável, a entidade possui a rede Cidade Caminhável, que envolve a capacitação de profissionais técnicos das prefeituras para impulsionar medidas nesse campo, e trabalha com consultoria e advocacy (estratégias para influenciar a elaboração de políticas públicas). “Atualmente, estamos com uma parceria com o Ministério das Cidades para apoiar a definição de um Plano Nacional de Mobilidade com foco em caminhabilidade”, adianta a fundadora do instituto, Leticia Sabino.

O Via Parque de Caruaru (PE) é uma das ações destacadas pela entidade. Uma área linear foi construída onde antes era a antiga linha férrea, fazendo a conexão de 14 bairros do município a pé ou de bicicleta por oito quilômetros. “Virou um ambiente tanto para deslocamentos ativos, em segurança, em uma região que a população não tinha, assim como um lugar de lazer e esportes”, ressalta Leticia. Ao longo do percurso, conforme o governo local, existem pistas de corrida, academia com equipamentos para a terceira idade, ciclovias, quadras esportivas, playground e paisagismo.

Ela salienta que as iniciativas feitas próximas às escolas para tornar as rotas a pé até elas mais seguras estimulam crianças e a comunidade do entorno a caminharem nesses espaços, elevando a interação com as áreas públicas. Segundo a fundadora da organização, esses projetos podem parecer algo pontual, mas como há instituições de ensino pulverizados por toda a cidade, é possível escalar essas medidas e atingir vários bairros, transformando o ato de andar a pé em muitos trechos do município. Foi o que ocorreu em Anicuns (GO), ganhador deste ano da categoria Cidades Pequenas da distinção do instituto de Leticia.

Através do urbanismo tático, com pinturas lúdicas na rua, uma região escolar da localidade passou por alterações, em 2024, para diminuir o ambiente dedicado aos automóveis e ampliar as calçadas e zonas de acolhimento. As mudanças também reduziram as velocidades de circulação dos carros e os riscos de acidentes e priorizaram aqueles que andam a pé – o retorno da ação tem sido avaliado como positivo por alunos, pais, professores e residentes. O programa Escola em Movimento, da prefeitura de Anicuns, envolveu ainda o ensino sobre direito dos pedestres.

O fechamento de vias para automóveis nos finais de semana é outra estratégia que tem contribuído para reaproximar as pessoas dos lugares públicos e incentivado a sua ocupação. A Paulista Aberta, em São Paulo (SP), é uma referência nesse sentido. “Ele (o programa) ressignifica, ainda que de forma temporária, uma das avenidas mais icônicas da maior cidade do Brasil, tirando os veículos motorizados dessa área para devolvê-la para o uso dos indivíduos”, comemora a fundadora do Instituto Caminhabilidade. Isso permite, de acordo com Leticia, que as pessoas entendam e vivenciem como seria um município onde a prioridade é dada para quem está a pé e para que seja viável usufruir dos espaços públicos.

Ela enfatiza que os pedestres podem aos domingos e feriados caminhar pela Paulista, permanecer nesse local, ver espetáculos, conversar, ter acesso a informações. “E isso mostra o quanto a gente perde de convivência, de relação, quando entrega a maior parte dos nossos ambientes públicos para a circulação de carros”, pontua. Lançada em 2015, a política de manter a avenida aberta vem sendo mantida por distintos governos por ter a aprovação popular, acrescenta Leticia. Ela compartilha que o processo para a idealização da iniciativa foi de intensa mobilização social, que durou mais de um ano.

“Há uma década, a administração da cidade comprou a ideia, acolheu e bancou o processo de implementação”, recorda. A fundadora do instituto lembra também que no início existia a proposta de expandir o programa de ruas abertas para todas as subprefeituras de São Paulo, o que não aconteceu. “As gestões seguintes foram desmontando o projeto. Então, é uma vitória ainda maior a Paulista se manter, mas há uma urgência de voltar a ampliar essa ação para outras regiões”, conclui.

Seja o primeiro a receber as próximas novidades!

    Não fazemos SPAM. Você pode solicitar a remoção do seu email a qualquer tempo.